Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Resenha: Paulo André e Ruy Barata: a Nova Tradição da Música do Pará

Paulo André, Fafá e Ruy Barata. Foto: Guilherme Ledo/Acervo da família.

Eu sou de um país que se chama Pará
Que tem no Caribe o seu porto de mar
E sei pelos discos do velho Cugat
Que yo, ay yo no puedo vivir sin bailar

Francesc d’Asís Xavier Cugat Mingall de Bru i Deulofe, o Xavier Cugat (1900-1990), o Rei da Rumba, foi um maestro espanhol-cubano, cuja família se estabeleceu em Cuba quando ele tinha três anos. Tornou-se um dos pioneiros na popularização da música latina nos Estados Unidos, mas não só na América do Norte. Também no Caribe e suas reentrâncias, chegando ao grande salão do Brasil, fazendo sua fotossíntese no verde Pará.

Ao reivindicar, na canção “Porto Caribe”, de onde saíram os versos acima, a influência globalizada de Xavier Cugat a partir do filtro dos troncos submersos, do rio, da floresta, a dupla Paulo André Barata (1946-2023) e Ruy Barata (1920-1990) mudou para sempre a face da música do Norte. Rumba, mambo, merengue, lambada, calipso, cha-cha-cha e finalmente samba: o prensado original que deu origem às tradições musicais amazônicas sempre foi de uma abrangência formidável, mas carecia de uma centralidade ideológica.

Debruçar-se no monolito artístico que uniu o refinamento poético de Ruy Barata e a fina pesquisa harmônica e melódica de seu filho, Paulo André Barata, é chegar à impressão de que a música moderna da Amazônia estava ali se reconciliando com todos os seus afluentes, fundindo o rural e o urbano, o internacional e o interiorano, o imemorial e o paisano.

Ruy e Paulo André Barata começaram a compor juntos em meados dos anos 60. Em 1965, compuseram juntos a primeira canção, “Rosa Rubra”, uma bossa nova que foi apresentada em um show de estudantes na sede da União Acadêmica Paraense. Mais adiante, em 1967, Paulo André ficou em terceiro lugar no I Festival de Música Paraense com a marcha rancho “Fim de Carnaval” (esta em parceria com João Paes Loureiro), e com “Preamar”, com Ruy Barata. Em 1974, Paulo André estreou um espetáculo autoral chamado “Todo Dia é Dia D”, no qual a jovem aspirante a cantora Fafá de Belém, sua amiga, fazia uma participação especial. Os shows daquele espetáculos foram apresentados na Assembleia do Pará, no Pará Club e no Teatro São Cristóvão. Paulo se mudou então para o Rio de Janeiro, para estudar teoria musical. Voltou a Belém logo depois.

Fafá de Belém, atenta e curiosa, acompanhava os Barata cantando suas composições no boêmio Bar do Parque, na capital paraense, o mais charmoso quiosque da Amazônia, desde 1904 em epitelial funcionamento no coração da cidade. A ida de Fafá ao Rio também no começo dos anos 1970, para a inevitável conquista do mundo, a fez levar em sua bagagem a argamassa daquelas notáveis visões musicais.

No final dos anos 60, Fafá voltaria do Rio para lançar seu primeiro LP. Foi em 1976 que saiu “Tamba-Tajá” (Polydor), com a artista ladeada pelo produtor baiano Roberto Santana. Nesse LP, Fafá gravou, além de “Indauê-Tupã”, aquele que se tornaria o primeiro sucesso da dupla Ruy e Paulo André Barata, o carimbó “Este Rio é minha Rua”. Mas aquela canção é bem mais que um contrabando regional, é um início de manifesto em progresso, uma revelação cultural, uma pauta de reivindicações e de identificação que vai se ampliando conforme a música da dupla vai se consolidando na voz popular:

Esse rio é minha rua
Minha e tua, mururé
Piso no peito da lua
Deito no chão da maré

As duas canções da dupla no disco, “Indauê-Tupã” e “Este Rio é Minha Rua”, foram compostas pelos Barata para a trilha sonora do filme “Brutos Inocentes”, de Líbero Luxardo (1908-1980), seu único filme colorido, lançado em 1974, que tinha Zózimo Bulbul no elenco, marco da cinematografia afro-brasileira. A expressão Indauê-Tupã, em tupi, significa “Boa tarde, Deus”.

