Saúde Yanomami foi gerida por apadrinhado do garimpo, ligado a fornecedores
Senador Antônio Mecias indicou coordenador (2020-2022) que representava empresas contratadas pelo governo; Descaso matou pelo menos 570 crianças indígenas em quatro anos
Indicado para coordenar o Dsei Yanomami representava empresas que mantinham contratos com o governo; senador Mecias de Jesus (esq.) nega indicação política e envolvimento com o garimpo.
Foto: Reprodução/Republicanos
*Este texto é uma adaptação da reportagem produzida pela Transparência Brasil, que conduziu a apuração a partir de informações obtidas via Lei de Acesso à Informação. A Amazônia Latitude entrou em contato com as pessoas e empresas citadas; as respostas enviadas dentro do prazo foram incluídas na reportagem
- Rômulo Pinheiro de Freitas, coordenador do Dsei Yanomami de 2020 a 2022, foi indicado pelo senador bolsonarista Mecias de Jesus (Rep-RR)
- Além de não ter competência técnica para o cargo, Rômulo representava empresas do irmão que tinham contratos com o governo federal e de RR
- O senador Mecias de Jesus é defensor do garimpo e autor de um projeto que autoriza a atividade em terras indígenas
- Mecias de Jesus nega ligações com o garimpo e diz que a indicação de Rômulo é técnica
- O filho do senador, ex-deputado federal Jhonatan de Jesus (Rep-RR), também teria participado da indicação de Rômulo; ele virou ministro do TCU (Tribunal de Contas da União) em março de 2023
- O senador Mecias de Jesus ainda é investigado por supostas irregularidades na contratação da Piquiatuba, empresa de táxi aéreo usada para transporte em terras indígenas
- O MPF acusa a Piquiatuba de ser um braço do garimpo ilegal na região; uma operação da PF bloqueou R$ 268 milhões do espólio do fundador da empresa
- Suspeitas de desvios de verbas da saúde também recaem sobre o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), o ex-senador Telmário Mota (Pros-RR) e Antônio Leocádio Vasconcelos Filho, ex-secretário de Saúde de RR
O ex-coordenador do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) Yanomami, Rômulo Pinheiro de Freitas, têm relações estreitas com o senador bolsonarista Antônio Mecias Pereira de Jesus (Republicanos-RR), defensor do garimpo. Em estudo inédito, a Transparência Brasil analisou a conexão entre ambos, fornecedores de órgãos públicos, empresas associadas ao garimpo e a crise sanitária no território indígena.
Entre 2019 e 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), pelo menos 570 crianças morreram de desnutrição na Terra Indígena (TI) Yanomami, que ocupa parte dos estados de Roraima e Amazonas. Após diversas denúncias sobre desvios, o MPF (Ministério Público Federal) recomendou, em novembro de 2022, que o Ministério da Saúde interviesse na Dsei Yanomami para a correta aplicação de verbas públicas.
O caso evidencia a vulnerabilidade às interferências políticas nos Dseis, que deveriam ser comandados por pessoas com qualificação técnica adequada, não por apadrinhados.
O senador Mecias de Jesus é autor do Projeto de Lei nº 1331/2022, que admite a “ outorga de autorização de pesquisa e concessão de lavra garimpeira a terceiros em terras indígenas”. Assim como os demais senadores por Roraima, ele também assinou um ofício pedindo o perdão criminal para garimpeiros flagrados ilegalmente nas terras Yanomami.
Ainda assim, o senador disse à Amazônia Latitude que “não tem e nunca teve ligação com o garimpo”. Afirmou ainda que as indicações que fez ao Dsei foram técnicas, “tanto que os nomes foram aprovados pelo Governo Federal, que tem critérios próprios de avaliação”.
Quem é Rômulo Pinheiro de Freitas, ex-coordenador do Dsei Yanomami
Rômulo Pinheiro de Freitas era assistente administrativo e pregoeiro na Secretaria de Estado de Saúde de Roraima (Sesau-RR) e tem conexões com empresas que firmaram contratos com o governo federal, inclusive em licitações do Dsei Yanomami.
