Rita Carelli: uma janela para a cultura indígena por meio da literatura infantil
O exercício de pensar a Amazônia por meio da literatura pode ser feito a partir de várias perspectivas. Como vimos ao longo do especial Pensando a Amazônia pela Literatura, a Amazônia pode ser pensada pela poesia, pela música, por contos, romances, e pelo olhar ancestral indígena.
Neste episódio do LatitudeCast, a escritora Rita Carelli mostra que o pensamento sobre a Amazônia também pode ser feito para o público infantil, levando as tradições e culturas amazônicas originárias para as crianças.
“A quantidade de oferta que tem para criança no Brasil, por exemplo, de histórias de princesas e personagens de ursos de pelúcia é um processo muito colonizador”, afirma a autora. “Que urso, que princesa? Vamos olhar para o tamanduá, para a onça, para os mundos indígenas. Então, o meu desejo era demarcar um pouco esse território do imaginário infantil através dessa literatura, reflorestar, repovoar”, conta.
Rita Carelli é atriz, diretora de cinema e escritora formada em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É autora de diversos livros para o público infantil, como “Menina Mandioca” (2022, Pallas Mini), sua obra mais recente, que brotou da vivência da autora em terras indígenas durante sua infância e conta o mito da mandioca para as crianças.
Em 2021, Rita publicou seu primeiro romance, “Terrapreta” (2021, Editora 34), que ganhou uma segunda edição neste ano. O livro recebeu o selo altamente recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), na categoria Jovem.
Ouça a entrevista completa com a escritora Rita Carelli:
Amazônia Latitude: O título “Terrapreta” faz uma clara alusão à terra preta indígena, o solo fértil encontrado na Amazônia. Como esses elementos se relacionam com a temática que você aborda no livro?
Rita Carelli: Eu adoro esse título também. Terra preta, para quem não sabe, ou terra preta do índio, como foi batizada pelos arqueólogos, é um fenômeno de uma terra encontrada na Amazônia incrivelmente fértil, e que é um fenômeno estudado por arqueólogos do mundo inteiro. Tem muita gente tentando reproduzir as propriedades dessa terra preta.
A Amazônia é uma região muito grande, então ela tem muita diversidade dentro da sua extensão, mas ela é majoritariamente uma terra de solo ácido. Ela não é uma terra muito fértil, tanto que vários projetos do governo brasileiro de ocupação da Amazônia, de plantio, não funcionaram. Ela não comporta, muitas vezes, esse tipo de agricultura tradicional. Mas tem alguns lugares de terra extremamente fértil, que são esses bolsões de terra preta.
Durante muito tempo, os arqueólogos do mundo achavam que essa terra preta se formava por condições naturais. E as teorias mais recentes da arqueologia na Amazônia refutam isso, dizendo “não. Essa terra é antropomórfica. Essa terra fértil que a gente encontra na Amazônia, em determinados lugares, é resultado da ocupação humana. É resultado da coexistência das populações indígenas com essa floresta”.
Eu acho muito forte isso, porque, durante muito tempo, foi considerado que as populações amazônicas eram mirradas, nômades, porque não tinham os grandes templos de pedra que outras sociedades autóctones de outros lugares da América Latina construíram. E, pouco a pouco, os arqueólogos, os etnobotânicos, estão começando a perceber que a grande construção dos povos indígenas amazônicos é a própria floresta amazônica. É uma floresta profundamente antropomórfica, construída em conexão com essas populações humanas.
Então, eu juntei as duas palavras, “terra preta”, eu condensei elas, fiz uma palavra só, “terrapreta”, e botei no título do livro, porque, para mim, ele simboliza toda essa riqueza que está escondida na Amazônia, que está ali debaixo da terra, essa potência.
Eu acho que a grande coisa que a gente está se questionando hoje é como, sei lá, gerar soluções econômicas a partir da Floresta Amazônica, mas sem botar a floresta no chão. Essas populações indígenas, através dessa história, provam que isso é possível. Não só não destruí-la, como enriquecê-la.
Amazônia Latitude: O Ailton Krenak escreve na orelha do teu livro que os seus personagens são de carne e osso. Como se deu esse processo de construção das personagens?
