O protagonismo indígena na formação da Paraíba

Povos originários fizeram casamentos, alianças e guerras decisivos para as capitanias do Brasil colonial

Igreja de São Frei Pedro Gonçalves em João Pessoa, Paraíba
Igreja de São Frei Pedro Gonçalves, em João Pessoa (PB) -Foto: Matheus Jampa da Silva

[RESUMO] Antes mesmo da chegada dos europeus ao Nordeste brasileiro, a região do Rio Paraíba do Norte era disputada por sociedades indígenas locais (principalmente Kariri e Tarairiú) e povos do tronco Tupi (como os Tabajara e os Potiguara) que migraram da floresta amazônica rumo à costa. A partir do século 16, alguns desses povos se aliaram aos portugueses (inclusive por meio de casamentos), com o objetivo de vencer os rivais, evitar a escravidão e ascender socialmente.

A minha tese inicia-se com o questionamento de uma bibliografia local sobre a História da Paraíba, que evidenciou as ações europeias em detrimento do protagonismo indígena no processo de fundação da Capitania Real da Paraíba, em 1585.

Dialogando com a Antropologia, entendi que as migrações que trouxeram as sociedades Tupi da Amazônia para a região onde hoje fica João Pessoa (PB) foram motivadas pela necessidade de guerras contra inimigos tradicionais chamados pelos Tupi de “Tapuia” – os primeiros habitantes da região, com destaque para os povos Kariri e Tarairiú.

Os Tabajara (povo pertencente ao tronco Tupi) foram os primeiros a fazer guerra contra os Kariri que habitavam as margens do Rio Paraíba, expulsando-os para o interior ou o sertão. À época, não havia distinção entre as sociedades Tupi, Tabajara e Potiguara. Isso só se definiu após o domínio do espaço territorial em torno do Rio Paraíba, pouco tempo antes da chegada dos colonizadores.

Estudos antropológicos clássicos sobre as migrações Tupi, como os trabalhos de Alfred Métraux e Florestan Fernandes, defenderam a hipótese de elementos presentes na cosmologia destes povos como motor para os deslocamentos. Na minha tese, defendo que há dois motivos principais para a migração.

O primeiro deles é a busca por novas guerras para a realização da predação ontológica – conceito presente nas obras do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Ou seja: a incorporação de valores do Outro para a produção de novas pessoas e indivíduos no grupo predador Tupi

O segundo motivo é a busca da terra perdida: um lugar sagrado localizado além-mar, onde as almas dos grandes guerreiros descansam após as batalhas.

A partir da conquista do Rio Paraíba, os Tabajara e os Potiguara, ambos povos Tupi, dividiram-se pelo controle das margens: ao norte localizavam-se os Potiguara; à margem sul, os Tabajara; no interior e sertão, os Kariri e Tarairiú. Inúmeras guerras entre estas sociedades indígenas ocorreram antes da chegada dos colonizadores à América.

A chegada portuguesa e a necessidade de alianças

Os europeus precisaram se inserir na lógica das guerras Tupi para criar alianças com determinados grupos e incrementar a rivalidade com outros. Isso permitia que colonizadores e indígenas aliados pudessem conquistar o território inimigo.

Houve matrimônios para fechar os acordos ou alianças entre grupos Tupi e os colonizadores. A transformação do inimigo ou do estrangeiro (o Outro) em parente era um costume nos grupos Tupi antes da presença europeia, conforme demonstram diversos estudos históricos e antropológicos. O inimigo, feito prisioneiro de guerra, casava-se com a filha ou a irmã do chefe Tupi antes de ser morto no ritual antropofágico. A ideia de predação era transformar o Outro em parente, consumi-lo simbolicamente para a apropriação dos seus valores e a produção de novos indivíduos no grupo.

Os europeus não somente entenderam a lógica da predação Tupi, como também vieram a substituir os tradicionais inimigos, casando-se com as filhas dos chefes. Foi o caso de Jerônimo de Albuquerque, cunhado de Duarte Coelho, donatário de Pernambuco, o qual casou-se com a filha do chefe Tabajara Arco Verde.

Alguns valores cristãos, como o casamenteo europeu, foram predados ou incorporados pelos Tabajara aliados e produziram novos indivíduos, que não mais necessitavam realizar a poligamia ou o ritual antropofágico. Dentro de uma perspectiva histórica, ao longo da tese vemos como o conceito de predação ontológica vai mudando com a passagem dos séculos. Por exemplo, os Tabajara perceberam que o novo contexto exigia a aliança com os portugueses para a manutenção das terras, a expansão do território e escapar da escravidão. Os Tabajara transformaram-se em novos indivíduos: os “índios coloniais”, conceito elaborado pela historiadora Maria Leonia Chaves de Resende.

Entretanto, os indígenas Tabajara, mesmo aliados, acabaram sendo escravizados ao longo da colonização de Pernambuco. Muitos ainda morreram por causa das doenças trazidas pelos colonizadores. Assim como os Tabajara, indivíduos de povos como Tupinambá, Kaeté e Potiguara optaram pelas migrações pelo interior, de volta para a Amazônia. Muitos indígenas que viviam em Pernambuco, Itamaracá e às margens do Rio Paraíba passaram a habitar os territórios mais ao norte, como os que correspondem aos estados do Ceará, Piauí, Maranhão e Pará.