Rômulo foi coordenador do Dsei Yanomami entre 2020 e 2022. Sua gestão foi marcada por denúncias relacionadas à falta de assistência dentro da TI, à interrupção de serviços de transporte aéreo e ao desvio de vacinas por servidores em troca de ouro.
Ao alertar para a gravidade da situação, o MPF apontou em novembro de 2021 que “apesar de ter recebido mais de R$ 190 milhões para assistência à saúde nos últimos dois anos, o território indígena (…) registrou piora acelerada dos indicadores de saúde”.
Em novembro de 2022, dada a inércia do governo federal, o MPF recomendou que o Ministério da Saúde realizasse uma intervenção no Dsei Yanomami para “garantia da correta aplicação das verbas destinadas ao atendimento dos indígenas”.
Rômulo atuou como assistente administrativo na Secretaria de Saúde do Estado
de Roraima entre 2008 e 2015, sendo designado como pregoeiro nas licitações da pasta. Ele foi alvo de uma representação do Ministério Público de Contas de Roraima em 2013, juntamente com o então Secretário da Saúde, Antônio Leocádio Vasconcelos Filho, e outras nove pessoas.
A representação apontou irregularidades em uma licitação realizada pela Secretaria de Saúde e solicitou ao MPRR (Ministério Público do Estado de Roraima) a adoção de providências. Dentre as medidas estavam o afastamento imediato de Leocádio, instauração de inquérito para aprofundar as investigações e possível ingresso de ação de improbidade administrativa contra os envolvidos para o ressarcimento ao erário.
Embora o relatório de auditoria do TCE-RR tenha apontado responsabilidade de Rômulo no “superfaturamento decorrente de pagamentos com preços superiores aos de mercado”, os
conselheiros do TCE acataram sua defesa de que não cabia a ele, como pregoeiro, a função de cotação de valores, isentando-o.
Já Leocádio chegou a ter seus bens bloqueados pelo TCE-RR e foi condenado em 2018 pela Justiça Federal por favorecimento de empresas.
Secretaria de Saúde de RR foi investigada por desvios
Na pandemia de covid, a Secretaria de Saúde de Roraima foi alvo de investigações relacionadas ao desvio de dinheiro público, como as operações Vírion e Desvid-19 da PF (Polícia Federal). Os três senadores roraimenses à época foram, direta ou indiretamente, envolvidos nas apurações:
- Chico Rodrigues (DEM) foi flagrado escondendo dinheiro na cueca e indiciado por peculato
- Telmário Mota (Pros) foi investigado em razão de uma emenda parlamentar
- Mecias de Jesus (Republicanos) e seu filho, Jhonatan de Jesus, também foram citados no decorrer das apurações como autores de emendas parlamentares, cada uma no montante de R$ 2,5 milhões, utilizadas posteriormente em compras suspeitas, mas alegam que não foram formalmente investigados e que não têm relação com o esquema
O agora ex-senador Telmário Mota disse à Amazônia Latitude que as denúncias contra ele as denúncias “são absolutamente inverídicas e foram imediatamente desmentidas pela própria Secretaria de Estado da Saúde de Roraima”.
Conflito de interesses em contratos com o Dsei
Antes de ser nomeado responsável pelo Dsei Yanomami por indicação de Mecias, Rômulo já tinha ligações com o órgão por meio de seu irmão, Ricardo Pinheiro de Freitas. Mesmo não tendo participação societária, o futuro coordenador atuou como procurador ou representante legal em contratos públicos para duas empresas do familiar: RR Tech e Roraima Ortopedicos LTDA.
Segundo o Portal de Transparência do governo federal, ambas participaram de licitações relacionadas ao Dsei Yanomami entre 2014 e 2019. Tiveram um contrato assinado: aquisição de materiais diversos para escritório (desde 40 teclados para computador até 17,5 mil canetas esferográficas), no valor total de R$ 8.926,60.
Ao todo, as empresas de Ricardo – que tinham Rômulo como representante formal – firmaram dez contratos com o governo federal entre 2013 e 2020, no valor total de R$ 197 mil. O último deles foi assinado com o Instituto Federal de Roraima em março de 2020, três meses antes de Rômulo ser nomeado coordenador do Dsei. A maioria dos serviços é de reprodução fotográfica.
