A Iracema filmada por Bodanzky nunca quis ser atriz
Protagonista do longa que definiu o ‘docudrama’, Edna Santos apresentou a Amazônia ao mundo em plena ditadura
Numa manhã de 1974, Edna Santos, 15 anos, estava no único lugar possível para alguém da sua idade: matando aula em um programa de auditório no Sesc, em Belém. Sentada na última fileira, em meio à agitação, não percebeu quando dois cineastas entraram no salão e a viram. Mas Jorge Bodanzky e Orlando Senna perceberam na mesma hora que haviam encontrado Iracema.
Dez dias de busca e uma dica de um taxista depois, os dois finalmente estavam perto da personagem que protagonizaria “Iracema, uma Transa Amazônica”, filme produzido naquele ano e que seria lançado em 1976 pelo mundo — menos no Brasil.
A solução da ditadura contra uma produção que descortinava a narrativa do progresso e do Brasil Grande foi considerá-la um filme estrangeiro, e, assim, evitar que ele fosse inscrito em circuitos nacionais. O filme só seria exibido oficialmente no país em 1980. Mas isso é história.
Em Belém, o centro cultural do SESC em que estavam Edna e seus amigos fica muito perto do Ver-o-Peso, mercado de quase 400 anos e um cartão postal da capital paraense.
“Eu não falei que era um filme, eu disse ‘olha, nós queremos tirar umas fotos, estamos procurando modelo, você topa sair e tirar umas fotos com a gente? Ela disse que sim”, lembra Jorge Bodanzky. “Era pertinho do Ver-o-Peso, dei um dinheiro para ela e falei ‘compra uma coisa no mercado e eu vou te fotografando’, e fomos com a máquina. De repente, uma confusão”.
O motivo da gritaria era o flagra da mãe, que ameaçava bater na filha para levá-la de volta à escola. Encontrar uma jovem que morava na cidade, tinha família — o que significava permanência — para autorizar o trabalho e que era comunicativa garantia o necessário para as filmagens dali a seis meses.
Geniosa, Edna recusou. Nunca tinha ido ao cinema, não queria saber de câmera, nada disso. Mas com muita conversa e uma ida dos cineastas à casa dos pais para explicarem o projeto, a adolescente mudou de ideia.
“Mandei uma moça que fazia a produção com a gente, com muita diplomacia, para levar os pais dela ao Juizado de Menores, para a autorização do trabalho”, diz Bodanzky.
Procurando Iracema
O argumento para “Iracema”, como já é conhecido, foi concebido pelo diretor em 1968, anos antes das idas de Edna ao SESC. Trabalhando como fotógrafo para uma reportagem da revista Realidade, Bodanzky passou dois dias em um posto de gasolina, à beira da Belém-Brasília, em Paragominas (PA). Seu companheiro de matéria deveria apurar uma história sobre dinheiro falso.
Mas o ambiente chamou sua atenção. De dia, o local era um posto de gasolina comum. Motoristas e caminhões. De noite, uma intensa atividade de prostituição. Daí veio a ideia de contar a história a partir de dois personagens. Quando veio a oportunidade de viabilizar a produção, a Transamazônica, projeto dos militares para ligar o país ao progresso, estava em construção.
Com a aprovação do canal ZDF, Bodanzky, Orlando Senna e Wolf Gauer foram num Fusca para a Transamazônica e registraram todos os futuros locais de filmagem na região de Marabá, no Pará. Foi aí que começou a busca por uma menina jovem cabocla, com sotaque e personalidade da região.
“Eu tinha um prazo. Primeiro, porque eu queria incluir a festa do Círio de Nazaré, que acontece em outubro. Seria um ponto fundamental no filme, onde a menina viria do interior e lá encontraria o chofer de caminhão para seguir na estrada. E tinha um compromisso com a produção de entregar o filme até o final de 1974, quando o rodei”, lembra Bodanzky.
Destaque: uma equipe alemã de televisão encontrou por acaso a equipe de Bodanzky durante as filmagens no Círio. Impressionados com a diminuta produção no meio da agitada festa religiosa, fizeram uma reportagem, que gerou uma boa divulgação para a estreia do filme em solo germânico. O material foi registrado em super-8 por um surpreso Wolf Gauer.
Uma kombi cheia de barbudos
Encontrada a “Iracema” Edna Santos, com a devida autorização dos pais e do Juizado, foi acomodada num hotel em Belém para se ambientar com a equipe e a rotina de filmagem. Conceição Senna, que também protagoniza o filme, tomaria conta da adolescente durante as filmagens.
“Ela entrou nessa brincadeira, muito divertida, esperta, colocou apelido em todo mundo. Conceição explicava e ela dizia ‘já sei o que tenho que fazer, não se preocupe’, era uma pessoa muito inteligente e amorosa, não tivemos problema na equipe”, diz Bodanzky.