Rita Carelli: Eu acho que a gente tem que olhar um pouquinho para a minha história para responder essa questão. Eu tive a sorte de conviver com populações indígenas desde criança por conta dos meus pais. Minha mãe era antropóloga, meu pai, indigenista, cineasta. E eu circulei em aldeias indígenas desde a barriga da minha mãe.
Então, quando eu decido escrever um romance com personagens indígenas, são antes de tudo pessoas com seus dilemas, com as suas dúvidas, com as suas contradições. E, claro, inspirado em pessoas que eu conheci, que eu esbarrei, com quem eu tenho amizade, com quem eu aprendi.
As pessoas ficam um pouco admiradas com isso, e eu acho tão natural. Os personagens indígenas, obviamente, têm tridimensionalidade. Isso, assim, falando da tradição literária, porque se a gente, sei lá, for pensar no “Quarup”, do Antonio Callado, que tem outros valores e é um outro momento da história da literatura brasileira, mas os personagens indígenas ali têm duas dimensões. Eles não têm nome, eles não têm características pessoais. Os indígenas são quase um grupo coeso, que é um pano de fundo para os personagens indígenas viverem as suas aventuras ali.
E o “Terrapreta” revisita um pouco esse cenário do Quarup, do Alto Xingu, mas com esse protagonismo e com essa tridimensionalidade dos personagens que calha de serem indígenas na sua maioria. Então, é um pouco natural. Eu não saberia fazer de outra forma.
Amazônia Latitude: Você tem um grande arcabouço de viagens, de experiência de vida. Você pôde, através dos teus pais, acompanhá-los. Foram várias terras indígenas que você passou, que você pôde interagir. No livro estão plasmadas algumas dessas terras. Houve alguma experiência ao longo desse processo da escrita, algum momento ou descoberta que mais te surpreendeu e que, de alguma forma, alterou o curso da própria narrativa? Qual foi esse momento?
Rita Carelli: Eu comecei a frequentar as aldeias indígenas criança, bebê até. Então, não teve exatamente esse momento de uma descoberta do mundo indígena como eu narro no livro e na personagem, que é um romance. Claro que tem um caldo ali das minhas vivências pessoais, mas ele é um trabalho ficcional.
A personagem de “Terrapreta” tem lá os seus 15 anos e está descobrindo o mundo indígena de um golpe. Não é o meu caso. Eu fui marinando nesse caldo desde pequena. Então, não tem esse momento de uma grande epifania, porque esse pensamento indígena, as cosmologias, a vida ritual, a vida coletiva, isso faz parte de mim desde sempre.
A minha mãe trabalhou muitos anos com o povo indígena Enawenê-nawê. Ela ficou oito anos trabalhando lá e nos processos de demarcação do território deles. E [ela] fez um filme muito bonito que se chama “Banquete dos Espíritos”, sobre um ritual que eles fazem. E a gente frequentou muito a aldeia durante esse período do ritual, porque ela filmou durante muitos anos para completar o filme. E durante muito tempo, a minha mãe me acordava três horas da manhã para ver os espíritos incorporando. Eu levantava da minha rede e ia. Isso era a minha vida, era o meu cotidiano.
Eu acho que quando a gente é criança, a gente é muito permeável. Não é que eu fui frequentar as aldeias indígenas adulta, com um pensamento cartesiano muito solidificado dentro de mim. Não. Esse contato com os povos indígenas é parte de quem eu sou, de como eu vejo o mundo, de como eu me relaciono com as pessoas.
Então, é difícil dizer para você um momento que talvez mudou o rumo da minha vida, da minha produção. Ele foi se construindo ao longo de muitas vivências. Mas é claro que eu vivi coisas incríveis, maravilhosas e que foram me marcando também em momentos de passagem.
Amazônia Latitude: Na abertura de “Terrapreta”, você propõe um recomeçar na narrativa. Você pode falar um pouco sobre esse recomeçar?
Rita Carelli: O livro propõe isso, nós, não indígenas, a repensarmos a nossa relação com o nosso entorno, até mesmo com as causas indígenas. Eu queria mostrar um pouco a minha militância até nessa parceria com Ailton Krenak, na organização dos livros dele e outras aventuras.