Com o fracasso das capitanias hereditárias, Portugal resolveu empreender guerras nos territórios em que os capitães donatários enfrentavam a resistência de indígenas locais. Passou-se a pensar em tomar o território às margens do Paraíba dos Potiguara.

De 1574 até 1585, quatro expedições foram encomendadas pela Coroa portuguesa e todas fracassaram diante da forte resistência dos Potiguara. Em grande parte desse período, os Tabajara e os Potiguara, antes inimigos, se uniram contra os colonizadores.

Em 1585, o ouvidor-geral, Martim Leitão, destruiu o acampamento onde estavam as tropas Tabajara lideradas por Piragibe. Os Potiguara resolveram punir os Tabajara pela derrota para as tropas portuguesas. Martim Leitão aproveitou-se da desavença para firmar novo acordo de paz com Piragibe, que viu uma oportunidade para obter terras, evitar a escravidão e derrotar seus tradicionais inimigos indígenas.

A quinta e última expedição, organizada por Martim Leitão, só logrou sucesso porque a colaboração dos Tabajara, liderados por Piragibe, foi decisiva.

No dia 5 de agosto de 1585 foi realizado um acordo de paz entre os colonizadores, representados na oportunidade por João Tavares, e o chefe Tabajara, Piragibe, nas margens do Paraíba. De forma equivocada, a historiografia tradicional paraibana comemora esta data como a data de fundação da cidade de Nossa Senhora das Neves (atual João Pessoa). Os documentos da época não provam a edificação de nenhuma cidade ou povoado. Somente a partir da 4 de novembro de 1585 a cidade de Nossa Senhora das Neves começou a ser edificada, conforme demonstrou o “Sumário das Armadas”, crônica que conta as guerras de fundação da capitania da Paraíba escrita pelos jesuítas que participaram das empreitadas.

A recuperação do protagonismo indígena na História

A minha tese é um contraponto à produção historiográfica paraibana que enalteceu as ações europeias e esqueceu-se do protagonismo indígena. Os indígenas compuseram a maioria dos indivíduos presentes nas tropas de ambos os lados da guerra.

A historiografia paraibana ressalta o interesse de famílias pernambucanas que gastaram capital para conquistar o território dos Potiguara e expandir o negócio do açúcar para a região mais ao norte de Pernambuco de Itamaracá. No entanto, quais eram os interesses dos Potiguara e Tabajara, e de outros indígenas nas guerras da Paraíba?

Esta pergunta era uma lacuna que tentei preencher. Os interesses dos povos indígenas Tupi estavam na predação dos valores do Outros, fazendo novas guerras contra inimigos tradicionais, na conquista de territórios e na luta contra a escravidão.

Para a Coroa portuguesa, tornava-se preciso a conquista de outros territórios ao norte da Paraíba. E a participação de indígenas aldeados na Paraíba foi decisiva para alguns sucessos: a fundação da Capitania Real do Rio Grande em 1599; a colonização no Ceará (a partir de 1605); a conquista do Maranhão acompanhada da expulsão dos franceses em 1614; e a formação do povoado de Santa Maria de Belém do Grão-Pará (1616).

O papel das famílias de ‘índios coloniais’

Em muitas destas empresas participaram não somente indígenas aldeados na Paraíba, notadamente os Tabajara, mas também os “índios coloniais” descendentes do casamento dentre Jerônimo de Albuquerque e a indígena Tabajara batizada como Maria do Espírito Santo Arcoverde, filha do chefe Tabajara Arco Verde, em Pernambuco.

A família Albuquerque e Arcoverde fazia questão de enaltecer sua origem Tabajara nos documentos coloniais para obter vantagens e privilégios, por este ter sido o primeiro povo a fazer aliança com os portugueses na colonização de Pernambuco. Os membros desta família obtiveram muitas terras e recompensas pelos serviços de guerra prestados na conquista da Paraíba, Rio Grande e Maranhão.

A família Camarão foi outra de origem indígena bem recompensada. Era composta por indígenas Potiguara, do líder Potiguaçu (o “Camarão Grande”), que foi decisivo para a fundação da capitania do Rio Grande em 1599, quando resolveu acabar com a guerra e optar pela paz com os colonizadores.

As recompensas obtidas pelas famílias indígenas Arcoverde (Tabajara) e Camarão (Potiguara) eram uma nova forma de predação e incorporação de valores europeus praticado por tais indígenas pertencentes aos povos Tupi. Os membros das referidas famílias obtiveram mobilidade social e faziam questão de mostrar a sua posição superior na hierarquia social contra inimigos indígenas pertencentes a outros povos, muitos deles escravizados pelos portugueses.

Em outras palavras, os inimigos tradicionais continuavam casando-se para a realização da predação ontológica em outro contexto marcado pela incorporação de valores europeus como a mobilidade e ascensão social que lhes garantiam a manutenção das terras coletivas e a expansão do seu território.

Os descendentes das famílias Arcoverde e Camarão faziam questão de enaltecer as suas origens indígenas para não cair na invisibilidade ou nas classificações de caboclos ou mestiços. Isso porque a legislação portuguesa garantia direitos diferenciados para indígenas aliados, como a preservação das terras e a proibição da escravidão.

A tese “A mobilidade social das lideranças indígenas tabajara e potiguara na Paraíba e demais capitanias do norte do brasil (Séculos XVI – XVIII)” está disponível na íntegra neste link.

Jean Paul Gouveia Meira é professor efetivo de História da Rede Pública do Governo do Estado da Paraíba. É doutor em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e graduado em História pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).

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