Edyr Augusto

Jornalista e escritor paraense. Lançou 19 livros nos mais variados gêneros, todos eles tendo a cidade de Belém como cenário.

Um escritor da Amazônia

Escritor paraense fala em texto sobre diferentes realidades brasileiras
Escritor paraense fala em texto sobre diferentes realidades brasileiras - Foto: Reprodução/Amazônia Latitude

Estava em Saint Malo, Normandia, França, participando de um grande Festival de Livros e Filmes, chamado Les Etonnant Voyageurs. Era a primeira vez que participava de um evento literário internacional e estava bem empolgado, prestando atenção em tudo.

A programação previa uma fala em público, na companhia de dois grandes escritores brasileiros, Patrícia Melo e Luiz Ruffato, este, um bom amigo. Percorremos alguns corredores e subimos em um palco. Era um teatro. Havia umas 800 pessoas aguardando.

Levei um susto, desacostumado com uma atenção dessas. Por sorte, meus dois companheiros falaram primeiro. Deram um show. Experientes, falaram de seus livros, do Brasil, mencionando Salvador, carnaval, Rio, Ipanema, São Paulo. Enquanto isso, eu entrava em pânico. Percebera ali, naquele palco, que ainda não tinha um discurso. Não havia desenvolvido um raciocínio a respeito de minha obra, minha escrita.

Nesses momentos difíceis, nosso cérebro põe-se a trabalhar freneticamente reunindo informações, de modo que quando chegou minha vez, e tendo ao lado uma excelente intérprete, comecei dizendo: Senhoras e senhores, venho de um outro mundo. Meus amigos falaram sobre o Brasil que é mais conhecido aqui na Europa. Suas belezas, seu povo, praias, carnaval, enfim. Quanto a mim, vivo em uma selva de concreto, fincada na maior floresta tropical do mundo.

Da janela do meu prédio vejo a imensa selva. Há um rio tão largo que quase não vemos a outra margem. Penso naquelas pessoas que moram lá, em uma vida verde, totalmente verde e que, diariamente atravessam de barco para pisar na selva de concreto. Há uma perplexidade nessa troca entre esses dois povos. E aí desenvolvi e fui levando.

O fato é que primeiro entendi a imensa distância que estava em realidades. As dificuldades em minha cidade para escrever e publicar. Para conseguir ultrapassar os limites e chegar ao grande mercado do sudeste. E ainda assim, ultrapassar um oceano, chegando em um lugar onde a Literatura tem grande importância e interesse. Não sou um escritor regionalista. Não falo de nossas comidas, frutas, árvores, tão encantadoras.

Nasci no centro de Belém, que curiosamente fica à margem da Baía de Guajará. Belém foi cidade preferencialmente portuária por longos anos. Na época do boom da borracha, chegou a ter 45 consulados em comércio de produtos que iam e vinham da Europa. Havia sempre muitos navios no porto e com isso, marinheiros de folga, aguardando uma nova viagem.

Passavam o tempo em uma famosa zona de prostituição que teve seu tempo áureo naquele começo do século XX e até meados. Mas nunca fechou. Por coincidência, os fundos do prédio em que morei uma vida inteira, davam para a zona.

Criança, corríamos a ver as brigas que aconteciam, ao ouvir os gritos e exclamações. Quando mais velho, acostumei em ver aqueles rostos ao sair para trabalhar. Adiante, já adulto, trabalhando com um grupo de teatro, Cuíra, alugamos um prédio que ia ser um estacionamento que não aconteceu.

Após várias peripécias, conseguimos equipa-lo passando nove anos ali, sem nenhum tipo de ajuda estadual ou municipal. Foi maravilhoso, mas para mim, mais ainda. As prostitutas remanescentes se envolveram conosco e foram para o palco em diversas montagens. Com isso, passamos a conhecer toda aquela gente. Como escritor, sou um observador das pessoas. Gravo rostos, corpos que se movem, melodia de vozes e vocabulário.

Quando escrevi meu primeiro romance, decidi duas coisas que passaram a ser uma marca pessoal. Primeiro, Belém seria meu cenário. Segundo, iria escrever sobre as pessoas, utilizando todo aquele vocabulário de rua que já tinha, juntamente com o que eu já tinha de uma vida inteira. Percebi que meu estilo seria o de um paraense, falando de minha cidade.

Belém, atualmente, é uma cidade que na região metropolitana já conta com 2 milhões de habitantes. Tem todas as qualidades e defeitos que qualquer grande cidade, desse porte, tem. Disse aos franceses que apesar de morar em Belém, através da internet, tinha acesso ao campeonato francês de futebol, aos jornais, revistas e RTF. Que falaria dessa cidade onde precisamos conviver com esses dois mundos.

Os críticos de lá dizem que eu quebrei o cristal de uma Amazônia idílica. Levo até eles dramas que podem acontecer em qualquer cidade grande francesa, com a diferença clara de mundos e uma linguagem rápida, rítmica, sem dar chance a deixar a leitura para outro dia.

