Patrimônio histórico em Manaus vive efeitos do desprezo pela cultura

Prédio histórico degradado na Avenida 7 de Setembro.
Prédio histórico degradado na Avenida 7 de Setembro. Foto:
Prédio histórico degradado na Avenida 7 de Setembro

Prédio histórico degradado na Avenida 7 de Setembro. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

O abandono do patrimônio histórico, cultural e arquitetônico de Manaus põe em evidência a falta de compromisso do poder público em viabilizar políticas de preservação e valorização dessas obras, situadas ao longo de bairros como o centro, Educandos, São Raimundo e Aparecida. São prédios públicos, praças, igrejas, estátuas, palacetes e casarões, símbolos da colonização europeia na Amazônia, enriquecida às custas da economia da borracha, dos sucessivos massacres de povos indígenas e da exploração dos seringais.

A atividade gomífera impulsionou a urbanização da região e a construção dos monumentos que compõem a paisagem da capital do Amazonas. No Centro Histórico de Manaus, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 2012, e que compreende a área entre orla do Rio Negro e o entorno do Teatro Amazonas, são muitas as construções que sofrem com degradação. Falta de restauro, intervenções não autorizadas e destruição total ou parcial das estruturas estão entre os problemas visíveis.

Pesquisador, historiador e professor, Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa afirma que os patrimônios históricos do Centro de Manaus, em sua maioria, foram erguidos no final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX. De acordo com ele, existem alguns exemplares mais antigos de construções que datam do início do século XIX. São casas do antigo bairro de São Vicente, em estilo do período colonial, localizadas na Rua Bernardo Ramos.

“A economia gomífera possibilitou a construção de inúmeras obras de grande porte aqui na nossa cidade, como o Teatro Amazonas, o Palácio da Justiça, o embelezamento de várias praças e a construção de inúmeras residências particulares que podem ser vistas até hoje pelas ruas do centro”, relata.

Fachada da Alfândega de Manaus.

Fachada da Alfândega de Manaus. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Basta caminhar pelo Porto de Manaus, na Avenida Lourenço da Silva Braga, que margeia o Rio Negro, e observar, além da sujeira no asfalto e na água, as ruínas de pedras inglesas do que é considerado um dos maiores portos flutuantes do mundo. As imediações da Rua dos Barés, Marquesa da Santa Cruz e Floriano Peixoto revelam os prédios como a Alfândega de Manaus e o Complexo Boothline, todos desocupados, abocanhados pela ação do tempo e pela interferência humana. 

Avançando por dentro do bairro, em logradouros como as ruas Jonathas Pedrosa, Saldanha Marinho, Rui Barbosa, Costa Azevedo, Simón Bolívar, Luiz Anthony, Avenida Joaquim Nabuco, Avenida Eduardo Ribeiro, entre outros, perdem-se de vista as fachadas deterioradas. Há também o descaso com as histórias dos patrimônios. Mesmo os que estão em funcionamento, como o centenário Colégio Amazonense Dom Pedro II, situado na Avenida 7 de Setembro, requerem revitalização. 

Centenário Colégio Amazonense Dom Pedro II, na Avenida 7 de Setembro.

Centenário Colégio Amazonense Dom Pedro II, na Avenida 7 de Setembro. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Ainda na 7 de Setembro, flagra-se a destruição de parte da estrutura da Ponte Benjamin Constant, conhecida como Ponte Metálica, suspensa sobre o então igarapé do Mestre Chico, entre os bairros Cachoeirinha e o centro. As peças metálicas que a compõem têm mais de 120 anos de existência e foram fabricadas pela indústria inglesa Dorman Long & Company Limited — que existe até os dias atuais.

“Existe uma lista imensa de prédios históricos em situação de abandono em Manaus. Eu cito como exemplos a Alfândega, a antiga agência dos Correios, a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa, algumas escolas centenárias no centro, como a Escola Estadual Ribeiro da Cunha, e várias casas particulares. Todos estão em uma situação bastante lamentável e que infelizmente se arrasta há décadas em nossa cidade”, enfatiza o professor.

O historiador analisa que são vários os fatores que dificultam a preservação dos patrimônios históricos em Manaus. As questões legais sobre prédios privados, questões financeiras e até mesmo a morosidade dos processos de tombamento, pelas instituições de preservação, são empecilhos. 

“Muitos prédios históricos da cidade são particulares, e a preservação diz respeito aos proprietários. Em caso de situações críticas de degradação, entra-se com um pedido de desapropriação, o que gera alguns impasses na Justiça”, diz.

