A virada ontológica e a Amazônia: um diálogo
Em diálogo por e-mail, pesquisadores buscam forma de conferir legitimidade ao conhecimento tradicional de povos ameríndios
Este texto é uma adaptação, você pode conferir o debate na íntegra clicando aqui.
Em 4 de julho de 2017, Nick Kawa, professor de antropologia na Ohio State University (EUA), que estuda a sociedade amazônica, ministrou na Universidade Federal do Amazonas (UFAM), a palestra “Amazônia no antropoceno: observações, questões e desafios”, onde falava sobre os efeitos da era antropocenica nas comunidades amazônicas. Em seu discurso, abordou o fenômeno de urbanização e migração nos arredores da Amazônia (75% da população nessa região reside em centros urbanos), dos efeitos da ação humana nos ciclos ecológicos locais, e de como as condições nativas afetam o ser humano nesse ambiente tão complexo.
Apesar de levantar todas essas questões quanto ao efeito do antropoceno na região amazônica, Kawa atém sua crítica a um aspecto fundamental à teoria – ao colocar o homem como principal agente das mudanças ocorridas no planeta nos últimos 70.000 anos, equiparando à ação humana ao impacto do meteoro que varreu os dinossauros ou à era glacial, o antropoceno desconsidera a colaboração da natureza para as transformações contemporâneas. Kawa argumenta que o homem, ao invés de mestre controlador do meio ambiente – sendo este subserviente aos caprichos da humanidade – não possui o domínio completo das forças naturais, muito menos faz sua manutenção. Basta dar atenção ao aumento da incidência de terremotos, maremotos, furacões e erupções vulcânicas em todo o mundo – respostas da natureza proporcionais à ação humana. Para o antropólogo, a aceitação da era antropocenica pela sociedade é necessária para que a destruição do meio ambiente seja freada, precisa ser mais que uma medida de preservação da vida humana, é necessário que também tome a forma de responsabilidade social. Mas para que isso dê certo, o antropoceno precisa de uma abordagem ecológica, que conte com a participação da população já inserida nesse contexto, em contato direto com o meio ambiente, detentora de um conhecimento que, apesar de não ser científico, tem em seu cerne propriedades essenciais para a compreensão e manejo da natureza, que vão além das ideias estereotipadas difundidas em sociedade.
No dia seguinte à sua palestra na UFAM, Nick Kawa disponibilizou seu discurso sobre o antropoceno na Amazônia em seu blog, o que chamou a atenção de outros pesquisadores na área. Túlio Zille, doutorando em ciência política pela Universidade John Hopkins, nos Estados Unidos, em suas conversas com Bruno Caporrino, mestrando em antropologia pela UFAM, tomou conhecimento das ideias de Kawa. A partir de então, os três pesquisadores se engajaram em um profundo debate sobre o antropoceno, a virada ontológica e, principalmente, como legitimar o conhecimento tradicional de povos nativos da Amazônia.
Os sistemas de produção da verdade ocidental
Em seu primeiro contato com Nick Kawa, Túlio Zille levanta a seguinte questão:
“[…]é possível falarmos da cobra grande, no meio acadêmico, sem explicá-la como mito? Acho que ainda não consigo formular esta pergunta adequadamente pois a linguagem que está ao nosso alcance atualmente tende a recriar essas separações”.
Em sua palestra, Kawa falava sobre igarapés que surgiam por ação da natureza (enchentes, erosão, etc), ao que seus entrevistados atribuíram à entidade mística cobra grande. Na mitologia amazônica, a cobra grande é um ser mágico de proporções colossais, responsável pelo anúncio do verão, pelas tempestades (ao migrar de um rio a outro), e principalmente pelos igarapés – formados pelo rastro da criatura ao passear em terra firme. Kawa admite certo desconforto com esse trecho de sua fala, uma vez que é clara a diferença de valores entre crença e ciência em nossa sociedade. Mesmo assim, levanta um ponto interessante onde contesta as demais ficções produzidas pela humanidade, como o Papai Noel e suas múltiplas representações, ou até mesmo conceitos científicos como a biodiversidade. Ambas as ideias, por mais que permeiem campos opostos, são criações da imaginação humana, mas apenas a primeira não se sustenta nos sistemas de produção de verdade adotados desde o iluminismo – o conhecimento acadêmico ocidental.