Mesmo com a total ausência de politicas culturais, no caso, específicas para a Literatura, no entanto, Belém tem uma cena com escritores jovens e mais maduros, publicando ou lutando para publicar, mas principalmente lutando para fazer os paraenses consumirem o que se faz localmente. Não estamos nas grandes livrarias. Estávamos na Fox, bem local, que fechou.

Há a Solar do Leitor e acabou de inaugurar a Travessia. Quando falo para a mídia do sudeste ou para a francesa que temos escritores nos gêneros terror, fantasia, ficção, memória e regionalistas há um sorriso de dúvida. São jovens que escrevem, reúnem, fazem mostras, publicam na internet e até algumas editoras paulistas, na área de terror e ficção.

É claro que ainda há uma forte influência dos autores internacionais, que chegam por todos os lados, mas aos poucos vão percebendo que somente serão originais quando falarem de seu chão. Mas tenho amigos, regionalistas com longas carreiras, alguns na Academia Paraense de Letras. E um movimento nos municípios em abrir academias de letras bastante interessante.

Temos muitos obstáculos. A Educação é péssima e forma cidadãos com pouca opinião e sem conexão com a leitura. Os órgãos governamentais também não têm nenhum programa para a área. Frequento algumas turmas de cursos de Letras cujos professores apoiam a causa e quase sempre preciso me apresentar, pois apesar de já escrever há uns 40 anos, a maioria nunca ouviu falar.

Nesses cursos dedicam todo o tempo aos nacionalmente famosos e os clássicos. Mas sem conexão com o lugar onde habitam, como pode haver um Curso de Letras? Alguns de nós conseguimos algum destaque como os poetas João de Jesus Paes Loureiro e Antonio Moura. Vicente Cecim, que nos deixou há pouco tempo, Monique Malcher, Pedro Baía, Fábio Horácio Castro, que recentemente venceram concursos nacionais.

É uma luta para sermos lidos em nossa própria terra. Outra luta para furar um bloqueio que existe no mercado grande de Rio e São Paulo. E essa Literatura atual é jovem, moderna, audaciosa e brilhante. Mas obter matérias, destacar-se, ser convidado a participar de Feiras, Encontros, Reuniões, muito difícil. Há o chamado “custo amazônico”. Passagens aéreas caríssimas nos deixam fora das seleções. Mas não desistimos. Sempre causamos surpresa a cada vez que um de nós fura essa bolha. E somos corajosos.

Agora mesmo, um dos nossos maiores, Salomão Laredo lança dois romances de uma vez. Haverá uma noite de autógrafos concorrida, certamente, mas depois, onde venderá os livros? As grandes livrarias em cadeia nacional, chegam a cobrar, dos escritores, 60 a 70% do preço da capa, o que torna impossível e injusto competir. Sempre digo que posso ter tido a sorte de ter lançamentos na França e até prêmio.

De ser editado pela excelente Boitempo, que me coloca nas melhores livraria do país. Mas aqui em Belém, sou igualzinho a qualquer um dos meus companheiros, lutando para ser lido, afinal, o belemense, o paraense, é meu primeiro leitor. Sim, eu sou um escritor paraense.

Alguns colegas paulistas me convidam a mudar para São Paulo, mas não devo fazê-lo e perder minha referência. As pessoas que diariamente observo, converso, ouço. O Pará é um dos Estados mais importantes, embora nem todos percebam. Somos o segundo em extensão. Somos o mais rico em tudo o que se imaginar em termos de produtos da terra.

Por nossa posição geográfica, Belém é por onde sai grande quantidade de droga que vai abastecer a Europa e redondezas. Também vão abastecer o mundo nosso ferro, manganês, cassiterita, ouro, prata, metais estratégicos e muitos outros.

Disse, certa vez, que a Amazônia é a puta do mundo. Daqui chineses, noruegueses, americanos, canadenses sei lá que mais, levam diariamente nossas riquezas que depois retornam manufaturadas para que paguemos caro por elas.

Mas não temos como reagir. Nossa Educação é péssima, produzindo uma população que não consegue protestar, assumir o controle e dar as cartas. Sou um escritor paraense. Amazônico. Nos meus livros, há denúncia, em meio às frases que escrevo. Faço minha parte. Sou um escritor urbano, que escreve sobre a selva concreta, fincada na maior floresta tropical do mundo. Isso é alguma coisa.

Edyr Augusto é paraense, jornalista e escritor, tendo lançado 19 livros nos mais variados gêneros, todos eles tendo a cidade de Belém como cenário. Os romances do escritor são apresentados pela Boitempo Editora e cinco deles foram traduzidos e lançados na França pela Asphalte Editions.

Colunistas têm liberdade para expressar opiniões pessoais. O texto do escritor não reflete, necessariamente, o posicionamento da Amazônia Latitude.

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