Karitiana: entre a criação da vida e sua quase perda

Capa do livro "Não havia mais homens", organizado por Luciana Storto. Ao lado da capa, uma fotografia mostra um ritual Karitiana com alimentos organizados no chão e vários indígenas sentados ao redor dos alimentos.
Foto: Pib Socioambiental/Reprodução

Conhecer o modo de pensar dos povos indígenas é uma das maneiras de os não indígenas diminuírem seus preconceitos, como incentiva o livro “Não havia mais homens”

Não havia mais homens (Hedra, 2022) reúne quatro narrativas Karitiana, contadas por Cizino Karitiana, Garcia Karitiana e Barabadá Karitiana, organizadas por Luciana Storto. A palavra karitiana foi atribuída a esse povo pelos não indígenas no início dos violentos contatos, ocorridos nas primeiras décadas do século XX. Localizados no estado brasileiro de Rondônia, o povo atualmente vive em sete aldeias, sendo que duas estão fora da Terra Indígena Karitiana e se configuram como espaços de retomada.

A parte pré-textual do livro começa por uma “Apresentação”, que descreve sucintamente a família linguística à qual a língua karitiana está ligada (família Tupi, subfamília Arikém), os primeiros registros históricos desse povo, sua população e localização.

Em seguida, há uma explicação breve sobre como os linguistas trabalham com as narrativas de uma língua e uma seção intitulada “Para ler as palavras karitiana”. As quatro narrativas que seguem aparecem com o seguinte modelo: uma sinopse da narrativa, em um parágrafo, a narrativa em português, e a narrativa em karitiana. Uma escolha feliz, e pouco comum nas publicações de narrativas indígenas no Brasil, é a presença de uma pequena sinopse que prende a atenção e prepara o leitor para o texto que segue.

Merece nota, ainda, o caráter bilíngue das narrativas, com a versão da língua indígena cuidadosamente trabalhada pelos indígenas Nelson Karitiana, Inácio Karitiana, João Karitiana, Luiz Karitiana e Valdomiro Karitiana, pesquisadores cuja expertise é a língua indígena desse povo, bem como Luciana Storto, Karin Vivanco e Ivan Rocha, com a colaboração da antropóloga Íris Morais Araújo.

A escolha das narrativas também foi acertada. Ailton Krenak, na apresentação do livro Ynyxiwè que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá (Ikorê, 2014), afirma: “Nossas histórias, aquelas que alguns chamam de ‘mito’, são mesmo o relato da criação, onde está fundada a nossa memória de tempos que não foram registrados”. O livro Karitiana centra-se nesses relatos de criação da vida do povo, configurando-se como exemplar iniciativa de divulgação do pensamento indígena.

Usando a belíssima explanação de Krenak, podemos dizer que as duas primeiras narrativas, Gokyp, o Sol, e Oti, o Lua, relatam a própria criação da vida, da forma como a entendem os Karitiana. Essas histórias nos presenteiam com uma pequena amostra de como os povos ameríndios explicam a origem desses elementos extraordinários e estabelecem uma conexão entre esse último com a menstruação.

Nas narrativas seguintes, o livro passa do tema da criação da vida para abordar, de forma muito comovente, eventos de (quase) perda da vida entre os Karitiana. Osiip é um ritual de iniciação masculina que tem o objetivo de tornar um menino um bom caçador, ou seja, um caçador para quem a caça se torna mansa, pois o caçador porta permanentemente tornozeleiras e um cinto, invisíveis para os humanos, “que cheiram bem”. Assim, a flecha do caçador “encontra sozinha o seu caminho até a caça”.

A prova que torna o menino um homem consiste em perfurar, por várias vezes, vespeiros usando as próprias mãos e braços. A dor relatada por Cizino Karitiana emociona: “As vespas vermelhas me fizeram desmaiar”. Conhecer o modo de pensar dos povos indígenas é uma das maneiras de os não indígenas diminuírem seus preconceitos acerca dos povos originários, e o livro proporciona tal momento de aprendizagem, de respeito e de emoção.

O último texto narra como os Karitiana vêm se posicionando de maneira resiliente diante de fatos trágicos que os acometeram. A violência e a transmissão de doenças, como a gripe e o sarampo, perpetradas pelos não indígenas, os deixaram muito perto da extinção, reduzindo-os a apenas 64 pessoas em 1970, e gerando um desequilíbrio demográfico entre homens e mulheres.

Naquele momento, havia dois grupos locais. Embora ambos fossem falantes da língua Karitiana, eles viviam de modo separado e autônomo. Após muitos encontros diplomáticos, para caçar, conversar, cozinhar e comer juntos, ambos os grupos aceitaram tornar-se um, realizar casamentos e viver uma nova vida – a única possível frente ao desaparecimento iminente. O trecho do relato de Barabadá desvela o teor político do discurso durante os primeiros encontros: “Ah, vocês são como nós, nós somos vocês. Nós fomos feitos da mesma parte do cabelo do Byjyty”, o neto de “Deus” para os Karitiana.

A obra é uma incontestável evidência do quão importante é o registro de textos de uma língua minorizada. Esses documentos contribuem para salvaguardar as histórias de um povo e beneficiam o público indígena e não indígena, permitindo diferentes usos. Podem ser uma referência literária para fortalecimento da língua nas escolas indígenas Karitiana, mas também atendem, nas escolas não indígenas, a determinação da lei 11.645/2008, que obriga o ensino de cultura afro-brasileira e indígena em todos os estabelecimentos de ensino básico do Brasil.

Pensando em uma segunda edição, elenco a seguir algumas sugestões quanto à forma e ao conteúdo da obra. Quanto à capa, seria interessante a presença do título também em Karitiana. Na parte pré-textual, na seção sobre a ortografia da língua, seria necessário diferenciar os grafemas (as unidades do sistema de escrita) dos fonemas (as unidades do sistema fonológico), com uma explicação mais completa dos respectivos inventários. Por exemplo, vogais longas e nasais não são mencionadas, bem como dígrafos como mb, nd e ng.

As narrativas são apresentadas em linhas, alinhadas à esquerda, e em estrofes, assemelhando-se a versos. As linhas são enumeradas de cinco em cinco, em cada página, na margem esquerda, para permitir uma localização aproximada de sentenças entre as versões em português e em karitiana.

De modo geral, a apresentação de narrativas indígenas escritas tem variado: aparecem em linhas individuais separadas, em versos ou em forma de prosa, com parágrafos. Dada a natureza oral dos dados linguísticos primários a que correspondem as transcrições e traduções, teria sido importante justificar a escolha da apresentação escrita das narrativas Karitiana.

Como última sugestão, dada a natureza multimodal da linguagem, eu diria que a possibilidade de escutar e/ou ver as narrativas, abrigadas, por exemplo, em um sítio da Internet, complementaria de forma excepcional o livro, dando-lhe vida fora das páginas. Proporcionaria não apenas o deleite da literatura oral, mas uma compreensão mais precisa de músicas, gestos, dêiticos, movimentos e expressões.

Antônia Fernanda de Souza Nogueira é doutora em Linguística e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Livro: Não havia mais homens
Autora: Luciana Storto
Editora: Editora Hedra
Ano: 2022
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