Após o tombamento do imóvel, o pesquisador explica que surge a questão do restauro, “que é extremamente caro e pode se arrastar por décadas, até se conseguir dinheiro suficiente para realizar essa intervenção”.

Administrador de uma página nas redes sociais que resgata a história do Amazonas em fotografias e documentos, chamada de História Inteligente, Fábio Augusto alerta que o Centro Histórico de Manaus merece maior atenção dos órgãos de fiscalização e proteção ao patrimônio.

Monumento à Abertura dos Portos.

Monumento à Abertura dos Portos. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

“O centro é o resquício de um dos períodos mais importantes da história, não só do Brasil como da história mundial, porque foi graças à exportação da borracha que o mundo pôde viver uma nova fase de sua industrialização. Esses resquícios do Centro Histórico, as casas e os prédios públicos, são testemunhos daquela época que devem ser preservados. O patrimônio histórico deve ser preservado porque faz parte da nossa identidade enquanto manauaras”, explica.

Intervenções desastrosas

Entre as dificuldades em manter preservado o patrimônio de Manaus, há ainda a falta de fiscalização rigorosa por parte dos órgãos públicos. Isso é atestado pelos recentes casos de intervenções que não foram autorizadas pelo Iphan e que não levaram em conta aspectos históricos da época das construções. 

Em janeiro de 2023, durante obras de revitalização na Praça 5 de Setembro, conhecida como Praça da Saudade, no centro, a estátua de Tenreiro Aranha, ou Monumento à Província Tenreiro Aranha, colonizador que catequizava indígenas e foi o primeiro presidente da província do Amazonas, foi descaracterizada de sua pintura original

Monumento à Abertura dos Portos.

Monumento à Abertura dos Portos. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

A confecção do monumento em homenagem a Tenreiro Aranha foi encomendada a Enrico Quattrini, durante a administração estadual de Eduardo Ribeiro, nos anos 1890. O escultor italiano veio a Manaus por intermédio de Domenico de Angelis, pintor e decorador italiano, responsável pela decoração interna dos dois principais e mais conhecidos teatros da região Norte do Brasil, o Teatro Amazonas e o Theatro da Paz, em Belém, no Pará.

Durante as obras da prefeitura de Manaus, a escultura de bronze foi pintada de dourado com o aval da Secretaria Municipal de Limpeza Pública (Semulsp). Na época, o Iphan/AM chegou a afirmar que o restauro do monumento não tinha autorização do órgão e pediu a penalização da Secretaria.

Monumento de Tenreiro Aranha manchado pela tintura irregular

Monumento à Tenreiro Aranha manchado pela tintura irregular. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Já em março de 2024, a obra de um quiosque da Cacau Show, no Largo de São Sebastião, foi embargada pelo Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb) e pelo Iphan, após denúncias de irregularidades. No lugar, foi instalada uma plataforma de concreto para receber um container onde iria funcionar o empreendimento. Mas segundo o Iphan/AM, não havia licença ou autorização para as intervenções na área de entorno reconhecida como patrimônio cultural brasileiro.

Em resposta enviada por e-mail à Amazônia Latitude, a Cacau Show informou que “seguiu rigorosamente as diretrizes normativas e obteve todas as autorizações necessárias para a implantação da unidade no local”. A empresa continuou afirmando que está comprometida em “respeitar e preservar o patrimônio histórico de Manaus, contribuindo para sua conservação e valorização”.

O historiador Fábio Augusto atribui o comportamento de desprezo ao patrimônio histórico a uma falta de entendimento da importância dessas obras para a história e para cultura da sociedade manauara. “Essas intervenções são extremamente desastrosas, feitas sem uma análise técnica de especialistas. Não é a primeira vez e tenho certeza que não vão ser as últimas”, denuncia.

Fachada da Escola Estadual Saldanha Marinho.

Fachada da Escola Estadual Saldanha Marinho. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Ele complementa observando que algumas das intervenções, classificadas como prejudiciais, foram feitas por órgãos públicos que deveriam priorizar uma análise técnica, com aval de especialistas, historiadores, restauradores e arquitetos, o que não aconteceu. “A própria Semulsp foi a responsável por aquela pintura horrorosa que foi feita na estátua do Tenreiro Aranha”, critica.

