Declaração das Florestas pode ser inócua com políticas ambientais de Bolsonaro

Grupo de indígenas sentados
Ao lado de 133 países, o Brasil anunciou na COP26 um compromisso para zerar o desmatamento e a degradação florestal até 2030; falta de apoio a territórios indígenas e políticas anti-desmatamento do governo dificultam o cumprimento das metas

Faz tempo que o Brasil não vai bem em eventos internacionais sobre mudanças climáticas. Contudo, um anúncio na terça-feira (2) durante a COP26 (Conferência do Clima da ONU) tomou as manchetes dos jornais. Diretamente de Glasgow, a presidência britânica do evento anunciou que 124 países haviam assinado a Declaração das Florestas, um compromisso de zerar o desmatamento e recuperar áreas degradadas até 2030. Entre os signatários, estão os detentores da maior parte das florestas do mundo, incluindo o Brasil.

As propostas do texto, divididas em seis pontos, são ambiciosas. Em primeiro lugar, os signatários — que agora somam 133 países — prometeram conservar florestas e outros ecossistemas terrestres e acelerar sua restauração. Para garantir isso, darão preferência ao comércio e políticas que promovam o desenvolvimento sustentável e a produção e consumo de commodities sustentáveis.

Os países também se comprometeram a reduzir a vulnerabilidade de comunidades rurais através do desenvolvimento de agricultura sustentável e segurança alimentar, reconhecendo os direitos dos povos indígenas e comunidades locais.

A ideia é aumentar significativamente o financiamento e investimento na agricultura e manejo florestal sustentáveis, assim como na conservação e restauração de ecossistemas. Os países também acordaram em facilitar a articulação de fluxos financeiros com as metas internacionais para reverter a degradação florestal, transitando para uma economia que valorize a floresta, o uso sustentável da terra, a biodiversidade e as metas climáticas.

Quase um quarto (23%) das emissões globais vêm de atividades de uso da terra, como extração de madeira, desmatamento e agricultura. Ou seja, combater as mudanças climáticas passa necessariamente por proteger as florestas e acabar com o uso prejudicial da terra, além de proteger as vidas e a continuidade de comunidades compostas por 1,6 bilhão de pessoas — quase 25% da população mundial — que dependem das florestas para seu sustento.

Uma promessa bonita e ousada, mas cheia de buracos. “O texto é muito vago”, disse Erika Berenguer, pesquisadora sênior das universidades de Oxford e Lancaster, na Inglaterra, membra do Scientific Panel for the Amazon da UNSDN, um braço da ONU, e uma das coordenadoras da Rede Amazônia Sustentável. “Não há metas intermediárias, nem metas específicas para cada país, ou definições acerca do financiamento. É uma promessa grandiosa, mas faltam mecanismos pelos quais é possível atingir isso”.

Erika Berenguer em pé. Ela veste uma camiseta preta e um cachecol roxo

A bióloga Erika Berenguer durante o painel “Raising the roof: voices for the Amazon”. (Marcos Colón/ Amazônia Latitude)

A bióloga afirmou ainda que há muita contradição entre o acordo e a postura do governo brasileiro com relação ao desmatamento e aos povos indígenas, destaques dos itens 5 e 6 do texto. Na própria COP26, embora o Brasil tenha se destacado com a fala de Txai Suruí, primeira líder indígena a discursar na abertura da reunião global do clima, na segunda-feira 1, o presidente Jair Bolsonaro, que não foi para a conferência, no dia seguinte desferiu críticas contra ela em frente ao Palácio da Alvorada.

Para Suruí, os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática e “por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui”. Um relatório recente da ONU reforça seu ponto. As taxas de desmatamento são até 50% menores nos territórios ocupados por grupos indígenas, sendo uma das melhores maneiras de enfrentar o problema o reconhecimento dos direitos desses povos.

“Estão reclamando que eu não fui para Glasgow. Levaram uma índia para lá, para substituir o [cacique] Raoni, para atacar o Brasil. Alguém viu algum alemão atacando a energia fóssil da Venezuela? Alguém já viu atacando a França porque lá a legislação ambiental não é nada perto da nossa? Ninguém critica o próprio país. Alguém já viu americano criticando as queimadas lá no estado da Califórnia? Não. É só aqui, pô”, afirmou o presidente.