“A virada ontológica está me ajudando a reconhecer o grande problema que existe quando a gente nega a existência da cobra grande, mas aceita a existência da biodiversidade, ou em outras palavras, quando a gente insiste em distinguir entre “conhecimento” e “crença”. “Crença” é, muitas vezes, uma forma pejorativa de falar dos conhecimentos ou a sabedoria dos outros. Eu acho que precisamos elevar os conceitos “dos outros” e colocá-los numa terra plana junto com os conceitos ou teorias acadêmicas – isso é um passo importante para começar a mudar a conversa”, elabora Kawa, quanto à questão levantada por Túlio.
Neste ponto, o antropoceno é deixado de lado e dá lugar ao antagonismo entre ciências e crenças. A entrada de Bruno Caporrino na conversa aponta a ciência como um rigoroso e restritivo sistema de produção de verdades usado, em muitos casos, para deslegitimar o conhecimento de povos passíveis de dominação – da mesma forma que a religião fora usada na idade média, orientada por motivos políticos e econômicos. Bruno afirma que desde Francis Bacon, considerado por muitos como pai da ciência moderna, e que via na mesma uma ferramenta para benefício do homem, o conhecimento assumiu uma metodologia baseado no experimentalismo com o fim máximo de chegar à verdade – mesmo o próprio Bacon sendo adepto da alquimia, da religião e outros mitos. Em Novum Organum, Bacon discorre sobre sua teoria do método científico. No entanto, a interpretação errônea de sua obra fez com que a sociedade ocidental adotasse esse regime de produção de verdades como a única forma de conferir credibilidade ao conhecimento.
“[…] a revolução copernicana acabara colocando o ideal renascentista de homem ocidental (simbolizado por um homem de uma determinada classe social, seja dito), no lugar antes ocupado por deus. Paulatinamente, os regimes de conhecimentos científico e filosófico, (sempre muito próximos e quase indiferenciáveis), passam a ser usados politicamente para legitimar a conquista etnocida do continente americano”, responde Bruno à dúvida de Túlio, sobre o antagonismo entre ciência e crença, levando o debate a um ponto ainda mais grave.
Etnocídio em nome do progresso
Para a sociedade europeia do século XVII, que se libertava do jugo religioso através do iluminismo, era necessário justificar seus atos políticos e econômicos, principalmente a manutenção de suas colônias. O europeu, então agente divino responsável por levar civilização e cultura, salvando assim as almas de milhões de selvagens condenados ao inferno por seu paganismo, com a decrescente influência da igreja sobre a política e a sociedade, vê o surgimento de uma nova necessidade – como provar sua superioridade perante os selvagens de forma científica?
A necessidade da explicação de um motivo justo para as barbaridades cometidas pelos europeus contra povos de culturas consideradas primitivas tornava a se revestir de uma nobreza autodeclarada, conferindo a eles a benevolente missão de conquistar esses povos e levar a eles o progresso científico, tirando-os das trevas e da ignorância.
Dentro de seus sistemas de produção de verdade, o ocidente renova as condições para a prática do etnocídio. Em seu argumento, Bruno Caporrocino cita Pierre Clastres, importante antropólogo e etnógrafo francês da segunda metade do século XX, que definiu o etnocídio como “[…] a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito”. Dessa forma, a virtude construída através da ciência garante a autoridade para combater outras culturas, consideradas pela sociedade dominante como malignas, dando ao conquistador a autoridade para “salvar” esses povos e impor sua própria cultura a eles – que é benigna e correta perante deus e a ciência.
“Atribuir-lhes cultura, que é um movimento que começa aí, não é descolonizante e nem emancipatório – não poupa aos povos ameríndios o infortúnio terrível de serem vítimas do etnocídio. Mas é no século XIX que essa busca pela Razão enquanto negação da natureza, que passa a ser inerte e inanimada e, por isso mesmo, dócil, passiva e dominável ao ponto do fazer-se humano consistir, epistemologicamente, num negar-se animal e, portanto, dominar a natureza à qual os povos ameríndios estão associados”. Bruno aponta para a polarização entre cultura ocidental versus natureza como o caminho encontrado pelo ocidente para promover sua ideia de progresso, puxado pelos novos interesses econômicos nascidos da revolução burguesa – nessa lógica, colonizar era preciso, pois era uma forma de maximizar a expansão da sociedade industrial e minimizar seus custos, garantindo uma maior margem de sucesso para a empreitada.