Questionada sobre a frequência de obras não autorizadas que descaracterizam os patrimônios públicos de Manaus, a superintendente do Iphan no Amazonas, Beatriz Calheiro de Abreu Evanovick, esclareceu que, apesar da constante participação do órgão nos processos de autorização de intervenções em bens tombados e áreas de entorno, ainda é identificada a execução de obras sem autorização prévia.

Autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, que responde pela preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro, cabe ao Iphan e demais instituições do poder público proteger e promover os bens culturais, assegurando sua permanência e usufruto para as gerações presentes e futuras. Entre as atribuições legais do órgão, está a fiscalização — de modo permanente e a qualquer tempo — desses patrimônios.  

“Neste sentido, além das ações relativas a procedimentos de fiscalização que envolvem embargos, autos de infração e multas, a Superintendência do Iphan tem buscado ampliar a difusão de informações sobre os bens acautelados pelo órgão no Amazonas, e conduzir procedimentos de autorização e licenciamento”, ressalta a superintendente.

O Iphan no Amazonas questiona todas as obras em áreas tombadas sem prévia autorização com base nos artigos 17 e 18 do Decreto-lei n° 25/1937, além das intervenções que necessitam de análise no âmbito do Licenciamento Ambiental, conforme a avaliação de impacto ao patrimônio arqueológico, tombado, valorado e imaterial. 

Prédio sem restauro na Rua Simon Bolívar.

Prédio sem restauro na Rua Simon Bolívar. Foto; Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Cabe ao órgão coibir os danos e as ameaças aos patrimônios, e aplicar as sanções previstas em lei para casos de advertência, notificação, multa e reparação para garantir a preservação.

“O Iphan tem procedido a execução de ações fiscalizatórias, que dispõem sobre os procedimentos para apuração de infrações administrativas, por condutas e atividades lesivas ao patrimônio cultural edificado”, diz Evanovick.

A Amazônia Latitude também solicitou um posicionamento da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Amazonas (SEC) sobre o abandono e as intervenções que descaracterizam o patrimônio histórico da cidade de Manaus. A SEC não respondeu aos questionamentos até o fechamento desta reportagem.

Descaso gera insatisfação popular

Ramilli Vieira, 22, é advogada e mora no centro de Manaus a vida inteira. Ela não vê com bons olhos as intervenções irregulares nas obras do patrimônio histórico, que parecem ser feitas sem qualquer preocupação em popularizar o acesso aos espaços públicos para a população. “Como foi o infeliz exemplo da obra embargada [no Largo de São Sebastião], que tinha como objetivo a construção visando puramente o lucro, sem preocupação em realizar o diálogo com o espaço ao redor ou sequer ter qualquer função social”, lamenta.

Monumento à Abertura dos Portos, no Largo de São Sebastião.

Monumento à Abertura dos Portos, no Largo de São Sebastião. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Para Ramilli, a grande quantidade de prédios públicos abandonados escancaram a falta de um planejamento urbano popular e democrático, que promova a transformação dos espaços patrimoniais para uso social. A advogada se manifesta contra a indiferença dos governantes em construir uma cidade igualitária e acessível.

“Para a Prefeitura de Manaus é muito mais lucrativo investir em setores privados do que fomentar iniciativas de valorização do patrimônio histórico da cidade. A administração da cidade escolheu perpetuar a política de especulação imobiliária e afastamento da população do Centro Histórico de Manaus, em vez de realizar uma reforma urbana que centralizasse a democratização da cidade”, declara.

Indiara Bessa, 30, jornalista, nasceu e viveu no centro durante seus primeiros anos, e retornou para morar no bairro agora, mais velha. “Sempre tive curiosidade pela história do centro, pela arquitetura, por tudo que representa para a história inicial de formação da nossa cidade”, reflete.

Apesar de entender que vários dos monumentos históricos evocam um passado violento de colonização e massacre dos povos originários e ribeirinhos, Bessa afirma que não se pode descartar a ideia de que este episódio nefasto também faz parte da história de Manaus.

“O centro precisa de seus monumentos para que possamos entender nossa história. Cada monumento arquitetônico tem uma história para contar, mesmo que de apagamento de nossa cultura. Ter uma grande parte das estruturas trazidas de outros países também nos ajuda a entender que o apagamento cultural foi um projeto arquitetônico. Não dá para simplesmente abandonar essas casas, essas histórias”, acrescenta.

A manauara acredita que precisa existir um olhar voltado para as praças, para a segurança das pessoas nesses locais, e, para além disso, deve haver um respeito com as características e o passado que os patrimônios representam.