A declaração atraiu, mais uma vez, o antiprêmio Fóssil do Dia, concedido de forma irônica por “seu tratamento horrível e inaceitável aos povos indígenas”. A Rede de Ação do Clima (CAN) elege desde 1999 os países que fizeram o melhor para atrapalhar as negociações do dia e a gestão de Bolsonaro recebeu quatro das seis indicações já feitas contra o Brasil.

Não é nem de longe o único ataque contra os direitos indígenas da gestão atual. Depois de vencer a corrida presidencial em 2018, Jair Bolsonaro prometeu: “No que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena”. Por enquanto, cumpre com a palavra, desrespeitando o artigo 271 da Constituição que prevê as demarcações.

Desde que Bolsonaro assumiu a Presidência da República, não houve nenhuma terra indígena identificada, declarada (autorizada a ser demarcada fisicamente) ou homologada. No governo anterior de Michel Temer, que até então detinha a pior marca de demarcações, houve apenas três terras declaradas e uma homologada.

A Bancada Ruralista no Congresso Nacional, apoiadora de Bolsonaro, reacendeu o chamado “Marco temporal da Terra Indígena”, que prega que novas terras só podem ser demarcadas para indígenas que estavam sob o território em disputa no dia 5 de outubro de 1988, data da publicação da Constituição.

Outro problema que afeta a gestão das terras indígenas é o financiamento da Funai. A agência obteve um aumento nominal do orçamento em 2021 (R$ 649 milhões), mas ainda está longe do que já teve. Em 2013, o orçamento da Funai era de R$ 870 milhões.

Txai Suruí, usando um cocar vermelho sobre um luz alaranjada

Txai Suruí foi um destaques da abertura da COP26. (Marcos Colón/Amazônia Latitude)

Além disso, o percentual do orçamento que depende de aprovação pelo Congresso subiu de 20% para 52%, aumentando as chances de não ser executado. Houve também uma tentativa do governo federal de tirar a Funai do Ministério da Justiça para realocá-lo na pasta da Agricultura e, depois, na da Mulher, Família e Direitos Humanos, mas o Congresso barrou a medida.

Na questão da diminuição do desmatamento prevista no acordo, outros órgãos federais, responsáveis por essa fiscalização, estão igualmente ameaçados. Desde janeiro de 2019, a área ambiental do governo já perdeu quase 10% dos servidores. A redução aconteceu tanto no Ministério do Meio Ambiente (MMA) quanto nos principais órgãos de fiscalização, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

Em 2021, o governo fez mais um corte de 4% no orçamento do Ibama e 12,8% no do ICMBio. Só para a ação de prevenção e controle de incêndios florestais nas áreas federais prioritárias, por exemplo, a proposta orçamentária atual prevê R$29,7 milhões, o que representa uma queda de 37,6% em relação a 2018.

As reduções do orçamento enfraquecem a capacidade operacional e deixam as agências mais dependentes do Exército e da Polícia Federal, sem expertise na área. Hoje, 22 dos 39 coordenadores regionais das agências ambientais são militares ou policiais.

Ainda no Ibama, a aplicação do instrumento mais eficaz para barrar o desmatamento, os chamados termos de embargo, despencou 60% nos seis primeiros meses de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, que já havia diminuído em relação a 2018.

Há políticas do governo, que se chocam com a Declaração das Florestas, virando projetos de lei, como o PL 2633/2020 (o “PL da Grilagem”) que permitiria que terras públicas desmatadas com até 2.500 hectares (o equivalente a 2.500 campos de futebol) se tornem propriedade de quem as ocupou irregularmente, desde que se cumpram alguns requisitos.

Apresentada pela base do governo na Câmara dos Deputados em 2020, quando o desmatamento da Amazônia atingiu o maior patamar desde 2008, com um crescimento de 9,5% em relação a 2019, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a iniciativa tem potencial de premiar desmatadores, além de estimular a destruição de novas áreas de floresta. A matéria aguarda votação no Senado.