No entanto, a ideia de alçar o selvagem a homem civilizado enfrentou pronta resistência por parte desses povos. Fez-se necessário uma forma mais amena, disfarçada de boas intenções. Bruno argumenta que “[…] a lide com esses povos, nesse contexto, confrontou uma vez mais a episteme ocidental com questionamentos que passam a confrontar a empreitada neocolonial com incômodas dúvidas. Resulta disso a necessidade de operar como eminência parda e, portanto, compreender os conflitos internos e a organização social desses povos a fim de hipertrofiá-los e acirrá-los a fim de que, digladiando-se uns contra os outros, divididos, fosse possível imperar. Emerge, nesse cenário, a antropologia enquanto ciência”.
Cultura café-com-leite
A antropologia é, em termos simples, responsável por estudar a cultura, costumes e modo de sobrevivência do ser humano. Assim, o ocidente pôde devolver para certas populações ameríndias, africanas e asiáticas, parte da cultura que lhes fora tirada. Isso não configura, de forma alguma, uma retratação ocidental para com os povos dominados – o “bom selvagem”, afeito à natureza e dependente da mesma, ganhou o direito a manter seu modo de vida, contanto que a cultura ocidental se mantivesse dominante. A divisão civilização versus primitivo se manteve firme, à medida que a cultura de povos nativos era esculpida como uma alegoria, ela não era dotada de ciência, religião e seus métodos, assim como não compartilhava da organização social aplicada ao ocidente.
Nesse contexto, o selvagem jamais seria igualado ao homem ocidental. Segundo Bruno Caporrino “Parece-me que, atualmente, a acepção que se dá ao termo cultura tem sido benevolente e caridosa e, por isso mesmo, não menos maléfica. Cultura seria, hoje, algo como um verniz, uma camada de pálida humanidade: “iguais a nós”, os indígenas seriam diferentes por usarem roupas e pinturas corporais diferentes. Iguais em essência, diferentes em aparência, mas, ao mesmo tempo, inferiores quando se trata de direitos políticos ou de conhecimentos”. Ele afirma que a cultura atribuída aos povos considerados selvagens parece um marcador politicamente correto de diferenças aceitas, compreendidas e defendidas pelo ocidente, generoso, caridoso e unificador dos povos – autoimagem criada pela própria cultura ocidental.
Ao conceder cultura às populações ameríndias e reconhecê-las como humanas, a sociedade ocidental não deixou de fazer ressalvas. O índio, nesse contexto, se torna o que Bruno chama de “humano café-com-leite”, pois foram excluídos da arena social, relegados à reservas e inimputáveis de suas ações – sua cultura primitiva, seus hábitos selvagens e animalescos, eram justificáveis e perdoáveis pois esses povos foram considerados como uma nova categoria de ser humano.
“Humanos café-com-leite, mas humanos, vá lá. Rufam seus tambores, fazem suas danças. É meigo vê-los, um dia por ano, tocando seus atabaques. Usam tangas, e isso é valorado positivamente: até que suas terras fiquem a meio do caminho do Progresso – evolução. Então, esse fóssil vivo, que já não usa tangas, mas sim calções, e tem smartphones, deve ser eliminado, pois era um humano café-com-leite que parece ter perdido toda sua graça ao tirar a cultura – sobretudo material”, conclui Bruno, sobre o valor do que é entendido como cultura pela sociedade ocidental moderna.
A solução da virada ontológica
Nesse extenso debate, que percorre até mesmo as minúcias de nossa sociedade, sobre como o conhecimento é formado e legitimado, ou de como foi usado, tal qual a religião, como ferramenta para dominação de culturas consideradas primitivas e de como isso afetou a própria noção do que é “cultura”, os pesquisadores encontraram dois caminhos. Kawa acredita que é necessário equiparar o conhecimento de povos tradicionais ao conhecimento acadêmico, baseado na flat ontology (ontologia plana), do filósofo francês Bruno Latour. Caporrino defende que a antropologia precisa se focar em “elevar os regimes de conhecimento tradicionais à Regimes de Verdade, libertando os povos não-indígenas do pesado e caritativo jugo da cultura; de outro livrar a antropologia desta busca residual por um “estatuto de verdade”, que seria chancelado por uma visão bastante arcaica, inclusive, do que seja regime de conhecimento ocidental moderno”.