Eu tenho muito essa militância de desierarquizar os conhecimentos. Eu acho que a gente é uma sociedade muito prepotente, que sempre tem um olhar para sociedades indígenas um pouco infantilizante, um pouco exotizante, um pouco como se os nossos conhecimentos científicos, tecnológicos, fossem mais avançados do que os deles. E o que eu tenho de experiência na minha vida me prova o contrário o tempo todo.
Essas sociedades indígenas com quem eu tive contato, a sensação que eu tenho é que elas são muitíssimo mais evoluídas em milhares de aspectos. No âmbito geral, elas são muitíssimo mais evoluídas do que a gente. Porque a gente é uma sociedade suicida que está caminhando para o abismo a passos rápidos.
Começar com isso, para mim, era mostrar que nós também somos analfabetos. A gente está andando na mata, a gente não sabe nada. Nada. Todo conhecimento que a gente tem se evapora, não te salva ali. E os indígenas andando na mata é outra história. Tem tudo ali. Tem tudo que eles precisam. Então, eu queria começar com essa sensação de estar perdido. O outro somos nós. E um pouco, acaba sendo uma metáfora da vida. Na vida, a gente tem questões que nos atravessam a vida inteira. A gente dá voltas e voltas, mas volta para elas. Então, é um pouco meu ponto de partida com esse livro.
Amazônia Latitude: Na página 72 de “Terrapreta”, o início do capítulo Aterrissagem mostra o sentimento de um chefe indígena ao ver a barragem construída em um trecho do rio Xingu que era importante para o seu povo. Esse chefe fala sobre o desrespeito dos brancos. Também é retratado o desmatamento da floresta. Essa passagem nos leva para uma realidade, para o presente. Hoje, há toda a discussão sobre o Marco Temporal, as agruras na Terra Yanomami, todo esse processo. A literatura tenta fazer essa transição do momento que a gente está vivendo, das lutas dos povos originários?
Rita Carelli: Uma vez, conheci um homem muito excepcional, o seu José Luiz Paulino. Ele filmou Barravento, é co-roteirista do Barravento com o Glauber [Rocha]. Ele é filho de uma mulher indígena, foi um mestre do daime, uma figura ímpar.
A gente estava fazendo um filme juntos na Bahia, e eu estava contando para ele esse meu projeto de livro que eu tinha. E ele falou para mim uma coisa que me marcou muito. Era um romance histórico, mas eu tinha pudor de ficar contando dos personagens, inventando, romanceando, então eu estava um pouco empacada. Ele me falou “minha filha, não tem que ter medo não. A ficção, ela não é uma meia verdade. Ela é uma verdade meia, porque ela revela a alma dos fatos”. E eu achei aquilo tão bonito.
Eu, humildemente, não acho que é a literatura que vai mudar o mundo, mas ela planta suas sementes. O meu desejo com o “Terrapreta” era pegar na mão, sobretudo dos não indígenas, e falar “vem aqui, vamos dar uma voltinha aqui comigo, vamos até o Xingu ali comigo, vamos dar uma espiadinha aqui nessa sociedade, no que acontece por aqui” E eu acho que a literatura tem realmente esse poder de fazer a gente viajar, da gente se transportar para dentro de outras realidades. Então talvez ela possa ser, sim, uma aliada dos povos indígenas nesse momento tão difícil que eles estão vivendo.
O Marco Temporal é um acinte, é uma violência inconstitucional sem tamanho. Eu acho que a gente só pode respeitar aquilo que a gente ama, aquilo que a gente conhece, e se a literatura puder aproximar um pouco as pessoas das realidades indígenas, bingo, acho que a gente está fazendo minimamente o nosso trabalho, que é um trabalho de formiguinha, mas é o que a gente, é o que eu estou conseguindo fazer.
Eu sinto uma dívida em relação aos povos indígenas, eu sinto uma relação de gratidão muito grande. Eu acho que sou uma sortuda de ter tido a vida que eu tive, de ter a vida que eu tenho, então é um pouco o mínimo que eu posso fazer, é dividir um pouco das experiências que eu tive com quem não teve essa mesma chance.
Amazônia Latitude: Os teus primeiros livros, “A História de Akykysia, o Dono da Caça” (2018, SESI-SP), “Minha Família Enauenê” (2018, FTD Educação), o próprio último livro, “Menina Mandioca”, são direcionados ao universo infantil. Você também colaborou com o Vídeo nas Aldeias na concepção da coleção de livros-filmes “Um dia na aldeia” (2018), voltados para esse público infantil. Qual é a relevância de se produzir literatura específica para crianças?
Rita Carelli: Eu tenho duas filhas, uma que ainda não fez um ano e uma de quatro anos. E a quantidade de oferta que tem para criança no Brasil, por exemplo, de histórias de princesas e personagens de ursos de pelúcia é um processo muito colonizador. Que urso, que princesa? Vamos olhar para o tamanduá, para a onça, para os mundos indígenas. Então, o meu desejo era demarcar um pouco esse território do imaginário infantil através dessa literatura, reflorestar, repovoar.
Eu acho que também tem muitos autores indígenas no campo da literatura infantil maravilhosos. Então, tem uma produção já há alguns anos em curso, muito profícua. Mas, enfim, eu quis dar minha contribuição. A coleção “Um dia na Aldeia” nasce a partir do trabalho do Vídeo nas Aldeias, que é essa escola para povos indígenas, que tem um catálogo com mais de 80 filmes dos cineastas indígenas, que é o trabalho do meu pai, junto a vários povos indígenas.
Eu fui visitar a coleção do Vídeo nas Aldeias a pedido do meu pai, porque justamente ele estava um pouco decepcionado com os adultos, com essa mentalidade difícil de ser transformada. E ele virou avô e falou “vamos fazer umas coisas para crianças, vamos começar a olhar para esse público, para ver se essa mentalidade em relação aos povos indígenas não vai mudando de berço na próxima geração. O nosso trabalho vai ficar mais fácil. As crianças talvez sejam mais abertas e mais sensíveis a essa transformação que eu acho que começa a ocorrer agora, pouquinho a pouquinho”.
Então, eu fui visitar o catálogo do Vídeo nas Aldeias, escolhi seis filmes para apresentar para o público infantil e adaptei em livro. Nasceu esse primeiro gesto, direcionado para crianças. Depois, eu resolvi contar um pouco como foi a minha própria aldeia, a minha própria infância numa aldeia indígena, e nasceu o livro “Minha família Enaunê”. E agora, mais recentemente, eu lancei o Menina Mandioca, que é também um pouco dessa minha experiência em aldeia.
Eu não acho que cabe a mim contar simplesmente as lendas, os mitos indígenas. Eu acho que os indígenas têm que fazer isso e estão fazendo cada vez mais para o público não indígena. Então, eu sempre uso um pouco dessa camada, que é o que é ter sido uma menina branca na aldeia, o que eu pude aprender, conhecer. Guardando a minha ignorância, também, porque a gente nunca vai ter a compreensão do mundo deles na sua plenitude, mas um tanto de coisa a gente é capaz de trocar, de partilhar, de aprender. A minha produção tem sido nesse sentido.
Amazônia Latitude: Como é retratar essa experiência, essa dinâmica familiar indígena? Como isso pode ser um pontapé para uma outra forma de ver essas relações, essas dinâmicas para o nosso contexto atual?
Rita Carelli: A infância numa aldeia indígena é uma maravilha. Não estou romantizando, acho que tem várias aldeias indígenas que estão vivendo situações de precariedade, de conflito. Não estou falando disso, estou falando de uma sociedade indígena que está, enfim, minimamente com o seu território sadio, garantido.
Tradicionalmente, a infância junto aos povos indígenas é um lugar muito protegido e muito livre ao mesmo tempo. É muito privilegiado. As crianças circulam pelo território, estão em fricção direta com a natureza, em estado de permanente descoberta. Ao mesmo tempo, tem um olhar zeloso de toda a comunidade para todas as crianças. E ao mesmo tempo, tem uma autogestão da infância, porque as crianças mais velhas cuidam das crianças mais novas, elas se protegem, transmitem os conhecimentos umas às outras.
Realmente, eu acho que a infância é um período muito formador do ser humano. Se a gente pudesse aproximar a nossa experiência de educação da experiência de educação que as crianças indígenas têm, eu acho que a gente daria um passo em direção à saúde da nossa sociedade, sem dúvidas. Esses livros também se prestam a um certo testemunho dessas infâncias. Tem mil exemplos.