“Por isso sou bem cética em relação à Declaração de Florestas”, explicou a bióloga Erika Berenguer. “Nada impede que daqui a pouco haja mais legalização do desmatamento, o jeito mais fácil de acabar com o desmatamento ilegal, assim como questionar os dados do desmatamento”, completou, aludindo ao apagão de dados oficiais no governo.

Em 2019, o ex-diretor do Inpe, Ricardo Galvão, foi demitido após Bolsonaro criticar os dados sobre desmatamento, os quais o presidente considerava falsos. As análises do INPE, no entanto, mostravam que mais de 1000 km² de floresta haviam sido derrubados na primeira quinzena de julho de 2019.

A retórica de Bolsonaro se concretiza como um estímulo indireto ao desmatamento. Fazendeiros e pecuaristas tinham a prática de, ao redor de áreas desmatadas, manter em pé uma faixa de floresta de 30 a 50m ao longo da estrada, com objetivo de criar uma barreira verde, uma parede, e enganar a fiscalização. Quando o Deter (Detecção de Desmatamento em Tempo Real) foi lançado, em 2004, tudo mudou.

“Comecei a ouvir dos fazendeiros que eles não podiam fazer nada porque estavam sendo observados de cima”, contou Berenguer. O que ela tem escutado nos últimos dois anos é que “o presidente falou que vai acabar com todas as terras indígenas”. “Existe uma retórica de impunidade, de flexibilização e desregulação da área ambiental e de pautas indígenas”, concluiu.

O último mês de outubro teve um recorde de alertas de desmatamento na Amazônia, segundo dados do Deter divulgados pelo Inpe na sexta-feira 12. Foram 876,56 km² desmatados, de acordo com 4.595 alertas no mês, o que corresponde à maior área devastada para outubro desde o início da série histórica, em 2015.

O lado bom — se é que ele existe — é que o Brasil teria capacidade de, possivelmente, zerar o desmatamento até 2030, se houvesse vontade política. Como a bióloga relembra, “nós já fizemos isso antes, para todos os efeitos”. Berenguer se refere ao Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), que, de 2004 a 2012, reduziu em 80% o desmatamento, mesmo intervalo de tempo em que houve um aumento de 75% no PIB do campo e de 37% na produção agrícola da Amazônia Legal.

Na época, houve uma articulação intensa entre repressão policial (Ministério da Justiça), fomento de atividades produtivas sustentáveis (Ministério do Meio Ambiente), monitoramento remoto do bioma (Ministério da Ciência e Tecnologia) e sanção financeira para autores de delitos ambientais (Ministério da Fazenda), com objetivo de levantar barreiras contra o avanço predatório, trocando o sistema de fronteiras abertas. De 2003 a 2008, o governo federal criou 25 milhões de hectares de unidades de proteção (um estado de São Paulo) e 7 milhões de hectares de reservas extrativistas (três Sergipes). Também foram demarcados 18,5 milhões de hectares de terras indígenas entre 2003 e 2006, área equivalente aos estados do Ceará e de Alagoas somados.

Ao mesmo tempo, foi criada a lista dos 36 municípios que mais desmatavam, que tiveram a obtenção de crédito rural restrita até limparem o nome. A Operação Arco de Fogo também surtiu efeito. PF, Ibama e Força Nacional agiram em conjunto para multar e embargar áreas nos municípios mais problemáticos de acordo com a lista, baseando-se em imagens de satélite.

Houve até mesmo uma medida que se articula com o segundo princípio do acordo assinado na COP26, que prevê o comércio de commodities desvinculadas de desmatamento: a Moratória da Soja de 2006. Em uma parceria de ONGs ambientalistas, encabeçadas pelo Greenpeace, entidades representativas de 90% dos processadores e exportadores de soja brasileiros — Bunge, Cargill e a Amaggi — e o governo federal, foi feito um pacto para “não comercializar soja oriunda de áreas desflorestadas dentro do bioma Amazônia após 24 de julho de 2006”. Antes da moratória, um terço das novas lavouras de soja ocupava áreas recém-desmatadas; depois, essa proporção despencou para 3%. Nos dois primeiros anos de vigência do pacto, a taxa de desmatamento no Oeste do Pará caiu 50%.

