Para segundo mandato, Bolsonaro indica continuidade de políticas antiambientais
Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental (ISA), comenta supostas propostas de desenvolvimento sustentável no plano de governo do candidato a presidente
O leitor desavisado pode se surpreender com a leitura do Plano de Governo do presidente (e candidato) Jair Bolsonaro. Em 48 páginas, aborda temas como a mulher, a cultura e o meio ambiente, usando conceitos considerados progressistas – como “justiça ambiental” – para falar deste último.
No entanto, todas essas questões foram deixadas em segundo plano tanto em seu último Plano de Governo, apresentado em 2018, quanto na prática, em sua atual administração.
Além disso, as propostas foram apresentadas com uma série de asteriscos proverbiais, incompletas ou com ressalvas. Enquanto fala da proteção à Amazônia, um dos principais pontos de crítica em seu mandato, relativiza dados e deixa de mencionar qualquer meta para a redução do desmatamento – que vem batendo sucessivos recordes. Também chega a mencionar povos tradicionais da região amazônica, como indígenas e quilombolas, mas não propõe planos para proteção das comunidades.
“Quando falamos de governo, a prática fala muito mais alto que o plano”, diz Adriana Ramos, assessora política e especialista em direito socioambiental do Instituto Socioambiental (ISA). “Apesar da presença de temas sobre o meio ambiente nas propostas para um segundo mandato, não há nenhuma novidade. Este plano é apenas a continuidade das ações anti-ambientais que já vimos durante o governo Bolsonaro”, acrescenta.
Para Ramos, um dos pontos mais preocupantes das propostas é a visão desenvolvimentista do governo em relação ao meio ambiente. Na seção sobre “Fortalecimento e Ampliação das Políticas de Promoção do Verde e do Desenvolvimento Sustentável”, o texto descreve o objetivo de elaborar o “desenvolvimento sustentável e o desenvolvimento local e o regional, preferencialmente com ações e atividades econômicas que reduzam a desigualdade e promovam a inclusão social, a diversidade e a evolução tecnológica”, chegando a falar, inclusive, de justiça ambiental e bem-estar social.
Em uma outra parte, sobre a “Proteção e Promoção dos Direitos dos Povos Indígenas e Quilombolas”, a cara desse desenvolvimento se faz mais explícita. De acordo com o Plano de governo, uma das principais propostas é o “etnodesenvolvimento” – que o texto indica ser relacionado ao respeito à autonomia e à autodeterminação das Comunidades Indígenas – para apoiar atividades produtivas nas aldeias e etnoturismo (turismo em terras indígenas).
A descrição soa até positiva – se isolada da realidade. Durante a campanha eleitoral de 2018, Bolsonaro prometeu (e cumpriu) não demarcar “nem mais um centímetro” de terras indígenas, e seu discurso de impunidade levou ao aumento de 137% nas invasões a terras indígenas durante os dois primeiros anos de mandato, segundo o Cimi (Conselho Indigenista Missionário). Sem terras, recursos ou proteção, o discurso do desenvolvimento sustentável se esvazia.
“Bolsonaro e seus aliados enxergam as populações indígenas e quilombolas como povos pobres, que estão indo na direção contrária à que a civilização deveria ir. Ele não vê o potencial dos povos tradicionais, especialmente na capacidade de proteção e preservação do meio ambiente”, diz Ramos. “Essa posição, na verdade, talvez seja a única coisa realmente coerente, no sentido de ininterrupta e assídua, em Bolsonaro.”
O discurso de desenvolvimento sustentável também cai por terra quando o plano aborda a proteção da floresta. Por mais que as propostas citem iniciativas de criação de energias verdes – como o hidrogênio verde, que o texto afirma que o Brasil tem “enorme capacidade de produção”, e carros elétricos –, Ramos destaca que nada vale descarbonizar a matriz energética do país enquanto o desmatamento está em alta.