Da mesma forma que Moraes Moreira e Armandinho na Bahia, ou que Milton e Márcio Borges em Minas, Paulo André e Ruy Barata preconizaram na música do Pará uma abertura cultural para fora, não ensimesmada ou auto satisfeita, conscientes de que iam embebidas das tradições que já estavam consolidadas, entrevendo uma nova tradição na qual se admitia uma pós-bossa emoldurada pelo barroco das formas caribenhas e indígenas, os roncos dos motores e a rede ribeirinha. O sucesso massivo de “Foi Assim”, primeiro na voz de sua intérprete maior, Fafá de Belém, vinha consolidar essa concepção. A conjugação verbal tão íntima e particular de Ruy (“Tu te foste de mim”) assoma, cresce, vira estratégia e atalho.

O apelo desesperançado de “Foi Assim” (música de destaque entre os destaques do LP “Água”, de 1977) é acompanhado de um balanço de percussão de igarapé, uma nova síncope que escapa de um singelo bongô tocado pelas mãos de Chico Batera, um portento brasileiro que acompanhou desde Gal Costa a Sarah Vaughan.

Em 1978, Paulo André Barata, também intérprete de si mesmo, cantautor em movimento, lança o disco “Nativo” (Continental), compilado de seus clássicos e no qual a música-tema persiste aprofundando o sentido do pertencimento e da admissão da linguagem:

Desses rastros dormindo nesce um campo
Na reponta dos ventos e mugidos
Caviana de cornos bubuiando
Barcarenas a ser, ou for, em sido

Peneirando palavras, como Guimarães Rosa, o poeta faz renascer sentidos e o músico faz soar o som novo, como na “caviana de cornos bubuiando”, o som de uma caravana de búfalos nadando. No poema “O Nativo de Câncer”, do qual brotou essa canção, Ruy Barata promove uma realocação da linguagem, inventando e transfigurando os significados — Caviana é uma das grandes ilhas do arquipélago do Marajó, de onde se pode melhor apreciar o fenômeno da pororoca.

Nesse ponto, se pode ver a organicidade da parceria, a moldagem da maré cheia e o crescendo de visões que Paulo André cria para dar vida aos versos de seu pai. Paulo teve outros parceiros como Aluízio Falcão (sob seu codinome Jota Petrolino), o poeta João de Jesus Paes Loureiro, os notáveis João Donato (“Nasci para bailar”, 1982), José Carlos Capinan (“Eternamente”, 1997) Paulo César Pinheiro (“Macaréu”, 1997) e diversos outros. Mas a coluna cervical de seu trabalho sempre se escorou na produção poética do pai.

Ruy Paranatinga Barata, poeta e aríete da cultura paraense, tem hoje seu nome celebrado em praças e pontos turísticos de Belém. Seu pai, Alarico Barata, foi o fundador do clube Paysandu, o célebre “Papão do Curuzu”, em 1914, e Ruy também militou na política, sendo eleito deputado estadual duas vezes. Foi ainda destacado professor na Universidade Federal do Pará, aposentado compulsoriamente pela ditadura civil-militar de 1964, retornando apenas em 1979 após a anistia. Nasceu em Santarém, mas produziu sua obra em Belém, inicialmente sob a influência do poeta moderno carioca Augusto Frederico Schmidt (1906-1965). “Eu sinto o cheiro do Rio Tapajós nas músicas dele”, escreveu um fã a respeito do poeta.

Por conta de sua intensidade de ação política, sua veia progressista geracional, a família Barata tornou-se uma espécie de Zona Franca da liberdade artística no Pará. Um livro conta que, no primeiro show de Gilberto Gil na capital paraense, logo após a decretação do AI-5, horas antes da apresentação (que ocorreria no Ginásio do Sesc, na doca), Gil almoçava na casa de Paulo André Barata. O cantor foi então avisado que estava sendo chamado a comparecer à Polícia Federal para resolver uma pendência do espetáculo.

A censura atuava em tempo real naqueles dias. Gil chegou à delegacia de bermuda e sandálias, e foi achincalhado por um agente federal, que gritou: “Ponha-se daqui e vá vestir uma roupa decente!”. O cantor voltou ao automóvel de Paulo André, que tirou as próprias roupas e as emprestou a Gil para que retornasse à delegacia. Gil se trocou e conseguiu liberar a tal “pendência”, e quando foi se apresentar, o censor estava sentado na primeira fila da audiência. Quando o show terminou, o censor foi até seu carro para ir para casa, encontrou o automóvel com os quatro pneus vazios.

De perto de todo o Brasil, de sangue amazonense, Paulo André e seu pai Ruy criaram uma unidade musical de rara concretude, antecipando questões ambientais, de identidade e de pertencimento. Ruy já era um poeta consagrado quando começaram a fazer música juntos, já publicava desde os anos 1940.

Pacará pacarezinho
Sou teu mestre professor
Arrepara os beiços d’água
Que lá fora se formou
Toma tento no repique
Que o vento já repicou eh…

Em sua obra, a condição geográfica se mistura à condição humana, pedra de toque da poesia de Ruy Barata, e vai adquirindo tonalidade de clássico precoce conforme o tempo vai escorrendo. É o caso de “Mesa de Bar”, outro sucesso (este somente de Paulo André), uma visão cabocla do universo reginaldorossiano, mas longe da característica paródica, despojada do sarcasmo:

Norte da dor
Que a cidade e o sonho levou
Era mulher
E a bandeira do sul carregou
Eu, marujo de copo e de bar
Já nem sei mais contar

A dramaticidade da canção rural “Pauapixuna” (que, como “Foi Assim”, tornou-se trilha de novelas, séries e especiais da Rede Globo), que se espalha com o coro, é a assunção da contribuição da música negra à construção da vida paraense. Pauapixuna é um termo indígena da língua tupi-guarani que significa “aldeia dos negros”, localizada no município de Óbidos, no oeste do estado do Pará.

O merengoso do “Baiuca’s Bar”, que “caiu do céu, caiu do bar”, é mais um personagem da noite incorporado ao desfile de tipos urbanos sobre o qual Ruy e Paulo colocam relevo, como faz a literatura de Curitiba na obra de Dalton Trevisan ou a de Belo Horizonte na de Wander Piroli. É o homem da Amazônia envolto na realidade das bodegas de beira de rio, ao som da música embriagada do Caribe, mas ao mesmo tempo em um balanço interligado com a sua própria sina. “Ferre no pé o merengoso do Baiúca´s Bar/ Que no merengue eu sou um poraquê”. Poraquê é o famoso peixe elétrico, típico do Rio Amazonas, que é conhecido por suas descargas elétricas poderosas — assim como o ritmo da canção, uma reiteração metalinguística.

No ano do centenário de nascimento de Ruy Barata, o selo Biscoito Fino lançou um álbum com reinterpretações de seus clássicos, distribuindo boleros, merengues, carimbós, valsas, lundus e sambas por diversos intérpretes de praias diferentes da MPB, entre eles Maria Rita, Fafá de Belém, Zeca Pagodinho, Leila Pinheiro, Áurea Martins, Zeca Baleiro, Zé Renato, Joyce Moreno, Mônica Salmaso. O disco ficou como um testamento da dupla, com o registro do impacto de sua obra em artistas do Marajó ao Chuí.

Paulo André Barata morreu precocemente, no ano passado, aos 77 anos, em Belém. Fafá chorou ao gravar uma mensagem sobre o legado do parceiro — houve um momento histórico em que a cantora, para satisfazer ao mercado, chegou a negar publicamente seu acento regional. Hoje essa característica voltou para projetá-la adiante de seu tempo. Paulo e Ruy ainda não tiveram a reverência merecida pelo alargamento do imaginário de um País inteiro, mas sua obra vive aí para justamente garantir esse aplauso eterno.

Quem montou na cobra grande
Não se escancha em puraqué
Pois é, pois é,
Eu não sou de igarapé

Texto e produção: Jotabê Medeiros
Edição: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

Print Friendly, PDF & Email

Você pode gostar...

Assine e mantenha-se atualizado!

Não perca nossas histórias.


Translate »