Eu lembro de uma vez, eu vi um menino na beira do rio construindo um barquinho. Ele estava fazendo uma coisa super sofisticada, pegou uma folhinha, fez um negócio, criou uma coisa para ele navegar melhor. Ele estava [há] um tempão construindo aquele barquinho. Aí faltava um detalhezinho na obra dele, ele levantou para colher uma palhinha para amarrar uma coisinha ali e quando ele voltou, tinha uma criança menor mexendo com o barquinho dele. E eu fiquei observando assim, “o que será que ele vai fazer?”. Ele sentou do lado dessa criança menor, reuniu novos materiais e começou do zero a construir um novo barquinho.
É muito bonito ver essa maturidade das crianças indígenas. Todos os materiais estão ali disponíveis para todo mundo, não tem essa coisa o meu brinquedo, o seu brinquedo. As nossas crianças já caem de cara numa sociedade de consumo voraz, competitiva. Então eu acho que a gente tem muito a aprender com os povos indígenas na sua relação com as suas crianças e como elas são educadas.
Amazônia Latitude: Uma vez, organizamos um evento com o Davi Kopenawa em Londres, na Universidade de Oxford, e ele disse a um grupo de professores de lá o seguinte: “eu escrevo porque vocês brancos não sabem escutar”. Ele se referia ao livro dele, “A Queda do Céu” (2015, Companhia das Letras). E os seus livros-filmes, Rita, também são bilíngues, com as línguas indígenas das aldeias em questão. Qual é a relevância disso, desse trabalho dos livros-filmes?
Rita Carelli: Para mim, a questão dos livros serem bilíngues era fundamental na coleção “Um dia na Aldeia”. Tinha duas coisas fundamentais, uma delas era ter uma certa quantidade de povos. Não poderia ser um livro, dois livros. Eu fiz seis, que já é pouco diante da diversidade dos povos indígenas do Brasil, mas para mim era o mínimo para dar para as crianças a ideia de que os povos indígenas são muitos e são diversos entre si.
Eu queria muito que os livros estivessem nas línguas indígenas e em português. Claro que essa coleção foi mais pensada para o público não indígena. Não sei quantas pessoas vão ler esse livro em Oiampi, por exemplo. Mas, para mim, era uma provocação muito importante colocar ali no papel os textos em Oiampi, em Panará, em Kisêdjê, em Ashaninka, em Guarani e fazer essa provocação de “essas línguas estão aqui no território brasileiro também, tal qual o português”.
Tem mais de 180 línguas no Brasil. Isso é de uma riqueza enorme. Antigamente, os países europeus também eram plurilinguais, e isso foi se apagando. A gente tem essa riqueza e a gente ignora ela. Então, eu queria que as crianças tentassem ler nas línguas indígenas e falarem “nossa, eles falam outra língua, essa língua existe”. Então, tinha esse gesto.
E esses livros, claro, tiveram pressões para os povos indígenas, voltaram para as escolas indígenas, se tornaram instrumentos de alfabetização. Nas escolas indígenas também tinha um papel social importante, esse bilinguismo.
Outro aspecto da tua pergunta, que é muito bonita, é como a linguagem nos constitui. Eu penso muito nos guaranis. Eu acho os guaranis um povo excepcional na sua resistência linguística e espiritual, porque as duas coisas estão muito juntas. Os guaranis são um povo que tem mais de 500 anos de contato e as crianças guarani todas falam a sua língua. Essa transmissão é feita de forma zelosa e magistral pelas suas comunidades.
A língua é a expressão de mundo, é a tradução de mundo, é a forma como a gente vê as coisas. Então, a resistência linguística é uma resistência do ser, é uma resistência do existir. É muito forte. Infelizmente, não é a realidade de todos os povos brasileiros, porque as violências foram tantas e tão sucessivas que muitos tiveram as suas línguas adormecidas, como os indígenas têm gostado de falar.
E sobre o escrever, essa fala do Davi, é isso. A gente não sabe ouvir mesmo. A gente ouve pouco e mal. E a gente dá muita importância para a palavra escrita. Então, vários indígenas, como o Davi, compreenderam que era importante, também, lançar suas sementes nesse campo. Quando a gente lê, em geral, a gente está só, a gente está em silêncio, e a gente tende a escutar melhor. Então, esse campo de ocupação dos indígenas desse espaço da escrita é, também, um campo de disputa política.
