Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Resenha: Monique Malcher e o abismo da verdade

Monique Malcher é tema de artigo enviado à Revista Amazônia Latitude
Monique Malcher é tema de artigo enviado à Revista Amazônia Latitude - Foto: Amazônia Latitude
Monique Malcher é tema de artigo enviado à Revista Amazônia Latitude

Acho que foi Roland Barthes quem fez uma comparação primorosa entre a literatura e a Pedra de Bolonha, um milagre da alquimia “que irradia de noite o que aprisionou durante o dia, e, por esse fulgor indireto, ilumina o novo dia que chega”.

Os 37 contos da escritora Monique Malcher, paraense de Santarém, no fabuloso livro Flor de Gume (Editora Jandaíra, 2020) sugerem tarefa análoga: das memórias turvas da opressão, do terror cotidiano e das violências sofridas na mais tenra idade, ela desperta na manhã da vida adulta como uma pessoa livre, independente, autônoma. Da obscuridade, ressurge com uma espécie de lanterna na mão trazendo uma nova claridade, iluminando o caminho para além das bifurcações costumeiras, jogando uma boia para nós, os outros.

O gesto humanista essencial da literatura de Monique, que é dolorosa, agoniante e prenhe de extrema unção, permite vislumbrar a preservação da inocência, do sonho e do arbítrio à revelia de toda a miséria humana. É uma conquista de raros autores. “Aprendi a enxergar na escuridão, dentro das caixas e caixões”, anuncia a autora.

Existe um livro de contos de John Updike, Confie em Mim, de 1959, que trata de momentos-chave da vida nos quais a gente perde irremediavelmente a confiança nas pessoas que deveriam proteger-nos, mostrar-nos o trajeto. São histórias de pais traindo a confiança dos filhos, pequenas e grandes traições conjugais, punhaladas na entrega e momentos de desilusão que o tempo cauteriza como irrecuperáveis. Flor de Gume mostra outros momentos como aqueles, mas, também, que há cura no trajeto.

Na literatura de Monique, todas as traições que apunhalaram a inocência da menina e a busca de afirmação da mulher são emolduradas por uma narrativa de resgate, como se ela atirasse um balde para retirar náufragos de dentro de um poço. Há abandono de causa também, claro, como é da vida. “Amor foi uma vontade de criança”, lamenta. Mas é precisamente da resistência que os contos dela se alimentam e, por tabela, alimentam o leitor, como se filtrassem do oxigênio rarefeito deixado pela escritora o ar necessário para chegar à superfície.

O conto que abre o livro de Monique, Boca de Lobo (e cada conto que abre um livro é sempre um escolhido), já encerra essa declaração de ternura. “Ali também era nossa casa”, diz a autora acerca das redes dos barcos em que a família dormia e que singram e sangram o Rio Amazonas, redes que evitam a proximidade com o motor. Declaração de pertencimento desse porte é rara na literatura contemporânea.

As três partes de Flor de Gume assumem diversos significados. Inicialmente, tratam de três gerações de mulheres. E ainda: de três formas de uma mulher descobrir a importância da desforra. Ou de três ambiências geográficas e espirituais, de Belém a São Paulo a Florianópolis. Parte 1: “Os nomes escritos nas árvores, os umbigos enterrados no chão”. Todos sabemos que os ritos de escrever nomes nas árvores ou enterrar os umbigos dos recém-nascidos são atos de redenção. Parte 2: “Quando os lábios roxos gritam em caixas de leis herméticas”. A descoberta do autoflagelo, a humilhação, a vicissitude. Parte 3: “O reflorestar do corpo, o abandonar das pragas”. A volta por cima, a retomada do rumo.

Monique também elabora, sem falso distanciamento, uma árdua tarefa de dar à literatura um fim terapêutico, uma utilidade adicional – e de exigir que a literatura, inútil como toda arte, no final das contas preste para alguma coisa. “Chega dessa ideia de ouvir mais e ser tão caridosa com as palavras dos outros, não suporto nem me ouvir, falo coisas asquerosas sobre mim mesma, e que lindo não afetar ninguém, mas me destruir tem sido o bastante”, avalia a autora, no conto Rosa Vermelha.

Os outsiders da literatura de macho, quase sempre, foram forjados a indiferença, desprezo e porrada. Em outro diapasão, a literatura de Monique dá voz às mulheres que apanharam, sofreram caladas, quebraram os tabus pagando o preço da própria imolação pública. Seus contos falam da expectativa de pertencimento, do amor imatável pela terra, pelo rio, pela linhagem feminina. De uma mulher sentindo-se confortável com a perda de si mesma e a reconstrução de si mesma em cima das próprias ruínas. Antibukowskiana. Um anticomputador sentimental.

Sua narrativa não esconde o autor. Não esconde sua intenção de denunciar. Denunciar os maus tratos, o medo de se tornar cópia da mãe, a exigência de ser o que se espera que sejamos, as fissuras irremediáveis, as violências do sexo, o aprendizado terrível do desprezo. O ódio à rejeição. “A carta da raposa do tarô esperando pra me atacar se fecho os olhos”.

Há um componente de manifesto em Flor de Gume, um credo que vem colado à habilidade da escrita, ao artesanato, ao arrojo criativo. “Acredito em mim, acredito nas mulheres, pobres, fodidas, trans, travestis, pretas, indígenas, sobreviventes, ribeirinhas. Acredito na minha mãe, tias, avós, amigas. Acredito nessa maldição que eu sou, que linda maldição! Só quem permanece em mim vai dançar na lua que se aproxima”.

Mesmo com a devoção declarada a Susan Sontag e sua formulação filosófica do ativismo, a matéria-prima da literatura de Monique é abastecida principalmente pela experiência. Pelos personagens e pelos signos dos lugares que viveu e nos quais foi forjada. A vida ribeirinha e a cultura pop lado a lado: Lilo & Sticht, Monstros S/A, uma canção de Fagner, uma cadela viralatas, uma gata, um mototaxista, os barcos de passageiros na selva, as ruas das periferias e seus muros testemunhais.

Monique Malcher fez um livro em que olha para dentro de si vertiginosamente e, nesse olhar, esboça um recenseamento do feminino. Flor de Gume teve reconhecimento público. Ganhou o Prêmio Jabuti de 2021. Está ganhando agora a recepção devida a todo relato que carregue consigo o abismo da verdade.

Jotabê Medeiros – paraibano de Sumé, mas pequeno e adolescente viveu em Londrina, no interior do Paraná. Jornalista, escritor, repórter de de cultura há 35 anos, é autor dos livros “O Bisbilhoteiro das Galáxias”, “Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida”, “Roberto Carlos – Por isso essa voz tamanha” e da autobiografia familiar “O Último Pau de Arara”.

Livro: Flor de Gume
Autora: Monique Malcher
Editora: Jandaíra
Ano: 2020
Páginas: 232

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