“Tocaia do Norte”: um espelho da injustiça Indígena sob a ditadura brasileira

[RESUMO]: “Tocaia do Norte” é um romance de Sandra Godinho (2020) ambientado na Manaus dos anos 1960 durante a ditadura no Brasil. João de Deus, um ribeirinho, se junta à expedição do padre Chiarelli para proteger os indígenas Waimiri-Atroaris afetados pela construção da BR-174. Paulo Dias, aliado do governo, contribui para o fracasso da expedição, refletindo o imaginário discriminatório sobre os indígenas. O estudo analisa esse imaginário, baseando-se em teorias de Wolfgang Iser, Ivan Teixeira, Ailton Krenak, Manoela Carneiro da Cunha e Verenilde Pereira.


A obra de Sandra Godinho, Tocaia do Norte, trata-se de uma reconstrução de acontecimentos históricos através da ficção. A história se passa na década de 1960, no período da Ditadura Militar no Brasil, em que, especificamente no Amazonas, havia a intenção de construir a BR-174 e também a hidrelétrica no município de Balbina. Entretanto, naquela região residiam comunidades indígenas, as quais, como se sabe historicamente, sofreram genocídio. Parte dos personagens, especialmente os da expedição do Padre Chiarelli, foram baseados em pessoas que existiram de fato, já que é uma retomada da história do massacre do padre Calleri.

O romance narra, em primeira pessoa, a trajetória de João de Deus, um jovem manauara e ribeirinho que tenta encontrar seu lugar na vida e sonha com conhecer o mundo.  Impossibilitado pela condição em que vivia, e obrigado a frequentar o seminário devido a uma promessa feita por seus pais, o jovem vive um processo de desencanto ao longo dos anos. Aos 17 anos, é apresentado ao padre Chiarelli, um italiano empenhado em proteger comunidades indígenas e, nesse contexto, preocupa-se com a situação dos povos Waimiri-Atroaris, na época da construção da rodovia BR-174, que passaria por essa comunidade.

João de Deus, encantado com o jeito do padre e com sua paixão por seus ideais, resolve acompanhá-lo em suas missões, sem pestanejar. No entanto, devido às autoridades cujos interesses passavam por cima dos ideais de Chiarelli, a missão expedicionária liderada por ele estava fadada, desde o começo, ao fracasso. Uma figura que contribui para o fim trágico da narrativa é Paulo Dias, um mateiro, também parte da expedição, que discordava dos métodos do padre e que priorizava o progresso econômico. A sua forma de enxergar os indígenas é preconceituosa, reduzindo estes indivíduos a criaturas inferiores. A partir da figura de Paulo Dias, é possível destacar um modo de pensar sobre os povos indígenas, pensamento que não é particular a este personagem, mas faz parte de um imaginário construído historicamente.

Wolfgang Iser, em seu texto “O fictício e o imaginário”, afirma que, embora não seja possível trazer uma definição fixa para o fictício ou para o imaginário, descreve a interação entre ambos, que resulta na literatura. Durante muito tempo, a ficção foi entendida como sinônimo de mentira, mas Iser afirma que o “fingimento” existente na literatura não tem necessariamente relação com o conceito de mentira, reiterando que “a mentira excede, ultrapassa a verdade, e a obra literária ultrapassa o mundo real que incorpora” (p. 3). Isto é, a ficção é uma forma de ultrapassar o real, não necessariamente de contar uma mentira, mas sim de considerar possibilidades imaginárias a partir da realidade. Dessa forma, o fictício é um meio de manifestação desse imaginário que está tão presente na mentalidade da sociedade, é algo que dá forma a ele, através de possibilidades que rompem as barreiras do real.

Tocaia do norte

É aí que entra a literatura, e já se pode compreender que ela não é um fenômeno apartado dos processos humanos de criar a partir do imaginar. Essa relação entre o fictício e o imaginário é, portanto, fundamental para que possamos compreender como o imaginário molda nossas visões.

Ivan Teixeira, em seu texto Literatura como imaginário: Introdução ao conceito de poética cultural (2003), deixa claro que o imaginário coletivo de um povo não se deve a uma “essência” na forma de pensar desses indivíduos, mas sim a construções discursivas que se dão por diversos fatores. Não se deve pensar em totalidade, nem generalizar esses pensamentos, já que existem individualidades e particularidades; no entanto, há sempre uma ideia dominante, o que Teixeira nomeia “normatividade discursiva”. Sendo assim, não se pode pensar em uma ideia generalizada, mas sim em um pensamento que se sobrepõe aos demais e molda as visões de uma maioria expressiva, em grande parte das vezes.

