Está na moda ser índio? Um debate sobre cinema indígena no IV FIFEP

Montagem de fotos do cineasta Vincent Carelli (canto superior esquerdo), o pensador indígena Ailton Krenak (canto superior direito), a produtora indígena Jazz Mota (canto inferior esquerdo) e o cineasta indígena Takumã Kuikuro (canto inferior direito)
Vincent Carelli, Ailton Krenak, Jazz Mota e Takumã Kuikuro: um debate de gigantes. (Foto: Wiki Commons/ Reprodução)
Pesquisadores, cineastas e proeminentes nomes da antropologia visual no Brasil conversam sobre o papel do cinema nas sociedades indígenas

O IV Festival Internacional do Filme Etnográfico do Pará coroou sua mostra de cinema no sábado, dia 21, com um debate qualificado sobre cinema indígena. Na sala de projeção do cinema Líbero Luxardo, expoentes do cinema etnográfico no Brasil e no mundo reuniram-se para uma roda de conversa mediada pelo organizador do evento, Alessandro Campos.

Entre os participantes, estavam o cineasta Takumã Kuikuro, o filósofo e pensador Ailton Krenak, a produtora Jazz Mota, o documentarista Vincent Carelli e o antropólogo Renato Athias.

A intenção da programação era “dividir experiências e compartilhar histórias sobre as produções e vivências cinematográficas que os convidados viveram”, segundo Campos. Uma conversa descontraída, sobre tema sério, para discutir o cenário da antropologia visual no país.

Des-ocidentalização do pensamento

Renato Athias, etnólogo com vasta experiência na área de antropologia visual, foi quem abriu a mesa. Ele falou sobre uma vivência recente com indígenas das etnias Baniwa e Kuripako, na fronteira do Brasil com a Colômbia.

A produção, que foi exibida em escolas indígenas da região, era sobre o mito da criação da noite. Para criar uma história “consensual”, foi feita uma espécie de curadoria de versões do conto, que também revelou uma questão muito presente nas aldeias: a grande quantidade de igrejas católicas e evangélicas no território indígena.

“Fez parte da negociação essa questão do resgate ao passado. Aquele passado que foi absorvido pela cultura ocidentalizada”, afirmou Athias. “Muitos personagens são espíritos, animais, o que também se relaciona com o afastamento da cultura ocidental, que põe o homem no centro de tudo, na criação de todas as coisas.”

A distribuição nas escolas também ajudou, segundo o pesquisador, no resgate dos saberes tradicionais. O filme produzido em parceria com os indígenas Baniwa e Kuripako, “Procurando o Sono”, está disponível na plataforma digital dos periódicos da Universidade Federal de Pernambuco.

O desafio da cultura no Brasil

Para Vincent Carelli, vivemos um “pavoroso momento político” em relação à produção cultural, e ele lembrou a gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura com honras.

“A revolução cultural que aconteceu durante a gestão de Gil e do Lula proporcionou muitas produções incríveis na área indigenista. Mas mesmo que o cinema, a arte e todo mundo que está envolvido nesses trabalhos tenham sido classificados pelo atual governo como inimigos, não devemos desistir”, afirmou.

Carelli também deu destaque ao número de inscrições recorde do IV FIFEP. Para ele, a qualidade e a diversidade das produções demonstram que existe “muita gente boa espalhada por aí”. Esse protagonismo indígena nas artes é importante, segundo o pesquisador, porque coloca suas causas no centro do debate público.

“Está na moda ser índio, e isso é muito bom”, diz, comemorando a abertura e ocupação de espaços por povos tradicionais, como o FIFEP.

Ocupando espaços

Jazz Mota, produtora cultural e organizadora do Ava Amazônia Festival, é descendente das etnias Tupinambá e Guarani. Ela contou que a inspiração para a criação do festival Ava nasceu durante a pandemia, enquanto ela ainda morava na Itália. Segundo sua idealizadora, é uma plataforma fundamentada em quatro pilares: a Mostra de Cinema, o fundo permanente de incentivo a produções indígenas e comunidades tradicionais, o incentivo ao empreendedorismo indígena e o cinEduca – uma plataforma de educação pelo cinema. Mas a construção de tudo isso não veio sem dificuldades.

“Quem produz na Amazônia sabe que estamos a mercê dela, desse ser vivo que comanda tudo. Ela que diz quando vamos sair para gravar”, afirmou a produtora.

