Resenha: Filme ‘O Rio do Desejo’ reproduz olhar estrangeiro sobre a Amazônia

Adaptação do conto de Milton Hatoum, longa-metragem acerta ao não estereotipar personagens, mas traz uma visão exótica e sem ambientação sociopolítica

Foto: Divulgação/Adrian Tejido

Foto: Adrian Tejido/Divulgação

O Rio do Desejo (2023)

Direção: Sergio Machado
Elenco: Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira, Gabriel Leone, Rômulo Braga, Jorge Paz e Coco Chiarella
Roteiro: Sergio Machado, George Walker Torres, Maria Camargo e Milton Hatoum
Direção de fotografia: Adrian Tejido
Direção de arte: Adrian Cooper
Produção: Rodrigo Castellar, Pablo Torrecillas, Caio Gullane e Fabiano Gullane
Distribuição: Gullane

Ocupando praticamente a metade do território, brasileiro a Amazônia adentrou o século 21 ainda como uma esfinge cujo enigma parece continuar a lançar o desafio: ‘decifra-me ou te devoro’.

Os olhares sobre a Amazônia geralmente são oriundos do jornalismo ou de produções audiovisuais realizadas por empresas produtoras de fora da região (ou do país) e pretendem abarcar uma totalidade na qual o olhar nativo muitas vezes é ignorado. Fazem parte de uma concepção que reveste a região ora de um exotismo primitivo, ora de uma terra sem lei, fadada a ser alvo eterno de ameaças exploratórias.

Imiscuir-se nesse território com esse olhar enviesado –e consequentemente, viciado– é certeza quase absoluta de incorrer no mesmo erro já tantas vezes cometido.

Uma imagem recorrente e que pode simbolizar essa dicotomia amazônica entre uma modernidade tardia e uma pós-modernidade incipiente é a que mostra o pescador ribeirinho remando em sua canoa, chegando em sua casa de madeira à beira do rio, acionando o motor a diesel que vai permitir a iluminação elétrica e ligando o aparelho de TV, captando as imagens do mundo a partir de uma antena parabólica que está fincada no quintal úmido de sua residência.

Essa personagem parece estar inserida num universo paralelo, mas ao mesmo tempo está à parte. Vivencia valores diferentes de tempo e espaço. Se pode assistir à programação cotidiana da TV, está imune aos apelos da propaganda comercial, já que ela inexiste na transmissão captada a partir de antenas parabólicas. Se é convocado a votar para prefeito, vereador, governador e presidente, pouco ou quase nada recebe em termos de cidadania em troca de seu voto.

Situado então nesse tempo-espaço diferente, tendo diante de si a metrópole urbana, com seus caóticos signos, ruídos e vozes polifônicas, e atrás de si a floresta, com seus mitos, mistérios, lendas e riquezas exploradas de forma extrativista convencional ou de modo predatório, o ser humano amazônico sintetiza uma forma peculiar de se incluir no mundo. Mas poucas vezes é a sua voz que representa esse mundo vivenciado.

Eis o enigma da esfinge a ser decifrado.

Filme baseado em conto de Milton Hatoum

Tudo isso para adentrarmos no universo do filme “O Rio do Desejo”, longa-metragem ficcional filmado no Amazonas com produção da empresa paulistana Gullane Entretenimentos e baseado num conto de Milton Hatoum. O filme tanto acerta como erra em seu desafio de contar uma história de amor, desejo, ciúme e traição tendo as contradições ribeirinhas amazônicas como cenário e pano de fundo.

A sinopse do filme é a seguinte: ao se apaixonar pela bela Anaíra, Dalberto larga seu trabalho na polícia e se torna comandante de um barco. O casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos, às margens do Rio Negro, mas quando Dalberto aceita uma empreitada financeiramente irrecusável e se lança em uma longa viagem rio acima, desejos sublimados vêm à tona. Enquanto Dalmo, o irmão mais velho, luta para controlar a atração que sente pela cunhada, Anaíra e Armando, o mais novo, envolvem-se num ardente caso. Ao regressar, Dalberto encara demônios internos de ciúme que desembocarão num final trágico.