Quando se trata do imaginário sobre o indígena, é certo pensar que existe, sim, uma normatividade discursiva, oriunda ainda do período colonial. Isso acontece porque ainda temos uma visão voltada para o olhar do colonizador europeu, que desde a sua chegada às nossas terras, instituiu um modo de civilização, a qual se contrapõe à forma de viver dos indígenas, considerados “selvagens”. Ailton Krenak, em Ideias para adiar o fim do mundo (2019), esclarece que:

A ideia de que os brancos europeus podiam sair colonizando o resto do mundo estava sustentada na premissa de que havia uma humanidade esclarecida que precisava ir ao encontro da humanidade obscurecida, trazendo-a para essa luz incrível. Esse chamado para o seio da civilização sempre foi justificado pela noção de que existe um jeito de estar aqui na Terra, uma certa verdade, ou uma concepção de verdade. (KRENAK, 2019, p. 8)

Ao instituir essa verdade, que permaneceu devido ao poderio bélico, resultando em séculos de genocídios contra os povos originários, permanece então esse discurso propagado pelos que detêm o poder, motivado por interesses econômicos sobre as terras indígenas.

O contexto histórico retomado na obra Tocaia do Norte ocorre no final dos anos sessenta, e se alonga também pelos anos setenta. No período em questão, o Brasil vivia uma ditadura militar, iniciada em 1964 e tendo e tendo seu fim somente em 1985. Os governos militares deixaram consequências danosas para o país, seja nos cofres públicos, seja na violação de direitos humanos, com destaque para este último. O excesso de poder dado a esses governantes assegurava a liberdade de reagirem violentamente a possíveis “ameaças” ao Brasil, e as divergências ideológicas tornavam-se motivo para censura e tortura, em nome da “ordem”. Tratando-se de um governo autoritário, os grupos que mais sofreriam represália seriam os minoritários, uma vez que, aquilo que fosse considerado subversivo da parte destes, seria tratado como ameaça e atacado com todo tipo de repressão física e simbólica. Com os povos indígenas não foi diferente, pois, conforme Cunha (2012):

Os anos 1970 são os do “milagre”, dos investimentos  em infraestrutura e em prospecção mineral – é a época da Transamazônica, da barragem de Tucuruí e da de Balbina, do projeto Carajás. Tudo cedia ante a hegemonia do “progresso”, diante do qual os índios eram empecilhos: forçava-se o contato com grupos isolados para que os tratores pudessem abrir estradas […]. Esse período […] desembocou na militarização da questão indígena, a partir dos anos 1980: de empecilhos, os índios passaram a ser riscos à segurança nacional. (p. 21)

Em Tocaia do Norte, é bem clara a ideia dos índios como empecilhos, e esse contato descrito é feito por intermédio do padre Chiarelli. Mesmo se tratando da década de 1960, os indígenas já eram também enxergados como riscos à segurança nacional, inimigos do governo, o que se confirma pela fala das autoridades e pela visão propagada pelo personagem Paulo Dias.

 O IMAGINÁRIO A PARTIR DO PERSONAGEM PAULO DIAS

Paulo Dias é um mateiro que se une à expedição do Padre Chiarelli por já conhecer a região em que habitava o povo Waimiri-Atroari. É baseado na personalidade que de fato participou da expedição do Padre Calleri, em 1968, chamado Álvaro Paulo da Silva. Ele foi o único que sobreviveu ao massacre, assim como Paulo Dias – tendo como diferença o fato de que, na ficção, João de Deus também sobrevive, embora Paulo Dias tenha sido o único a abandonar a expedição. Na época, os relatos de Álvaro Paulo foram considerados contraditórios, e muitas opiniões o colocavam como vilão. Verenilde Santos Pereira (2013), ao retomar uma reportagem da A crítica, do referido ano, afirma que “a reportagem coloca o mateiro sob suspeita; o critica veladamente como aquele que abandonou a Expedição e ainda o expõe como se não levasse os fatos a sério” (PEREIRA, 2013). Levando isso em consideração – e atentando às diferenças entre ficção e realidade -, Paulo Dias representa, na obra de Sandra Godinho, uma figura pouco confiável cuja forma de pensar representa ideais conservadores e desumanos.

O momento em que ele de fato aparece na narrativa e evidencia suas características é no capítulo 20, quando João de Deus acompanha o Padre no sobrevoo pela região do Abonari. No caminho, Paulo tem uma conversa com João, na qual se percebe, na figura do mateiro, um homem preconceituoso e violento, pois faz pouco caso dos indígenas e assume uma postura agressiva, de forma geral. Paulo conta também sobre o seu histórico de militar, o que nos permite constatar a origem da sua forma de pensar e agir.

João pergunta a Paulo se ele conhece os Waimiri-Atroaris, e este responde: “Têm traços finos, fortes, cabelos cortados rentes. Mas não são gente de verdade. […] Não são gente como eu ou você” (p. 109). Tal fala já deixa claro, de antemão, a sua forma de enxergar os indígenas como seres desumanizados; para ele, esses povos não são pessoas. Esse pensamento se confirma quando, logo em seguida, o mateiro relata um episódio que passou com os indígenas Waimiris-Atroaris, no qual pôde contornar uma situação utilizando sacos de açúcar como moeda de troca. Ao final de sua fala, ele acrescenta “Sei manejar bichos, garoto…” (p. 109), como forma de afirmar, novamente, a sua noção de superioridade sobre aquelas pessoas, colocando-as em uma categoria sub-humana.

Logo em seguida, ele conta sobre ter sido militar e ter participado da segunda guerra, denominando a si próprio como patriota. Relata que era um bom sargento e castigava os soldados que não cumprissem as ordens de forma dura. Ao final, João, o narrador, assegura que “os militares sabiam que podiam contar com ele para o que viesse. Desde então, sempre prestava aos militares um servicinho ou outro.” (P. 110) Quer dizer, além de demonstrar seu autoritarismo em um contexto militar, também mostra que, naquele momento, tinha contato com os militares e realizava serviços para estes, que estavam no poder ditatorial no Brasil. Isso revela não só o seu pensamento autoritário e violento, mas também o seu possível apoio ao governo que presidia o país, considerando que se tratava de um cenário de ditadura militar.

Desde o início, Paulo Dias já demonstra ser uma pessoa pouco confiável, pela forma como fala sobre os indígenas, totalmente diferente da maneira que Chiarelli os enxergava, e, consequentemente, a forma que ele acredita ser a melhor para conduzir a expedição entra em conflito com as ideias do padre. Por isso, Chiarelli tem dúvidas sobre o caráter do mateiro, o que se percebe quando João sugere que Paulo é um homem que conhece de tudo, mas o Padre não responde claramente, sugerindo, de certa forma, que não confiava nele (p. 122). No decorrer da missão, Paulo se mostra sempre contrário ao que Chiarelli diz. No capítulo 22, narra-se o início da jornada da expedição, caminhando em direção aos Waimiri-Atroaris, e Paulo volta a soltar comentários sobre esses povos: “Paulo dizia que raramente os Waimiris-Atroaris falavam com pessoas de outras raças. Eram tão agressivos que chegavam a surpreender com sua ferocidade.” (p. 132) Mais uma vez os desenha como agressivos e animalescos.

Quando já estavam próximos ao território dos Waimiri, Paulo pede para que não se pratique nenhum ato hostil, e nesse momento o padre argumenta que, como estão fazendo o trajeto pela água, significaria “bandeira branca num campo de batalha” (p. 133). Chiarelli solicita, porém, que Francisco Eugênio, um membro da expedição, dê oito tiros para cima, Paulo argumenta que é um ato hostil, e o Padre responde que “esse é um ato comum entre brancos e índios para demonstrar que não queremos invadir o território deles sem permissão!” (p. 133). Depreende-se, então, que Paulo Dias não conhecia os indígenas como tanto falava, já que não entendia esses pequenos atos imprescindíveis para um diálogo sem violência com aquelas pessoas. Pelo contrário, as suas falas repletas de estereótipos e de denominações agressivas deixavam perceptível a sua ignorância.

Estas situações antecipam a traição que Paulo comete contra a expedição. Ele planeja, junto às autoridades, todo o massacre da expedição e, especialmente, a morte de Chiarelli. Envolve os próprios indígenas em seu plano, para que os assassinatos fossem interpretados como um ataque vindo unicamente dos Waimiri. Paulo encontra uma desculpa para se separar do grupo, e se encontra com Xaris, um missionário americano da UEVA. Em seguida, há um trecho que comprova a ligação de Paulo Dias com as autoridades:

Foi Raolino Meiva quem levou Paulo até o Palácio Rio Negro para falar com o coronel Carimbó e os governadores Danilo Duarte, do Amazonas, e Hélio Campos, de Roraima. Não foi preciso muita inteligência para deduzir em pouco tempo de conversa que, enquanto Hélio Campos via na BR-174 um meio para se atingir novos mercados e proteção, o governador do Amazonas via na estrada um meio de ocupar a região mais rica do Estado. […] Uma coisa era certa: no meio do caminho de um ou de outro havia os malditos Waimiris-Atroaris. (GODINHO, 2020, p. 153)

Mais uma vez, pode-se perceber que a forma de pensar de Paulo Dias não é algo individual, mas sim, alinhado ao pensamento das elites e das autoridades. O imaginário que ele tem sobre os Waimiris-Atroaris parte de um discurso preponderante em relação aos indígenas, no qual a propagação de ideias ignorantes serve ao propósito de exterminar esses povos. Sendo assim, Paulo Dias representa essa normatividade discursiva, e conscientemente decide seguir com essa visão, tendo influência direta nas consequências dela, já que ele mesmo afirma já ter matado muitas pessoas.

Pereira (2013) também retoma outra reportagem feita na época do massacre da expedição, do jornal A crítica, cujo título era “Ódio ao branco” (p. 68), referindo-se aos Waimiri-Atroaris como violentos, prova de que a própria mídia também insinuava uma ideia de selvageria sobre esses povos. A visão de Paulo Dias não é somente ficcional.

CONCLUSÃO

O imaginário existente na literatura, que se inscreve no fictício, não se distancia das ideologias e visões de mundo presentes na realidade. Por isso, o imaginário do personagem Paulo Dias é uma representação da perspectiva dos militares da época, e indo mais longe, pode-se dizer que é ainda a visão recorrente na mentalidade das pessoas na atualidade, principalmente por ser a ideia propagada pelas classes dominantes. Tal fato acontece não só porque ainda persistem ideais conservadores, mas também porque a dizimação da população indígena é um meio de se alcançar objetivos econômicos, como o garimpo.

Um exemplo dessa situação é a crise humanitária vivida pelo povo Yanomami, que veio à tona no início deste ano de 2023. Devido à presença do garimpo ilegal e à falta de fiscalização eficiente, os indígenas Yanomamis viveram um quadro de doenças, ocasionado pela contaminação pelo mercúrio, e de subnutrição, que se agravou e chegou a esta crise no governo de Jair Bolsonaro (2018-2022). Segundo a Folha de São Paulo (2023), sobre o ex-presidente, “Ele é apontado como responsável pela desestruturação de órgãos de fiscalização e saúde e pelo desmonte de políticas públicas ambientais e indigenistas, que, junto da má gestão da pandemia de Covid-19, resultou no aprofundamento da crise.” Isto é, houve negligência por parte deste governo, cuja política era ideologicamente contrária à proteção do indígena e a favor dos ideais da ditadura militar.

Sendo assim, é possível perceber que o progresso econômico, aliado a políticas de morte, ainda são uma ameaça aos povos indígenas e precisam ser constantemente questionados. A reflexão sobre o imaginário que se propaga pelo discurso das classes dominantes é o pontapé inicial para desconstruir todo um pensamento nocivo a esses povos. É necessário enxergar a visão de Paulo Dias como uma ideologia que é responsável pelo extermínio de populações, e enquanto não for combatida, passará impune. Ao resgatar um passado histórico, Tocaia do Norte deixa viva a memória daqueles que foram covardemente assassinados. A literatura, nesse sentido, nos aproxima desse acontecimento e sensibiliza, ao mostrar a perspectiva de um ribeirinho e recriar “o outro lado da história”, contribuindo para pensar criticamente esse imaginário que, infelizmente, ainda resiste.


Referências
Larissa Cavalcante Barboza é graduada em Letras – Língua e Literatura Portuguesa pela Universidade Federal do Amazonas (2023).
Rita do Perpétuo Socorro Barbosa de Oliveira é professora doutora em Letras – Literatura Portuguesa pela PUC-Rio (2010)
 
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