Apesar da presença nos certames do governo federal, os principais contratos das empresas gerenciadas pelos irmãos Rômulo e Ricardo foram firmados com o governo estadual de Roraima. Consulta no Portal da Transparência, sem considerar a Secretaria de Saúde, aponta R$ 494,6 mil contratados entre 2015 e 2018. O maior valor foi junto ao Fundo Estadual de Saúde: R$ 475 mil para “serviço de gerenciamento e produção de documentos através de impressões a laser”.
O Portal de Transparência de Roraima não traz informações da Secretaria da Saúde no banco de dados de contratos. Consulta no Diário Oficial aponta que o órgão, onde Rômulo atuou como servidor público, foi seu principal nicho. Como representante da empresa do irmão, ele assinou dezenas de contratos para fornecimento de insumos hospitalares, alguns com valores superiores a R$ 2 milhões.
O volume foi alto, e a dupla não conseguiu honrar com todos os compromissos: uma edição do Diário Oficial publicou, de uma só vez, sete rescisões contratuais por descumprimento dos prazos estipulados.
Suspeita de desvios por meio de empresa de táxi aéreo
Além de ser um defensor do garimpo em sua atividade parlamentar, o senador Mecias de Jesus é alvo de um inquérito sigiloso da PF que investiga irregularidades na contratação da empresa de Táxi Aéreo Piquiatuba pelo governo federal.
A empresa Piquiatuba é recorrentemente contratada pelo governo federal para serviços de táxi aéreo, principalmente em terras indígenas. De janeiro de 2010 a março de 2023, foram assinados 22 contratos no valor total de R$ 83 milhões. Em razão de aditivos e renovações, a empresa recebeu R$ 160 milhões dos cofres públicos federais nesse período.
Um dos contratos, por dispensa de licitação, no valor de R$ 8,7 milhões, foi formalizado em agosto de 2019 para serviços ao Dsei Yanomami, e depois executado na gestão de Rômulo.
Análise da auditoria da CGU (Controladoria Geral da União) apontou que essa contratação da Piquiatuba “não foi precedida de instrumentos de planejamento adequados, tendo em vista as falhas constatadas no projeto básico”, e que “verificou-se fragilidades no controle de horas de voo e no monitoramento de aeronaves”.
Enquanto prestava serviço de táxi aéreo para atendimento a indígenas, a Piquiatuba também foi acusada pelo MPF de ser um braço do garimpo ilegal na região. A Operação Ouro Frio, da PF, chegou a bloquear R$ 268 milhões do espólio de Armando Amâncio da Silva, fundador da Piquiatuba, que faleceu em 2020. A Justiça Federal apontou haver “elementos substanciais de que o investigado promovia extração irregular de ouro fazendo uso sistemático da empresa”.
O MPF ingressou com diversas ações na esfera civil e criminal contra Piquiatuba e Armando. Durante a Operação Ouro Frio, foram apreendidos 44 kg de ouro no cofre do fundador da empresa, avaliados em quase R$ 15 milhões, que segundo a PF seriam provenientes do garimpo ilegal. Os processos tramitam na Justiça Federal.
Outro lado
A Amazônia Latitude procurou Rômulo Pinheiro de Freitas, Jhonatan de Jesus, Ramsés Almeida, Antônio Leocádio Vasconcelos Filho e Chico Rodrigues, mas nenhum deles respondeu até a publicação desta reportagem.
Procuradas, as empresas RR Tech e Roraima Ortopedicos LTDA também não responderam aos questionamentos.
O senador Mecias de Jesus negou envolvimento com o garimpo. Ele afirmou que as indicações de Rômulo e Ramsés ao Dsei seguiram critérios técnicos e foram aprovadas pelo governo federal. Disse, ainda, que desconhece investigações da PF sobre supostas irregularidades na contratação da Piquiatuba.
A defesa de Telmário Mota disse que as denúncias contra o ex-senador na operação Desvid foram desmentidas pela Secretaria de Saúde do RR “que, em 27 de outubro de 2020, declarou que não houve nenhuma contratação, empenho ou liquidação de despesa com recursos oriundas de emenda parlamentar do Senador Telmário”.