Boas atuações e enredo com ritmo do rio

O filme é dirigido por Sérgio Machado, que também escreveu o roteiro, junto com George Walker Torres, Maria Camargo e Milton Hatoum. O longa traz no elenco nomes como Sophie Charlotte, Daniel de Oliveira, Gabriel Leone, Rômulo Braga e Jorge Paz. Todos excelentes em seus papéis, ressalte-se.

Machado tem uma carreira respeitável tanto como roteirista quanto como diretor. Madame Satã e Abril Despedaçado (roteiro) e Cidade Baixa (direção) são dois bons exemplos do currículo pesado a ser apresentado.

Como diretor, aliás, consegue extrair um desempenho convincente de cada ator e atriz. Há profundidade e sinceridade nas atuações e a história flui no ritmo do rio, ora lenta, mas com ameaças de tempestade ao fundo.

Filme esquece contradições amazônicas

“O Rio do Desejo” parte de um tema que parece comum nas obras de Hatoum. Suas pequenas obsessões familiares, com irmãos que representam lados opostos duelando interna e externamente por um amor, um reconhecimento, uma posição, um sentimento que seja. Irmãos em confronto, amando-se e repelindo-se, como na obra-prima “Dois Irmãos”.

“O Rio do Desejo” tem sua viagem à Ítaca, um Ulisses amazônico que, no entanto, enfrenta poucos obstáculos em sua jornada e não encontra uma Penélope que se tenha mantido “fiel”. Ocorre que “O Rio do Desejo”, ao se prender apenas no “fogo interior” dos personagens e suas paixões, esquece uma Amazônia ávida por ter suas contradições enfatizadas. Dalberto aceita um trabalho supostamente perigoso e provavelmente ilegal, mas essa jornada acaba por ser pouco convincente.

Assim como nenhum tipo de ambientação sociopolítica é apresentada. Optou-se por uma Amazônia de cores fortes e corpos eternamente suados e brilhantes. Uma Amazônia que entorpece sentidos e leva pessoas a se embriagar numa luxúria sensual que costuma fazer parte desse imaginário abaixo da linha do Equador.

A fotografia, de Adrian Tejido, parece ter mergulhado com profundidade na obra de fotógrafos da região como Luiz Braga, a referência mais óbvia. Encanta nas primeiras tomadas, mas acaba por nos saturar de tanta quentura, sem uma pausa para um refresco. Ok, pode e deve ter sido intencional, mas parece justamente com o olhar estrangeiro sobre a região, um olhar que torna exótico o que pode ser comum.

Por que ‘O Rio do Desejo’ se passa na Amazônia?

“Rio do Desejo” acerta ao tentar não estereotipar personagens. Sim, eles amam, traem, se vingam como em qualquer história. Mas aí reside também um pequeno calcanhar de Aquiles. Se nada há que torne a Amazônia o porto único para o desenvolvimento da trama na tela, fica a pergunta: o Amazonas foi escolhido por conta de sua paisagem, seu cenário, seu ambiente, seu exotismo? O filme não dá respostas caso alguém ouse fazer essa pergunta.

E elas se tornarão ainda mais cabíveis no momento em que as produtoras regionais reivindicam para si o protagonismo de contar as próprias histórias. O risco de os realizadores serem alcunhados de colonizadores existe. É preciso estar atento a isso. “O Rio do Desejo” navega em águas aparentemente calmas, mas há muitos perigos no fundo e nas margens.

Ismael Machado é escritor, jornalista e roteirista. A palavra escrita como fonte de vida. Autor de cinco livros, diretor audiovisual e doutorando em Cinema. Ganhador de 12 prêmios jornalísticos voltados a questões de direitos humanos, meio ambiente, educação e ciência. Também já ganhou prêmio de melhor roteiro de curta-metragem. Escreveu para grande e pequena mídia (seja lá o que isso signifique). Já cantou em banda de rock, plantou árvore e ajudou a criar dois filhos. Não sabe dirigir, mas tem orgulho de sua pequena biblioteca. Foi professor de jornalismo e sempre agradece aos três gatos por deixarem que habite o mesmo teto.
Este texto não reflete, necessariamente, o posicionamento da Amazônia Latitude.

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