Os múltiplos impactos do garimpo na vida e território Munduruku

Homens colocando uma placa de Terra Protegida em uma árvore na Terra Indígena Sawré Muybu.
Foto: Bárbara do Nascimento Dias

Para os Munduruku do vale do Tapajós, o progresso do capitalismo pode resultar na queda do mundo, em uma realidade sem volta

Historicamente, o povo Munduruku, do tronco e família linguística Tupi e Munduruku, respectivamente, habitou os campos interiores do Tapajós, mas depois – em um processo que durou séculos –, foram se estabelecendo às margens do rio Tapajós, entre os estados do Pará e Mato Grosso, e ao logo do rio Amazonas. O artigo em questão se refere aos Munduruku que estão no vale do Tapajós, nos municípios de Itaituba e Jacareacanga, situados no percurso da rodovia Transamazônica.

Essa região sofreu com diversas investidas de frentes colonizadoras que, por meio dos ciclos da borracha, iniciado no século XIX e, posteriormente, se repetindo no século XX, foram adentrando a Amazônia e expandindo a presença de brancos entre os povos indígenas. Essa relação, no entanto, sempre se deu de forma assimétrica, tendo em vista que os indígenas foram explorados e escravizados pelos donos dos seringais e vitimados pelas doenças virais trazidas pelos colonizadores.

As frentes de expansão, que se consolidaram entre as décadas de 1960 e 1980, tiveram como ponta de lança projetos agropastoris e de exploração minerária, aumentando exponencialmente os conflitos por terra que envolviam latifundiários, camponeses, povos e populações tradicionais. Com o crescimento dos garimpos, proporcionado por projetos de infraestrutura e pelos incentivos estatais, muitos povos indígenas foram quase completamente dizimados e, hoje, podemos ver o genocídio se repetir em diversos estados brasileiros. Os momentos históricos citados demonstram que a Amazônia sempre foi alvo de projetos megalomaníacos dos mais diferentes governos e instituições de Estado, que resultaram na construção desastrosa da Transamazônica e, mais recentemente, na Usina Hidrelétrica de Belo Monte.

Os municípios de Itaituba e Jacareacanga, por sua vez, têm suas histórias atreladas à atividade garimpeira. No século XIX, os relatos do viajante Cordreau (1895) já relatava a presença ainda incipiente de migrantes empobrecidos do nordeste brasileiro que foram para a região em busca do garimpo de ouro. Foi durante a década de 1950 que o garimpo começou a fazer parte de forma mais significativa da economia do Tapajós, após ter sido descoberta a “ocorrência desse metal no Rio das Tropas, afluente da margem direita do Tapajós” (Brabo, Santos, Jesus, Mascarenhas e Faial, 1999:326). Em 1980, a região testemunhou o auge da corrida pelo ouro (Nepomuceno, 2019). Milhares de garimpeiros, principalmente dos estados do Sul e do Nordeste, se deslocaram para o Tapajós com o intuito de explorar ouro em garimpos situados entre as duas cidades. Por causa do fluxo de pessoas que iam à região, assim como o número de aviões que chegavam e saíam para carregar e transportar ouro, guarnições de alimentos, combustível, trabalhadores e cafetões e seus serviços de exploração, o antigo aeroporto de Itaituba atingiu enorme volume de pousos e decolagens.

Atualmente, os dois municípios concentram uma grande quantidade de garimpos, mas se nas décadas anteriores a retirada do ouro se dava pelo método de aluvião, mais manual, hoje, o que predomina é o uso de grande maquinário. As retroescavadeiras, conhecidas na localidade como PC’s, estão disponíveis no mercado por um custo médio que vai entre R$ 500 mil e R$ 1 milhão cada, e são usadas para revirar a terra em busca de ouro. Esses maquinários são responsáveis pela destruição de extensas áreas de florestas, assim como o assoreamento do rio Tapajós e de seus afluentes. A utilização do mercúrio para separar o ouro de rochas e da areia é feita de forma indiscriminada, aproveitando da ilegalidade que permitiu que garimpeiros entrassem em territórios indígenas e em Unidades de Conservação. Dessa forma, o garimpo, além de contaminar rios e peixes, também contamina com o mercúrio indígenas e populações urbanas que se alimentam dos pescados.

No quilômetro 180 da Transamazônica, trecho situado entre Itaituba e Jacareacanga e que interliga aldeias Munduruku, é possível perceber quem são os poderes que se estabeleceram nas margens da rodovia. Pequenos aviões estacionados entre currais e agências de viagem de pequenos voos que levam a garimpos dentro da floresta sucedem-se ao longo de todo o percurso, a céu aberto, e prova, mais uma vez, que os responsáveis por trás da exploração ilegal de ouro são pessoas que possuem grande cabedal financeiro e com contatos políticos. O trajeto, utilizado tanto por indígenas como por garimpeiros e madeireiros, acaba sendo espaço de tensão, mas também de cooptação de indígenas e ribeirinhos para o trabalho no garimpo.

Majoritariamente ilegais, esses garimpos de cassiterita, ouro e diamante estão em grande parte presentes nas terras indígenas, como é o caso do maior garimpo da região, o Chapéu do Sol, localizado parcialmente dentro da TI Sawre Muybu (Almeida et al., 2019). Os garimpos produzem uma série de consequências para a vida cotidiana Munduruku, tornando as aldeias vulneráveis com a entrada constante de garimpeiros que, com frequência, ameaçam lideranças que se opõem a atividades dentro do território indígena, mas também se aproveitam da vulnerabilidade de muitos jovens para introduzirem bebidas alcoólicas e para convencê-los a serem coniventes com a entrada desses garimpeiros.