Afinal, em plena ditadura e filmando em áreas de segurança nacional, com barreiras e a tensão da guerrilha do Araguaia, a reduzida trupe adotou uma prática desenvolvida antes pelo diretor, durante a época em que lecionava iluminação e câmera na Escola de Comunicações e Artes da USP: utilizar uma Kombi, parar, filmar rapidamente e sair.
“Tivemos muita sorte. Imagine uma Kombi, com placa de São Paulo, um monte de barbudos, gente esquisita e cheia de equipamento, o que um soldado numa barreira da Transamazônica ia pensar? Mas demos sorte.”
Não havia falas combinadas para a atriz estreante. Nem para Paulo Cesar Pereio, que encarna o motorista Tião Brasil Grande. A direção orientava e os atores faziam acontecer, no improviso.
Três momentos da protagonista dão o tom do roteiro: a adolescente em família que vai à cidade, a festa do Círio e o encontro com Tião e a prostituição e, por fim, a vida na estrada. O progresso torto do caminhoneiro e a tragédia da jovem também repercutiram para o mundo o que se passava — e queimava — na Amazônia na década de 1970.
’Não queria ser índia’
“As pessoas que veem o filme sempre me perguntam por que eu estava chorando ali. E sabe por que eu estava chorando? Eu não queria servir os índios. Eu não queria ser índia!”, disse Edna Santos três décadas depois de viver a personagem.
Em “Era uma vez Iracema”, de 2005, Jorge Bodanzky reuniu uma série de depoimentos sobre o longa, incluindo o da protagonista, que relembra: não queria ser atriz, ser artista é difícil.
Numa cena com Tião, Edna nega ser índia, diz que é ‘filha de brasileiro’. A cena do choro é real, já que a adolescente não queria ter contato com os índios e se recusou, mesmo como personagem, a servi-los no restaurante fictício.
“Tive muito aborrecimento, as pessoas invadiam minha privacidade, escrevendo coisas que eu não gosto, aí então eu fiquei muito aborrecida nessa parte com a imprensa, que sempre escreveu coisas que não gosto”, diz Edna na entrevista.
Para contar essa parte, voltamos 25 anos até 1980, quando finalmente “Iracema” foi exibido no Brasil e vence como melhor filme — e melhor atriz para a protagonista — no Festival de Cinema de Brasília. Tumultuado, o festival aconteceu aos trancos, quase sem recursos.
“Fomos de carro daqui de São Paulo até Brasília, porque não havia passagem. Pedi muito ao pessoal do Festival que conseguisse uma passagem para ela ir, e eles não deram. E ninguém acreditou que o filme fosse ter algum destaque lá”, explica o diretor.
Para completar, a imprensa foi buscar uma manchete na casa da “Iracema”, em Belém, onde a jovem, então com 21 anos, ajudava a mãe nas tarefas domésticas. “Edna de Cássia, atriz de ‘Iracema’, vive na miséria”, é o tom de uma manchete do Jornal do Brasil de 7 de dezembro daquele ano. Além de não saber do prêmio, Edna se enfureceu com o sensacionalismo à porta, e ficou de mal com o filme e a fama.
Edna passou algum tempo entre Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, auxiliada por Bodanzky e Orlando e Conceição Senna, antes de retornar para a casa família, em Belém. Nunca houve interesse, da parte dela, em continuar atuando — um convite de uma televisão francesa para viver uma prostituta enterrou de vez essa possibilidade. Formou-se e fez carreira como professora, é avó e fez as pazes com sua personagem.
Como pode essa índia?
O cinema, à época, não dizia muito para a adolescente. Mas o impacto se estendeu da Europa à vizinhança de Edna.
“Um filme colorido, com som direto, que era uma coisa muito nova, ouvir as pessoas falarem como elas falavam de fato. Quando o filme foi finalmente exibido num cinema em Belém, as pessoas morriam de rir. E sem nada engraçado: era porque ouviam pela primeira vez o próprio sotaque num filme”, lembra Jorge Bodanzky.
Além dos aspectos políticos de denúncia e linguagem, Edna garantiu um patamar inédito — o de uma mulher indígena que protagonizou um longa-metragem. E continuou o assédio: como é que podia uma mulher ‘índia’ e pobre ganhar um prêmio como melhor atriz de um filme, ficar famosa na Europa e aparecer em Cannes?
Foi o mesmo tipo de pergunta feita a Yalitza Aparicio, protagonista de Roma (2018), de Alfonso Cuarón. Professora, sem experiência no cinema, foi indicada ao Oscar de melhor atriz em 2019. Para Jorge Bodanzky, é uma coincidência entre as personagens que vai da trajetória, da aparência e da repercussão, incluindo os comentários negativos.
Sem querer ser atriz, Edna Santos, hoje aposentada, mantém o feito de apresentar a Amazônia para o mundo. E de maneira quase acidental: porque matou aula com os amigos para assistir a um show de auditório.
“Iracema: uma transa amazônica” está na programação da Mostra Ecofalante de cinema. Clique aqui para assistir.
Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.
Imagem em destaque: Edna (ao centro, em cima) e equipe e elenco do filme. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude