Hotel Monteiro: desesperos, morte e silêncio na colônia vertical dos perdidos

Hotel monteiro em fevereiro de 2020, pelo Google Earth
Hotel Monteiro - ou Hotel da Morte - em fevereiro de 2020. Foto: Google Earth Studio
Hotel monteiro em fevereiro de 2020, pelo Google Earth

Hotel Monteiro ou “Hotel da Morte”, em fevereiro de 2020. Foto: Google Earth Studio

A manhã sufocante se desenrolava como uma tragédia silenciosa, o sol escaldante lançava suas garras sobre as calçadas de concreto e reduzia as pessoas a pontos escuros na claridade. Um carrasco a fustigar os pecadores ao longo da Avenida Joaquim Nabuco, centro de Manaus; que, posto acima das almas, o Sol tornava os instantes tempo em um teatro de sombras protagonizado pela vida e a morte. No tablado da atuação, bailavam uma dança sinistra ao som dos gemidos dos condenados, ordem dos carrascos e silêncio dos pecadores.

O calor opressivo envolvia a rua, os prédios, as casas, os bares e os comércios em uma manta de desespero, dominando os mortais que ousavam caminhar seu domínio. Nas ruas estreitas e mal iluminadas que cruzavam com a Joaquim Nabuco, os passos apressados dos transeuntes ecoavam como um lamento fúnebre, enquanto o sol implacável lançava sua luz cruel sobre os rostos cansados e suados daqueles que vagavam esquecidos em seus pensamentos e rotina.

No epicentro dessa tragédia urbana, a avenida Joaquim Nabuco se ergue como uma ferida aberta no corpo da cidade, outrora próspera e atualmente, um palco de horrores, onde os destinos se cruzam no baile de uma dança perversa de crime, horror e pobreza. No andar das horas, os dias são reduzidos a espectros de uma casa em ruína, em especial o fim da tarde e início da noite, os prédios lançam suas auras sinistras sobre os espaços desertos, como sentinelas silenciosas a guardar segredos esquecíveis que ali mancham por crostas amareladas as paredes e obtém o silêncio cúmplice dos residentes.

É nesse cenário desolador que a existência humana encontra seu limiar social, em que a vida e morte são amantes sentenciados a uma dança eterna. Um bailar frio de dois guardiões da existência. Os fios invisíveis do destino tecem uma teia intrincada de tragédia e desespero, no qual os destinos se entrelaçam em um emaranhado de dor e sofrimento. Palco de horrores onde vivos e mortos se cumprimentam sinistramente ao som dos gemidos dos condenados. A avenida Joaquim Nabuco guarda o silêncio da cidade, engole segredos silenciados como um predador faminto à procura de uma presa dando sentido a uma existência, a um limiar.

Nesse deserto de dores encasteladas, logo uma torre de concreto, o Hotel Monteiro projeta-se como uma cicatriz feita pela mão do homem na carne daquela avenida. Suas paredes, cinzentas e descascadas, são testemunhas mudas dos horrores que ali se desenrolam. Cada tijolo uma peça no quebra-cabeça sombrio da existência. É conhecido pelos moradores como o “prédio da morte”, alcunha macabra que ecoa pelos becos e ruelas como um grito sufocado. Cada passo dentro de seu espaço é um passo mais próximo do diabo, o negrume dos segredos se agarra aos corredores como uma namorada ciumenta, sufocando qualquer luz de esperança que ouse penetrar seus domínios.

Por trás da fachada imponente do hotel, os arcanos se cruzam, um se alimentando do outro, enquanto aguardam pacientemente para serem revelados. Um lugar onde os desesperados se refugiam, as almas perdidas buscam abrigo do mundo predador. Mas o que encontram dentro de suas paredes é muito mais do que esperavam.

Uma barreira que separa o mundo exterior do abismo de horrores, que se esconde dentro de seus corredores sombrios. Cada tijolo parece conter uma energia maligna, uma presença sinistra que sussurra malevolências. Suas janelas destruídas pelo tempo mais parecem olhos vasados de um moribundo observando silenciosamente os que passam.

Cortinas empoeiradas acompanham o vento como espectros inquietos clamando por libertação. O hotel é a decadência, mistura nauseante de mofo e desespero que se infiltra nas narinas dos incautos. Os corredores escuros são como labirintos de desespero, onde os sons dos passos ecoam como um eco macabro. Cada quarto é um palco de horrores, onde os fantasmas do passado se erguem para assombrar os vivos, sussurrando segredos sombrios nos ouvidos daqueles que se atrevem a ouvir. Assim, no coração do Hotel Monteiro o mal se agarra como uma serpente venenosa, enroscando-se em torno daqueles que se aventuram em seus domínios. É um lugar onde a vida e a morte participam de uma dança macabra, onde o sangue dos aventureiros mancha as paredes como uma pintura grotesca, testemunho taciturno da crueldade humana.

Cada assombração que se move nos cantos escuros do que sobra do hotel é alguém do passado clamando por redenção em uma cidade onde a lei não alcança os mais necessitados por justiça. São gritos abafados dos que foram olvidados ecoando pelos corredores vazios, perdidos para sempre nas profundezas da noite.

De gigante, só o simbolismo à crueldade do mundo: paredes cobrindo segredos que jamais serão revelados; lugar onde os sonhos morrem e os pesadelos ganham vida, uma prisão sem grades para aqueles que se encontram presos em suas garras. Uma sombra faminta alimentando-se do desespero e da dor que permeiam o ar. Um lugar onde as leis da realidade parecem não se aplicar, onde o impossível se torna possível e o inimaginável se torna realidade. Hotel Monteiro, em suas paredes é fácil esconder histórias sombrias, lugar onde os sonhos matam e os devaneios ganham vida em uma prisão sem grades para aqueles que se encontram presos em suas garras.

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Certa vez, em mais uma claudicante manhã, o sol lança suas luzes em mais um fato dantesco que entraria para os anais do Hotel Monteiro, engrossando as linhas frias de sua fama. Mais um capítulo cruel se desenrolou entre suas paredes. Um homem, cuja identidade permanece em mistério, jazia degolado na laje do prédio. O sangue derramado tingia o chão de vermelho vivo. Sangue e notícia se espalhavam em concreto e ouvidos, espalharam na avenida Joaquim Nabuco o cheiro e a imagem de mais um corpo encontrado no terraço do Hotel da Morte.

No ar, pairava uma atmosfera densa como se o edifício estivesse grávido de mais um mistério. Os residentes, com olhos cheios de curiosidade e as línguas municiadas de especulações, propagavam murmúrios cautelosos, juntamente com passos hesitantes, temendo pela imagem do corpo sem vida. E lá, sobre o terraço frio do prédio, o corpo sem vida brutalmente assassinado.

Há situações de profunda extremidade capazes de modificar condições ambientais e reduzi-las à extensão do contexto dessas situações. Os homicídios com crueldade e maldade são algumas delas. A figura imóvel daquele homem sem identidade banhada pela luz quente do dia criava no terraço uma estufa fria e cinzenta própria de dias pluviosos. O ar de tristeza e desamparo impõem-se, como se a própria estrutura do edifício chorasse aquela perda ou acobertasse a infâmia.

O rosto pálido e contorcido aproximado a uma máscara de agonia era o testemunho silencioso do terror que ocorreu nas últimas horas na laje do terraço. Com a tempestade, vem os raios e os medos pueris das crianças, pelos estrondos e contornos da luz sobre o escuro. E em uma cena de homicídio, junto com as autoridades, a cena criminal é aprofundada pelos curiosos com suas confabulações e olhares que tentam desvendar o enigma por trás da morte. É a maldade se vertendo em humanismo anônimo em uma busca momentânea pela razão por trás do fato.

O exame legal da cena do crime realizado pela polícia científica da Polícia Civil do Amazonas verifica cada detalhe no cenário, procurando pistas que possam elucidar o caso. Marcas de pegadas na laje, vestígios de luta no chão, um objeto esquecido no parapeito. Cada elemento é uma peça do quebra-cabeça montado para revelar a verdade encoberta. Mas é a opção por tornar tudo aquilo anônimo e sem solução que o exame revela semelhança com outras ocorrências policiais no Hotel da Morte.

Enquanto isso, o corpo sem vida esquentava deitado na laje do terraço e a polícia tentava fazer seu trabalho. Pequenos grupos de residentes do prédio se reuniam, um distante do outro, sussurrando teorias e especulações, alimentando a brasa fria da fogueira da paranoia e do medo. Quem era esse homem? Por que estava ali? Quem foi o responsável por tamanha maldade? Desse modo, o mistério parecia se aprofundar e ganhar corpo nas possíveis testemunhas, nos registros, que tentavam apontar os motivos. E assim como outros homicídios ocorridos no local, quanto mais os investigadores cavavam os cantos escuros do prédio em busca de respostas, mais o prédio revelava suas raízes sinistras se estendendo pelas paredes e encravando-se na terra como árvore, uma árvore cujo frutos são os corpos sem vida espalhados pelas lembranças dos cômodos do hotel.