“A Praça da Saudade é um local que há muitos anos é chamado assim, mas deram o nome de Praça 5 de Setembro. Que sentido tem isso? Por que não explicar que aquele local chama-se Praça da Saudade porque foi construído em frente a um cemitério infantil? Por que não envolver a população na história real de nossa cidade? Acho que esses monumentos têm o poder de trazer à tona esse passado nunca contado, apagado, mas que tem muito a nos dizer”, observa.

Patrimônio histórico destruído em Manaus.

Patrimônio histórico destruído em Manaus. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

Direito à cidade

A precarização do acesso aos espaços de patrimônios públicos impactam a qualidade de vida nos centros urbanos, monopolizando o direito ao lazer e a cultura. Com o descaso do poder público em recuperar os prédios históricos e promover sua ocupação, os moradores são impedidos de instituir um modelo acessível de urbanização, que leve em conta não só a revitalização da estrutura física das obras patrimoniais históricas, mas também a produção coletiva, com o direito de habitar, usar, ocupar, produzir, governar e desfrutar do espaço urbano de forma igualitária.

De acordo com a arquiteta e urbanista Ana Carla Pedrosa, ex-coordenadora técnica do Iphan e coordenadora da Comissão Especial de Política Profissional, Política Urbana e Ambiental do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Amazonas (CAU/AM), é por meio do patrimônio cultural que se mantém viva a história e a identidade manauara como memória coletiva.

“No caso do Centro Histórico de Manaus, entre os valores relevantes para a formação cultural da capital amazonense, destaca-se as influências que aqui se entrecruzam, refletidas no panorama dos edifícios, das formas construtivas, dos ornamentos arquitetônicos, o testemunho arqueológico, traçado e paisagem urbana e dos processos sociais que dinamizam o conjunto”, detalha.

Sobre a valorização dos patrimônios da cidade, para além do restauro de elementos arquitetônicos, a profissional garante que falta compreensão sobre o que é patrimônio e de que maneira pode-se intervir nos edifícios inseridos (ou não) dentro de um conjunto urbano, como é o caso do Centro Histórico. Ela enfatiza a educação patrimonial como fundamental para que as pessoas possam se identificar, vivenciar e sentir que fazem parte do projeto urbano.

Fachada do Cine Éden, abandonado na Rua Jonathas Pedrosa.

Fachada do Cine Éden, abandonado na Rua Jonathas Pedrosa. Foto: Nicoly Ambrosio/Amazônia Latitude

“Ainda é muito latente no imaginário popular que a intervenção no imóvel precisa obrigatoriamente recuperá-lo integralmente como nos tempos de outrora, o que, dependendo do imóvel e de seu estado de conservação, não é necessariamente verdade. O mundo evolui e, junto com ele, as normativas, legislações, percepções, usos e materiais disponíveis também. Hoje, visivelmente acontece um movimento de reocupação do centro. A população gosta de estar entre o patrimônio revitalizado”, ressalta.

Ao fazer intervenções nessas obras, Ana Carla Pedrosa justifica que devem ser levados em conta a legislação existente, o uso e a função do imóvel, seu estado atual de conservação, a volumetria, o tratamento da fachada, materiais de acabamento e, principalmente, a ambiência onde a propriedade está inserida, e de que maneira pode se adequar ao conjunto urbano. “Para os imóveis abandonados, acima de tudo, o importante é dar um uso e função ao imóvel, para que ele não chegue numa situação de ruína”, detalha.

Diante da falta de políticas de preservação e valorização do patrimônio pelo poder público em Manaus, os residentes querem ocupar as obras e espaços que estão abandonados ou degradados. Ramilli Vieira acredita que a proteção é possível com o resgate, revitalização e democratização do acesso a esses edifícios.

“A criação de centros culturais nos interiores é uma ótima forma de promover a comunicação da população com os bens públicos. Um bom modo de realizar a proteção desses patrimônios é a promoção de uma reforma urbana, para salvaguardar um dos preceitos constitucionais mais importantes que temos, que é a função social da propriedade”, opina.

Indiara Bessa julga que diversos ambientes históricos abandonados possuem capacidade para receber intervenções e virar locais de acesso à cultura, como bibliotecas, museus e casas de arte. “Para além de uma transformação estrutural, traz uma transformação social importantíssima para Manaus”, considera.

Produção:  Nicoly Ambrosio
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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