No Brasil, 82,9% das fontes energéticas são chamadas sustentáveis, por não gerarem emissões de gases do efeito estufa, segundo dados oficiais. Como a média global é de 26,7%, a matriz brasileira é uma das mais limpas do mundo. No entanto, a maior fonte de carbono no Brasil (cerca de 60%, segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia, IPAM) é o desmatamento.
O estudo mais recente do instituto indicou que o desmatamento na Amazônia cresceu 56,6% sob o governo Bolsonaro. E o Relatório Anual de Desmatamento no Brasil, do MapBiomas, mostrou que, durante o mandato atual, o desmatamento aumentou em todos os biomas, com área equivalente ao estado do Rio de Janeiro (42 mil km² de vegetação nativa).
O plano também não menciona nenhuma meta para redução do desmatamento, nem mesmo o compromisso feito na COP26, cúpula das Nações Unidas sobre o clima, para zerar o desmatamento ilegal até 2030.
Ramos lembra que a proposta já seria inócua porque “uma das estratégias do presidente para atingir a meta é legalizar o desmatamento irregular”.
O texto também descreve a delegação de funções de proteção da floresta a membros das forças armadas do Brasil, com destaque para a Força Aérea Brasileira (FAB), o que, segundo a especialista do ISA, dá continuidade ao projeto de substituição de técnicos da área por militares. “A estratégia retira a inteligência de investigações de crimes ambientais. Pode até haver aumento do efetivo em campo, mas não da eficácia das operações”, afirma, enfatizando que a medida, comprovadamente, não ajudou a reduzir o desmatamento, como fica evidente pelos dados.
Falando em dados, o plano de governo de Bolsonaro se gaba de ter lançado mais dois satélites para a fiscalização de desmatamento na Amazônia, mas deixa clara sua ressalva: “Sabe-se que dependendo do tipo de parâmetro, do tipo de leitura de dados, das estatísticas utilizadas e da tecnologia de imagens adotadas, dentre outros fatores, os resultados podem ser extremamente díspares”. A observação é condizente com o histórico negacionista do presidente, que chegou a demitir Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por não concordar com os dados sobre desmatamento divulgados pelo órgão.
“O presidente é um flagrante negacionista. O Brasil não precisa de novos satélites, mas de investigação e responsabilização com base em dados colhidos. Essa é uma estratégia diversionista, para distrair do verdadeiro problema”, diz Ramos.
Além disso, apesar da defesa de geração de energias verdes, Bolsonaro também sancionou, no início deste ano, o projeto de lei (PL 712/19) que prorroga por 15 anos, a partir de janeiro de 2025, os contratos de suprimentos de energia elétrica de usinas térmicas movidas a carvão mineral em Santa Catarina. O projeto, aprovado pelo Congresso, amplia o prazo de contratação ao criar o programa de “Transição Energética Justa”.
O incentivo à geração de energia elétrica proveniente da queima de carvão mineral é criticado por especialistas do setor elétrico e ambientalistas. No Brasil, as usinas a carvão são consideradas uma fonte poluente e com custo de geração mais caro do que outras modalidades mais limpas.
Segundo a especialista do ISA, o motivo da presença de temas ambientais e da Amazônia – a palavra “Amazônia” não apareceu nenhuma vez no plano de governo de 2018, e 22 vezes no atual – não está relacionada a uma mudança de postura de Bolsonaro e sua equipe, mas à cobrança internacional.
“Quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, foi ao Fórum Econômico de Davos em maio neste ano, ele foi cobrado em relação à proteção à Amazônia. E está longe de ter sido a primeira vez”, diz Ramos. “O governo se deu conta de que essa é uma preocupação global, não só de militantes e ativistas, como acreditava antes. Reforçar a Amazônia como área de atenção pode render-lhe uma imagem melhor.”
Em uma espécie de greenwashing, anglicismo que define a injustificada apropriação de virtudes ambientalistas, mediante o uso de técnicas de marketing e relações públicas, Bolsonaro procura esverdear suas ações sem realmente fazê-lo, explica Ramos. O plano pode até aparentar evolução, mas é a crônica de uma tragédia anunciada.