Apesar dessas conclusões, ainda se deparam com alguns problemas: como equiparar o conhecimento dos povos tradicionais ao nível acadêmico, rigoroso e excludente? E como reduzir a influência do conhecimento acadêmico já estabelecido perante a sociedade? O problema em ambas as questões reside no fato de que, se é possível elevar esses conhecimentos ao mesmo grau de veracidade que o acadêmico, seria possível criar condições para elevar qualquer espécie de conhecimento ao mesmo patamar – como é o caso das “verdades” produzidas por interesses políticos suspeitos, encarnados em figuras como Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Outro problema no qual esbarram os pesquisadores é a relação entre espaço (físico, geográfico), e cultura. Túlio Zille apresenta esse problema com uma questão observada em seus estudos sobre a construção da barragem de Belo Monte. Nessa ocasião, onde povos nativos da região seriam realocados para que o empreendimento pudesse ser realizado, Túlio se diz perplexo com a resposta dada por uma secretária executiva do consórcio de construtoras de represas quanto à remoção:
“Nós não estamos matando a cultura do índio, a cultura não morre, a cultura vai continuar a mesma. Só precisamos reassentar essas pessoas… O que a gente precisa? Tirar eles de um lugar e dar a eles outro de igual valor. A cultura está aqui (apontando para o coração), a cultura não está onde vivo.” (Do documentário, À margem do rio Xingu, 2011)
Túlio diz que sequer pôde se irritar com a afirmação, que não tinha dúvidas que a secretária executiva acreditava no que estava falando. Aponta que o maior problema é a aceitação da divisão entre cultura e espaço pela sociedade. “Não só as construtoras e o estado, mas também muitos daqueles que foram críticos de Belo Monte aceitaram a remoção de pessoas com a condição de que indenizações justas fossem garantidas (o que infelizmente não aconteceu, tampouco). Aí a gente pergunta – como se define justo? Houve vários casos de pescadores que foram deslocados para periferias da cidade, receberam um salário de indenização por um tempo, mas perderam a possibilidade de manter seus modos de vida”.
Ao se deparar com esse problema, os pesquisadores recorrem a Marisol de la Cadena, PhD em antropologia pela Universidade de Wisconsin-Madison (EUA), mencionada por Bruno Caporrino em seu extenso argumento sobre elevar o conhecimento tradicional a Regimes de Verdade. Túlio acredita que a maneira de estudo social e cultural proposta pela antropóloga é o caminho que procuram para legitimar o conhecimento tradicional perante a sociedade.
“Pelo o que eu entendi do trabalho dela, é menos importante sabermos do que se constituem as diferenças radicais entre nossa ontologia e as outras, do que habituar os nossos sentidos a não domesticar essas diferenças através dos nossos conceitos, os quais pressupomos universais ou objetivos”, observa Túlio, sobre o trabalho da antropóloga.
Novas formas para o conhecimento
Considerando as condições colonizadoras inerentes ao conhecimento acadêmico, os pesquisadores se veem afrontados com o próprio instinto, nativo de sua própria cultura, de explicar o modo e a filosofia de vida de povos nativos segundo seus próprios termos. O método científico, que necessita de aparato técnico, teorias, experimentação e repetição de resultados para se aproximar da verdade, se mostra muito limitado para a compreensão desses conhecimentos paralelos e tradicionais que, ao longo dos séculos, foi excluído do debate público e relegado à condição de “crença”, no sentido mais pejorativo da palavra. Visto isso, admitem a necessidade de outra categoria de profissionais que podem contribuir melhor para a legitimidade desses conhecimentos – os artistas.
“O desafio agora é de criar condições para que mais dos “modernos” possam experimentar outros mundos ontológicos sem colonizá-los, ou como os Zapatistas costumam dizer – um mundo onde caibam muitos mundos. A questão é como é que a gente faz isso? Quais são as condições que precisamos criar ou cultivar? Eu estou achando que vamos precisar de mais artistas ontólogicas do que cientistas sociais”, conclui Nick Kawa, a respeito do papel na academia na construção dessa ideia de legitimidade para povos tradicionais.
Túlio cita um exemplo que aponta nessa direção. “Eu li uma reportagem na última semana sobre a primeira tese de doutorado em formato de história em quadrinhos aprovada nos EUA há poucos anos, e que lida justamente sobre a questão da necessidade de flexibilizar a linguagem da produção acadêmica para podermos transmitir realidades mais complexas”.