A catástrofe do desenvolvimento e progresso

Para o povo Munduruku que habita a bacia do rio Tapajós, a Terra é mantida por Daydo, um Tatu que teve como castigo a tarefa de segurar o mundo em suas patas para que ele não desabe e seja destruído. Com as atividades minerárias, com a construção massiva de hidrelétricas e outras grandes obras, a estabilidade do tatu é perturbada, colocando em risco o planeta e todos os seres humanos e não humanos que o habitam. A intensidade e a quantidade de ações que violentam a terra, empregada pelos homens, quebram os dedos do Tatu, podendo chegar a um ponto em que ele não suportaria e deixaria o mundo cair, levando-o à destruição.

Diante disso, os Munduruku têm alertado aos não indígenas que o que eles nomeiam como progresso e desenvolvimento, é, na verdade, o prenúncio do fim do planeta e de todos que vivem nele. Não há como impedir o fim do mundo sem romper com a exploração desenfreada da terra, das águas e das florestas. Davi Kopenawa, xamã Yanomami, também alerta ao povo das mercadorias, como chama os brancos, para um possível desfecho cataclísmico caso esse “projeto civilizatório” perdure. Isso levaria à queda do céu, pois a mineração e os projetos do homem branco estão matando os xapiri, os espíritos que seguram e impedem que o céu desabe. O progresso, intrínseco ao sistema capitalista, tem sido colocado nos discursos e nas práticas políticas de governos da esquerda à direita como uma verdade inquestionável, como projeto inevitável e absoluto. Mas esse progresso para o qual a humanidade caminha deixa atrás de si ruínas, coleções de catástrofes e barbáries (Benjamin, 2020).

Os intelectuais Ailton Krenak (2019) e Davi Kopenawa e Bruce Albert (2015) vêm ressaltando como o progresso tem sido utilizado para perpetuar a violência, expropriação e expulsão dos povos de seus territórios, num estado de exceção que, para os povos indígenas e para a população negra, nunca teve fim. O progresso, e junto a ele o desenvolvimentismo, carrega consigo projetos de sociedade, economia e modelos de produção que degradam, destroem e afrontam os limites do planeta e da natureza, além de aniquilar saberes, ciências e povos inteiros. Em nome do progresso e do desenvolvimento busca-se justificar as ruínas deixadas em territórios “colonizados”, as pilhas de corpos, os destroços dos rios, das matas e das florestas.

Alessandra Korap, liderança Munduruku, questiona a estrutura e modos de atuação do Estado, ao afirmar que a democracia nunca existiu para os povos indígenas, já que seus direitos são violados e desconsiderados sistematicamente. Inclusive o direito à vida, que em prol do progresso e dos interesses econômicos na região em que vivem, violenta de forma contínua seu povo. Para ela, “Democracia é quando você é consultado sobre o que vai impactar sua terra…isso não têm sido feito. A democracia nunca existiu pra nós”.

Seguindo as narrativas do povo Munduruku, o mundo e a humanidade vão colapsar se aquilo que as sociedades modernas denominam de “desenvolvimento e progresso” continuar operando e determinando os modos de viver. Para eles, a “queda do mundo” tem relação direta com ações e reações dos humanos sobre a terra e da terra sobre os humanos. O personagem mítico do qual falei mais acima, Daydu, tatu que foi castigado por ter realizado uma série de travessuras, ficou com a tarefa de segurar permanentemente o mundo. Toda vez que a mineração perfura a terra, os dedos desse tatu podem quebrar, desequilibrando-o. Isso pode culminar na queda da terra e, consequentemente, na destruição da humanidade. “Se fica perfurando a terra isso destrói os dedos dele, e aí depois que o mundo escapole o mundo se acaba, porque ele que tá segurando alí”, diz Juarez Saw, cacique da aldeia Sawre Muybu.

As histórias contadas pelos Munduruku, especialmente por seus historiadores e anciões, são força e inspiração para as lutas atuais, mobilizam e renovam as estratégias, pois os mortos não estão emoldurados e esquecidos no passado, eles possuem agência no presente (DIAS, 2021). Quando esses garimpos invadem seus territórios tradicionais, os impactos se estendem para múltiplos espaços, com a contaminação dos rios, degradação da floresta, adoecimento de seus corpos e causa, ainda, a perturbação nos espíritos dos antigos que vivem no território.

As paisagens da região do Tapajós também estão intrinsecamente ligadas à história do povo e aos seus modos de manejar o mundo. Lugares sagrados, como algumas cachoeiras, igarapés, alguns tipos de animais e plantas, fazem parte da espiritualidade Munduruku, que orienta os modos de agir no agora, mas também é a história de seus antepassados, do surgimento dos seres e das coisas. Esses lugares não podem ser mexidos, caso contrário os espíritos podem se revoltar e causar doenças no povo, desequilibrando, assim, as relações entre humanos e não humanos no território.

Os Munduruku estão lutando por territórios onde estão toda a multiplicidade e complexidade do que constitui o povo Munduruku, suas histórias e seus projetos de vida. Os garimpos e as invasões que os violentam sistematicamente condenam as múltiplas formas de vida existentes em seus territórios. As resistências, por outro lado, se concretizam por meio das autodemarcações, da consolidação de movimentos de luta, em ocupações e planos de vida.

Referências
Bárbara do Nascimento Dias é historiadora pela Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), mestre em Antropologia Social pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em Antropologia no Museu Nacional, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
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