O que deve ser feito para alcançar a meta de 2030? O que já foi feito antes. Porém, há uma progressiva falta de recursos humanos, traduzida em demissões e na falta de concursos públicos, e é preciso alocar fundos para operacionalizar a proteção do meio ambiente e dos direitos indígenas.

O acordo assinado na COP26 prevê que os países ricos destinem conjuntamente US$ 12 bilhões de fundos públicos até 2025 para reduzir o desmatamento. São doze doadores: Reino Unido, Noruega, Coreia do Sul, Holanda, Bélgica, Dinamarca, Japão, França, Estados Unidos, União Europeia e Alemanha. Os países elegíveis para receber o fundo devem se encaixar na definição do ODA (Official Development Assistance), da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) — o que inclui países em desenvolvimento como o Brasil.

O setor privado também se juntou ao anúncio, prometendo mais US$ 7,2 bilhões. Entre as empresas doadoras estão a Coalizão Leaf, voltada à compensação de emissões através da conservação florestal, que indicou um aporte de US$ 500 milhões, e a Iniciativa IFACC (Innovative Finance for the Amazon, Cerrado and Chaco), que prometeu US$ 3 bilhões, voltados a desvincular o desmatamento da produção de soja e gado na América Latina.

A influência internacional tem o potencial de gerar alguma pressão para que o Brasil cumpra com a meta. Governos que representam 75% do comércio global de commodities essenciais que podem ameaçar as florestas — como óleo de palma, cacau e soja — também assinarão uma nova Declaração de Florestas, Agricultura e Comércio de Commodities (FACT) para favorecer o comércio sustentável e melhorar a transparência das cadeias de abastecimento, cortando fornecedores ligados ao desmatamento. “Isso vem ganhando apoio interno dos governos e da população da Inglaterra e União Europeia, e pode apresentar um grande problema para o Brasil”, avaliou Berenguer.

Ainda não se sabe de que forma esse dinheiro será recebido e sob quais condições. Para quem vai o dinheiro? Como? Quando a meta de zerar o desmatamento for atingida? Uma parte antes, para financiar ações de combate, e uma parte depois, quando a meta for cumprida?

No caso do Brasil, ainda por cima, a comunidade internacional está ciente de que o governo não tem vontade política de diminuir o desmatamento: há quase três anos, desmoraliza o Inpe, que monitora o desmatamento, o Ibama, que controla o desmatamento, e substituindo experts pelo Exército inexperiente na área. Como fica o financiamento de um país com essa imagem? Muitos pontos do acordo permanecem incógnitas.

Para a pesquisadora de Oxford, que está atendendo a COP pela primeira vez, a Declaração de Florestas possui dois objetivos principais para o governo Bolsonaro. O primeiro é uma tentativa de apaziguar a comunidade internacional, já que o Brasil é cada vez mais mal visto. Já o segundo pode ter sido um sinal para a eleição.

Segundo uma pesquisa do Instituto Clima e Sociedade (iCS), publicada em agosto, 83% dos brasileiros falaram que a Amazônia é uma parte fundamental de sua identidade como brasileiros e 80% diz que deve ser prioridade para candidatos à presidência no ano que vem. Assim, a assinatura pode se traduzir em uma jogada eleitoreira esvaziada.

A pesquisadora ressalta que, mesmo se o atual presidente for reeleito para um segundo mandato de 2023 a 2026 e ainda assim não trabalhar para reduzir o desmatamento — “não vejo grandes chances de mudanças, com base na retórica do presidente e de seus ministros e ex-ministros” —, ele pode sair ileso.

Como o acordo não tem metas intermediárias, Bolsonaro ainda sairá do cargo dois anos antes do prazo de 2030, deixando o problema de herança para o próximo presidente. “No atual formato, o acordo é bem conveniente para Bolsonaro. Como muitos dos criminosos ambientais brasileiros, ele deve sair impune”, disse Berenguer.

 
 

Você pode gostar...

Translate »