Naquele dia, assim como em outros, à medida que o sol se punha e a escuridão engolia o edifício, a sensação de opressão crescia. Os residentes trancavam suas portas como podiam, espreitando pelas janelas e passagens com olhos arregalados, temerosos pelo que haveria por vir e do que a noite poderia trazer. A sombra da crueldade dos assassinatos pairava sobre eles como uma nuvem negra, obscurecendo suas mentes e envenenando seus corações com o medo do desconhecido e a desconfiança do conhecido.

O mistério persistia sobre esse e outros assassinatos, que só faziam sentido quando do terraço vinham diversos gritos de horror em diferentes horários e dias, segundo os moradores. Mistério semelhante a uma ferida aberta que se recusava a cicatrizar. Cada sombra, cada suspiro, cada passo ecoando nos corredores eram lembranças constantes da morte que havia alugado um quarto para uma estadia permanente, dificultando a resolução do enigma e a revelação dos segredos e dos responsáveis pela gerência daqueles atos.

O sargento Orestes Ribeiro, da 24ª Companhia Interativa Comunitária (Cicom), é um dos poucos que se aventuram nos recantos mais obscuros da cidade, enfrentando os perigos que habitam essas paragens. Ele traz consigo as histórias mais sombrias, testemunhas mudas da violência desenfreada que assola Manaus. Na baía de sua descrição, outros são incluídos. Porém, pedem confidencialidade e discrição por representarem institucionalmente personagens que carregam consigo não apenas histórias, mas também o peso emocional das que acabaram mal.

Segundo o sargento, o responsável por aquele ato seria um homem de origem venezuelana e estaria sendo investigado por outros ocorridos no mesmo hotel. O prédio, uma fortaleza de concreto e desespero, dava conforto e privacidade ao suspeito em transformá-lo no epicentro de uma guerra silenciosa, onde vidas são trituradas sem piedade, em favor da manutenção de operações de armazenamento, embalagem e distribuição de narcóticos ilegais, protegidos por uma sigla do crime que domina as rotas de narcotráfico internacionais na Amazônia.

À medida que a conversa com o sargento avançava, a noite escurecia e o peso de outras narrativas macabras deslizavam por seu semblante, aduzindo experiências profissionais e um coração agoniado pela grande falta de justiça para os mais pobres. Nesse ponto, uma figura enigmática emergia para revelar um mosaico de cicatrizes físicas e emocionais, testemunha do flagelo da violência, do espectro do horror, de histórias grotescas que entalhavam no seu rosto marcas das agruras da vida e um espelho nuvioso que refletia a selvageria do mundo ao seu redor.

O sargento conta que poucos se aventuram por aquela área. Se não é drogado em busca de outra curtição e morador do local — refém do medo, que, por falta de um aporte financeiro melhor, não consegue pagar um aluguel em uma área menos violenta. Por essa razão, a atmosfera do Hotel Monteiro é impregnada de um suspense pesado. Os relatos que correm nas fofocas e conversas paralelas na Joaquim Nabuco são sussurrados por moradores em tom de horror contido, ecoam pelos cantos, deixando uma sensação de inquietação no ar e várias perguntas sem respostas.

Nesses sussurros é que vemos descer pela correnteza de teorias e especulações a vida de um homem marcado por ferimentos de tiros encontrado em um dos quartos. Gritos, pedidos de ajuda, clemencias, e junto cabeças humanas, algumas rolavam feito bola de um jogo de futebol na rua. A presença desses humanos agora era um borrão na memória daqueles que ainda se punham corajosamente viver no Hotel da Morte.

A mesma corredeira traz um adolescente de apenas 16 anos. Em uma cruel reviravolta do destino, tornou-se vítima de uma covardia que assombrou os pensamentos de todos. Sua figura juvenil encontrou sua paz derradeira enquanto repousava na escada do estabelecimento, um local que deveria proporcionar segurança.

Enquanto os investigadores mergulhavam nas sombras do Hotel Monteiro, cada passo de sua busca pela verdade era pontuado pela tensão palpável do ambiente. Os métodos de detecção eram meticulosamente aplicados. Cada pista seguida com precisão técnica para desvendar os enigmas por trás desses eventos trágicos. Enquanto a investigação avançava, a complexidade dos relacionamentos entre os moradores do lugar começava a se revelar, tecendo uma teia de suspeitas e motivos ocultos. Personagens reais em um mundo real, cada um com suas próprias motivações e segredos, contribuíam para a trama intrincada que se desdobrava.

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Enquanto a polícia científica e os investigadores da PC-AM desvendavam os segredos, o mistério se adensava, confundindo até mesmo o leitor mais perspicaz. Cada reviravolta na história era cuidadosamente planejada para manter o suspense e a intriga até o desenlace inevitável. E finalmente, quando a verdade por trás dos crimes era revelada, a solução parecia inevitável. Cada peça do quebra cabeça se encaixando de forma precisa para formar o quadro completo. E, embora o desfecho pudesse não ser o esperado, a justiça, de uma forma ou de outra, era alcançada, cumprindo a necessidade de punir o criminoso e oferecer algum tipo de resolução para os horrores que assolaram o hotel. Tudo isso era lento, esbarrava em dilemas humanos o que fazia a realidade macabra superar as expectativas por justiça.

Os horrores, como uma pilha lúgubre de corpos silenciosos, testemunhavam a decadência moral que assolava aquele local outrora acolhedor. A presença da polícia, ainda que firme, parecia apenas uma luz fraca tentando penetrar na noite opressiva que envolvia o prédio. Certa vez, de acordo com os moradores, prenderam um homem armado, que continuava a se esquivar, apoiando-se na sombra e sanguinolência do hotel, esgueirando-se pelos cantos mais obscuros da mente humana, como se isso fosse reafirmar sua escolha de andar armado e engrandecer sua fama de violento e seguro de qualquer mal que pudesse lhe ocorrer.

Em meio àquele caos, ecoavam passos apressados dos moradores mais insatisfeitos e preocupados com sua segurança, cada um carregando consigo o fardo do medo e desespero. Catiane Paiva, uma jovem mãe cujo semblante outrora radiante agora era marcado pelo terror, abraçava seu filho pequeno com força, buscava protegê-lo do mal que se infiltrava nas paredes do espaço que um dia chamavam de lar. Seus olhos, antes cheios de esperança, agora refletiam apenas a impotência diante da violência que os cercava.

Altamiro Lira, idoso cujas rugas contavam histórias de uma vida de lutas e superações, via-se forçado a fechar as portas de seu modesto comércio, porque a malevolência e escuridão que pairavam no hotel não bastavam assombrar seus corredores, mas invadiam os espaços íntimos da vida de seus habitantes.

Cada partida era um golpe no coração, um lembrete doloroso de que o terror não conhecia fronteiras e que a segurança tão desejada era apenas uma ilusão passageira. Os moradores se viam obrigados a abandonar as lembranças e sonhos que construíram entre aquelas paredes, uma sensação de perda e desamparo. No entanto, mesmo diante da adversidade, a chama da esperança ainda brilhava nos corações daqueles que se recusavam a ceder ao desespero. Enquanto preparavam suas malas e se despediam do único lar que conheciam, prometiam a si mesmos que um dia retornariam e retomariam o que foi perdido.

E então, entre lamentos e suspiros, o Hotel Monteiro mergulhava cada vez mais fundo nas trevas do crime e da corrupção humana, os laços eram desfeitos com a realidade, tornando símbolo sombrio da decadência humana, um lugar onde o medo e a morte caminhavam de mãos dadas. Para Antônio Pimentel, aquilo era um basta, que mesmo sem destino certo, não daria mais para ele. Deixou tudo para trás, até as lembranças se recusou a carregar.

A Delegacia Especializada em Homicídios e Sequestros (DEHS) continuava as investigações como uma luz fraca tentando penetrar no crepúsculo opressivo que envolvia o prédio. A cada pista seguida, os investigadores eram confrontados com novos mistérios. Cada revelação lança luz a uma sombra e a enigmas, que parecem se fechar sobre eles como se os corredores conspirassem para mantê-los presos em um labirinto de mentiras e decepções.

As sombras eram profundas, e a verdade permanecia oculta nos espaços do Hotel da Morte. Os relatos dos moradores, combinado com as ocorrências policiais davam a dimensão do banho de sangue perpetrado ali. “Era normal”, diziam os moradores do estabelecimento e residentes da avenida Joaquim Nabuco. “Normalidade” opressora, lenta, consumidora de almas, que quanto mais era aceita, mais abafava a verdade sobre os ocorridos e protegia os autores que aguardavam pacientemente para serem descobertos. Um dia serão, ou não.

Josué Vieira é professor de Língua Portuguesa da Secretaria Estadual de Educação do Amazonas (Seduc-AM), e no ensino superior, nos cursos de Letras e História da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). Como pesquisador, desenvolve pesquisas e consultoria em projetos na área de Sociologia e Antropologia, mais especificamente quanto ao tratamento da matéria Crime, Criminalidade, Vítima e Vitimização.

Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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