Destruição da Amazônia pode transformá-la em berço de novas epidemias, revela pesquisa
Segundo autor do estudo publicado na revista Anais da Academia Brasileira de Ciências, a luta contra a crise climática é, também, uma luta pela saúde da humanidade
Ações humanas como o desmatamento na Amazônia podem fazer com que novas doenças, epidemias e pandemias surjam a partir da floresta, segundo o estudo “Synthesizing the connections between environmental disturbances and zoonotic spillover” (“Sintetizando as conexões entre distúrbios ambientais e transbordamento zoonótico”, em tradução livre), publicado em setembro nos Anais da Academia Brasileira de Ciências.
O estudo foi feito por 19 pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na França, entre outras instituições. Trata-se de uma revisão narrativa que discute o conceito de spillover – salto de agentes causadores de doenças de uma espécie para outra – com base na literatura científica selecionada pelos autores em bases de dados internacionais.
“Spillover pode ser traduzido como ‘salto de patógenos’ entre diferentes hospedeiros”, explica Joel Henrique Ellwanger, biólogo, doutor em Genética e Biologia Molecular e um dos autores do estudo. “O termo é usado para abordar um patógeno que foi transmitido de uma espécie selvagem para a população humana.”
No estudo, os autores explicam o conceito de salto de patógenos, os agentes causadores de doenças, com base em exemplos e modelos de diferentes regiões do mundo. Ao final, pela afinidade dos autores, se aprofundam na temática sobre a Amazônia.
O salto dos agentes causadores de doenças de uma espécie para outra é algo que acontece espontaneamente na natureza, por diversos fatores, que envolvem desde o estresse das espécies até o compartilhamento de habitat. Mas algumas ações humanas – chamadas de distúrbios antropogênicos – podem intensificar esse processo e colocar a espécie humana em contato direto com animais hospedeiros de diferentes patógenos. Em humanos, esses agentes podem se transformar em doenças e originar novas epidemias e pandemias.
Entre as ações humanas que podem gerar eventos de spillover estão o desmatamento, a caça e comercialização de animais selvagens, a mineração e o avanço da área de cidades para regiões onde há vida selvagem.
“Os distúrbios antropogênicos facilitam os eventos de spillover porque aproximam os humanos das populações de animais silvestres e seus patógenos, além de atrapalharem o funcionamento de serviços ecossistêmicos e mecanismos ecológicos que regulam e mantêm a circulação normal de patógenos entre as populações de animais silvestres”, diz Ellwanger.
Ou seja, distúrbios antropogênicos podem, por exemplo, reduzir populações de predadores e, consequentemente, aumentar populações de espécies transmissoras. Os autores citam como exemplo a proximidade entre humanos e morcegos – que podem ser vetores de diferentes patógenos – em inúmeras partes do mundo, e a grande quantidade de cães – que podem transmitir a leishmaniose – em centros urbanos na América Latina.
Em relação à Amazônia, a principal preocupação dos pesquisadores são os mosquitos. Já existem espécies transmissoras de várias doenças, como o mosquito Anopheles (Nyssorhynchus) darlingi, que é um vetor da malária. As ações que promovem o desmatamento da floresta podem resultar no aumento dessas populações de mosquitos e em uma maior proximidade do ser humano com elas, o que pode aumentar as chances de infecção dos humanos.
De acordo com o biólogo Ellwanger, as principais atividades humanas que acontecem na Amazônia e podem transformá-la em berço de novas doenças são a mineração, o plantio de monoculturas e a criação de gado.
“Essas atividades estão relacionadas de forma direta com o desmatamento. Por esse motivo, podemos dizer que o principal fator antropogênico a ser monitorado e controlado na Amazônia é o desmatamento, pois ele é um reflexo das atividades de exploração e degradação que ocorrem na floresta”, afirma.
O estudo destaca, ainda, que os custos de lidar com uma pandemia são maiores que os custos de prevenção, lidando com as atividades que podem originá-la.
“Os custos para mitigar uma pandemia como a de COVID-19 são muito maiores (estimados entre US$8,1 trilhões e US$15,8 trilhões) do que o montante necessário para evitar os principais fatores que provocam eventos de doenças infecciosas emergentes, estimado entre US$17,7 bilhões e US$26,9 bilhões por ano”, escrevem os autores.
“Em outras palavras, as ações de conservação protegem o meio ambiente, limitam a propagação de doenças infecciosas e são mais baratas do que suportar o fardo de eventos de doenças infecciosas emergentes”, diz a pesquisa.
As medidas de prevenção sugeridas pelos pesquisadores envolvem a proteção e criação de mais terras indígenas (TIs), visto que a preservação florestal nas TIs é maior, e o controle do desmatamento. Os autores alertam para o perigo da proposta de lei 191/2020, que abre as terras indígenas à mineração e outras atividades de exploração de recursos naturais.
Segundo o estudo, o desmatamento na região amazônica diminuiu cerca de 70% entre 2005 e 2012, em parte devido a políticas governamentais que terminaram sob o governo que tomou posse em janeiro de 2019. “Mas o potencial para controlar o desmatamento através de políticas governamentais continua sendo uma lição essencial”, afirma o estudo.
Uma lição essencial, inclusive, para o combate à crise climática. Ellwanger salienta que as atividades antropogênicas conectadas aos eventos de spillover estão ligadas, também, à crise climática. Afinal, o desmatamento e o crescimento desenfreado de cidades, sem a devida preocupação ambiental, são responsáveis pelo aumento na liberação de gás carbônico, um gás de efeito estufa, na atmosfera.
Um dos exemplos mais práticos utilizados por Ellwanger é o de que o aumento da temperatura do planeta e de chuvas pode favorecer a proliferação de mosquitos e de patógenos transmitidos pela água.
Florestas como a Amazônia têm um papel fundamental na regulação do clima regional e global. Por isso, explica o biólogo, o combate ao desmatamento no Brasil é uma estratégia fundamental para o controle das mudanças climáticas e, ao mesmo tempo, para reduzir os riscos relacionados às doenças infecciosas emergentes.
“O controle do desmatamento na Amazônia e das mudanças climáticas é uma questão de saúde pública urgente”, diz.
Para Ellwanger, o estudo é um alerta para os riscos de saúde pública associados com a devastação da Amazônia. E o controle do desmatamento na Amazônia e das mudanças climáticas é, além de um tema ambiental, uma questão de saúde pública urgente.