Guerrilha do Araguaia: rastros na memória, 59 anos após o golpe de 1964

Montagem de Fabricio Vinhas sobre foto de um comboio militar na região do Araguaia (Exército Brasileiro)

Montagem de Fabricio Vinhas sobre foto de um comboio militar na região do Araguaia (Exército Brasileiro)

A Guerrilha do Araguaia, desde o seu início, constituiu-se como um superlativo. Para os militantes, era uma chance de encarar a ditadura no final dos anos 1960, utilizando os moldes da guerrilha rural de Cuba e China. Para os militares, a concretização da ameaça comunista que nascia na Amazônia, no rio que hoje forma a divisa natural entre Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

Relatos colhidos pela Comissão Nacional da Verdade mostram que durante os 8 anos de treinamento e ocupação da região do Araguaia pelos militantes de esquerda, ainda não havia a preparação necessária para a instauração de uma guerrilha de fato.

Quando a gente fala sobre a Guerrilha, a gente precisa entender o momento que a esquerda passava no contexto mundial. Existiam organizações que estavam alinhadas à China e outras que estavam alinhadas à União Soviética. Isso causou a racha no Partido Comunista [que dividiu-se em PCB e PCdoB] e posteriormente, a instauração das tentativas tanto das guerrilhas rurais, como a do Araguaia e outras no Nordeste, quanto as urbanas, tipo a Aliança Libertadora.
Pere Petit, doutor em História e professor do Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal do Pará.

A chegada dos guerrilheiros, em 1966, foi bem diferente do que o imaginário popular pensa sobre uma guerrilha. Muito do trabalho feito por eles estava estabelecido no campo das relações sociais, estabelecendo conexão com os lavradores que moravam na região. A própria confiança para a abertura e revelação dos planos da guerrilha ainda estava sendo estudada pelos militantes.

Danilo Carneiro, militante do PCdoB, em depoimento à Comissão Nacional da Verdade (CMV), contou: “O nosso objetivo era nos integrar com as massas. Ter uma relação, uma simbiose com a massa. E assim vai”.

Essa relação simbiótica explica, por exemplo, a dificuldade de os militares em identificarem os integrantes do movimento, já que os comunistas construíram uma rede de proteção com os lavradores. Havia uma imagem de guerrilheiro que não condizia com o dia a dia daquela população, que não relacionava os “paulistas” (como eram conhecidos os militantes) ao estereótipo vendido pelo exército.

A escolha da região era uma estratégia, óbvio. Havia a campanha de ocupação da Amazônia, a construção da [Rodovia] Belém-Brasília… obras de urbanização que não contemplavam os moradores da região. Além disso, aquela parte do sudeste do Pará é uma região de conflitos agrários históricos; então a tentativa era chegar em locais que o Estado não chegava, para entender do que as pessoas estavam precisando.
Pere Petit

O Estado, no entanto, fazia muito tempo estava observando a movimentação dos guerrilheiros. A suspeita se firmava cada vez que algum militante era preso e torturado, revelando os planos de insurgência rural. “Não tem como a gente traçar exatamente quem falou, então há um consenso de que foi em durante algum interrogatório que surgiu a dica”, diz Petit.

A “dica” levou a forte repressão das forças armadas brasileiras, que desde 1972 entrava em confronto com a guerrilha do Araguaia. O mapeamento das operações dos guerrilheiros, no entanto, começou um pouco antes, em meados de 1969.

Estes confrontos alteraram significativamente o dia a dia na região, já que as populações locais passaram a integrar as listas de vítimas das violações cometidas pelos agentes do Estado brasileiro. Segundo a CNV, mais de 60 militantes e camponeses foram mortos durante as incursões das forças armadas.

A Guerrilha do Araguaia é apenas um exemplo da violência política vivida no Brasil durante a ditadura. Para a Comissão Nacional da Verdade, “a reconstrução dos eventos que resultaram na prisão ou morte da maior parte dos guerrilheiros aponta para a desigualdade de forças empregadas […], uma experiência de aprimoramento das técnicas de contraguerrilha das Forças Armadas brasileiras, na qual mulheres e homens foram executados sem que suas garantias mais básicas fossem respeitadas”.

Ana Vitória Gouvêa é repórter da Amazônia Latitude e estudante de Jornalismo da Universidade Federal do Pará. Em 2022, foi premiada pelo Instituto Vladmir Herzog no 14º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão, com o documentário curta metragem “Vozes Amazônidas – Barcarena Resiste”.
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