Amazônia Latitude: Nesse sentido, Rita, a gente poderia dizer que a oralidade, a literatura indígena, seja ela infantil ou não, nos permite pensar outros possíveis, outros futuros ancestrais?
Rita Carelli: Sem dúvida. Eu acho que a gente também se apoiou muito na escrita, e a nossa memória foi para o saco. A gente sabe que isso está escrito em algum lugar, então, quando eu precisar consultar, eu vou lá e volto àquilo. A gente criou mil HDs externos, de papel, digitais.
Os povos indígenas realmente têm uma capacidade de escuta, de memorização, de organização dos conteúdos, que é incrível. Então, quando a gente fala de futuro ancestral, a gente está falando dessa capacidade de transmissão que remota muito lá atrás, e que os povos indígenas conservam.
Então, sei lá, quando a gente pensa nos Maxakali, que estão ali naquela área arrasada, e que eles têm a memória de todas as plantas, de todos os bichos que habitavam ali, e que de repente, três gerações para trás, quatro gerações para trás, já não tiveram contato com algum tipo de coisa que está ali, mas as gerações que se sucedem, conservam essa memória. Isso é de uma tecnologia incrível, e eu acho que tem uma chave aí para esse nosso futuro ancestral, nessa ancestralidade indígena, sem dúvida nenhuma.
Amazônia Latitude: Vamos falar um pouco de você, da tua formação como atriz, cineasta. Você acha que a tua experiência nessas outras artes teve um impacto na tua trajetória literária? Fala um pouco sobre o teu diálogo com outros saberes, outras artes.
Rita Carelli: Acho que a gente tem essa tendência de colocar tudo em caixinha e dividir os conhecimentos, o que é arte, o que é ciência, o que é literatura, enfim. E mesmo no campo das artes, essa manifestação é assim, ela começa aqui, termina aqui, essa outra pega a partir desse ponto. E, para mim, tudo o que eu faço tem humanidade.
Eu acho que as histórias têm formas diferentes de se manifestarem e elas encontram uma solução melhor numa forma de arte ou outra. Então eu vou misturando tudo. Às vezes, eu quero contar uma história e para contar essa história, eu acho que o melhor é fazer um filme. Às vezes eu quero contar uma história e acho que o melhor jeito de contar é sentar e escrever, ou fazer uma peça de teatro, ou desenhar e pintar e expressar aquilo numa forma visual. Então eu vou fazendo.
O meu companheiro diz que eu sou especialista em mudar de profissão, mas não é verdade isso. Eu sou especialista em acumulá-las. Eu não abandono nenhuma. Eu acho que, no fundo, eu sou uma contadora de histórias, e as minhas histórias têm diferentes manifestações materiais.
Amazônia Latitude: Você fala no epígrafe “os afetos atravessam o corpo, como flechas são armas de guerra”. E, ao terminar a leitura dos seus livros, seja “Menina Mandioca”, o mais recente, os seus outros seis livros sobre literatura infantil, “Terrapreta”, que mensagem que você gostaria que os leitores levassem da tua escrita? Vários afetos te atravessaram nesse processo dessa construção literária tua. Que afeto você gostaria de deixar no leitor?
Rita Carelli: Eu acho que minha literatura é uma declaração de amor aos povos indígenas. E eu digo isso fazendo a ressalva de que eu acho que a gente não pode trabalhar na chave da idealização. Eu acho que, quando a gente fica parado lá atrás, no mito do bom selvagem, a gente perde muito, porque eu acho que idealizar, às vezes, é tão nocivo quanto endemoniar. São coisas que nos afastam.
Sem dúvida nenhuma, eu acho que as sociedades indígenas têm uma potência, uma beleza estética, uma força comunitária, uma dimensão espiritual e uma relação de integração e respeito com a natureza que tem muito a nos ensinar. E eu sou muito grata desse contato, dessa circulação por esses territórios, tanto materiais quanto simbólicos.
A minha literatura é, sim, uma literatura admirativa, é uma literatura de amizade, de respeito em relação aos povos indígenas. E, se eu puder afetar as outras pessoas com esse meu amor, com essa minha gratidão por esses encontros, por essas amizades que eu fui tecendo ao longo da vida, eu acho que me dou por satisfeita.