Para ela, a experiência de organizar um festival do tamanho do Ava é única, e mostra a quantidade imensa de pessoas que têm vontade de produzir, expor e contar suas histórias.

Praticamente uma mostra itinerante, o Ava exibiu seus filmes em mais de dez lugares, que não necessariamente foram cinemas. Jazz diz que o cinema ainda não abriu espaço para uma ocupação que não seja comercial ou ligada a grandes centros.

“Penso o cinema como um lugar que precisa abrir suas portas para essas produções. Porque se não houver um festival específico para cinema indígena, essas produções somem. É surreal, ainda mais se a gente pensar que estamos na Amazônia”, critica.

O cineasta Takumã Kuikuro, que acaba de estrear um novo filme no festival de Roma, também falou sobre a sua experiência com a área de produção audiovisual. Aprendendo português ao mesmo tempo que aprendia a manusear os equipamentos, Takumã trilhou uma carreira brilhante desde o primeiro contato com o cinema, em 2002. Documentarista experiente, ele ressalta que ainda falta de incentivo público às produções feitas em aldeias.

Takumã também teceu críticas sobre a não circulação dos filmes produzidos dentro das aldeias e da espetacularização dos rituais e da cultura indígena.

“Os documentários querem resgatar a cultura, os rituais, mas não é só isso. Existem outras questões, outros problemas. Também produzimos ficção indígena, e produzimos muito bem”, diz.

Para o cineasta, a produção indígena do momento não ocupa, mas fura as telas dos cinemas “tradicionais”, no sentido de que existe uma força constante de impedimento da veiculação desses filmes.

Para além disso, Takumã também refletiu sobre o seu próprio lugar de estigmatização. “A ocupação desses espaços me leva a pensar em quem está tendo acesso a esses filmes. É num cine clube, numa sala de cinema, numa universidade? E quem sou? Será que sou só um cineasta indígena, ou eu sou um cineasta?”

Alessandro Campos, coordenador do FIFEP, ecoou as opiniões de Takumã sobre o incentivo público às produções. Neste ano, segundo ele, muitos filmes inscritos para o prêmio Jean Rouch, de filmes etnográficos, receberam apoio financeiro do Governo Federal pela Lei Aldir Blanc, enquanto as obras inscritas na categoria Divino Tsewarahú, de filmes indígenas, mal receberam financiamento governamental.

Para o coordenador do evento, a ampliação da distribuição desses recursos é imprescindível para a produção cinematográfica nas aldeias.

O pensador e filósofo indígena Ailton Krenak encerrou a roda de conversa falando sobre questões de representatividade. Em meio a críticas à ocidentalização forçada dos costumes dos povos indígenas, ele defende uma busca pelo resgate dessas origens.

“Por mais que tenham apagado nossa história, nossa memória, isso não nos limita a produzir conteúdo sem brilho. Nós contamos nossas histórias a todo instante, atravessamos bolhas”, diz.

Krenak também criticou a fala de Carelli sobre “estar na moda ser índio”. Para ele, o que está “na moda” é ter uma origem, um pertencimento a algum lugar.

“Nós somos tão completamente descolados da terra que nos obrigam a pensar em uma situação de desumanização, de distanciamento às nossas origens”, explica. O fato dos indígenas Baniwa e Kuripako terem contos que distanciam os seres humanos das narrativas, por exemplo, conversam com essa questão. Eles dão voz a não humanos para refletir sobre questões que os indígenas já discutem há muito tempo.

Além disso, Krenak diz que a centralização da Amazônia brasileira na produção cinematográfica indígena é um problema. Segundo ele, é preciso afastar-nos da concepção “eugenista” de que só importa a floresta nacional.

“Precisamos fortalecer a perspectiva de que somos todos Pan-Amazônicos. Bolívia, Peru, Colômbia – todos somos uma grande nação internacional”, afirma. O cinema indígena, para o pensador, é uma ferramenta de reconstrução de narrativas importantíssima para o resgate dessa cultura.

Ana Vitória Monteiro Gouvêa é graduanda em jornalismo da Universidade Federal do Pará (UFPA). Foi bolsista de iniciação científica, além de colaboradora da Revista Brasileira de História da Mídia e do projeto DivulgAí. Estagia na TV Liberal e está produzindo um documentário sobre Barcarena, vencedor do Prêmio Jovem Jornalista 2022 do Instituto Vladimir Herzog.
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