Discurso de Bolsonaro na ONU pode agravar quadro de violências contra povos indígenas
Durante assembleia geral da ONU, em Nova York, presidente brasileiro reforçou sua agenda antiambiental perante o mundo
Durante a assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU), no dia 24 de setembro, o presidente Bolsonaro mostrou que a crise internacional gerada pelas queimadas na Amazônia em agosto não foi suficiente para que o governo mudasse o rumo de suas políticas ambientais.
No discurso, Bolsonaro manteve o tom conspiratório que o levou à chefia do Executivo, dizendo que o Brasil esteve à beira do colapso por conta dos anos PT (em termos econômicos, sociais e culturais). Na sequência, reforçou sua postura a respeito de povos indígenas dizendo que seu governo não demarcará nenhuma Terra Indígena (TI).
Além disso, deu sequência de forma velada ao confronto com o presidente francês, Emmanuel Macron, através de críticas ao cacique Raoni Metuktire, líder indígena da etnia caiapó, conhecido internacionalmente por sua luta pela preservação da Amazônia e dos povos indígenas.
“A visão de um líder indígena não representa a de todos os índios brasileiros. Muitas vezes alguns desses líderes, como o Cacique Raoni, são usados como peça de manobra por governos estrangeiros na sua guerra informacional para avançar seus interesses na Amazônia”, declarou o mandatário brasileiro na assembleia geral da ONU.
Na ocasião, Bolsonaro leu uma carta redigida pelo Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil. Na carta, o grupo pede por uma nova política indigenista, mais próxima à base ideológica do governo, afirmando que a intenção do documento é “externar toda a realidade vivida pelos povos indígenas do Brasil, bem como trazer à tona o atual quadro de mentiras propagado pela mídia nacional e internacional, que insiste em fazer dos povos indígenas do Brasil uma reserva de mercado sem fim, atendendo aos interesses estrangeiros de países que ainda enxergam o Brasil como uma colônia sem regras e sem soberania”.
No mesmo documento, o Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil também manifestou apoio irrestrito à Ysani Kalapalo, youtuber indígena de direita que acompanhou a comitiva do governo na viagem para Nova York. Ao final da carta, o grupo declara que “Acabou o monopólio do senhor Raoni”.
Aparentemente, os ataques ao cacique Raoni têm a intenção de atingir indiretamente Emmanuel Macron e reforçar a postura ambiental do governo. Talvez por conta do encontro entre Raoni e o presidente francês em maio deste ano, durante a excursão de lideranças indígenas pela Europa em busca de apoio para conservação ambiental brasileira. Na ocasião, Macron assegurou o apoio da França na luta pela preservação da biodiversidade e dos povos da Amazônia, vítimas de um crescente desmatamento.
Ainda no mesmo dia da assembleia, a Articulação dos povos Indígenas do Brasil (APIB) publicou uma nota de repúdio em seu site com críticas ao discurso do presidente.
“Pela declaração na mais alta corte da ONU, com ameaças e atos concretos contra a vida dos povos indígenas brasileiros, repudiamos inteiramente seu posicionamento e solicitamos que as penalidades e sanções ao governo brasileiro por ameaçar a vida da humanidade e dos povos indígenas do Brasil”, diz um trecho.
Já no dia 29, a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), também emitiu uma nota de repúdio ao discurso de Jair Bolsonaro na ONU. No documento, a COIAB afirma:
“A volta de um governo autoritário, de extrema direita e ultra neoliberal, que ruma para a construção de uma realidade de instabilidade política e falta de garantia total de nossos direitos, exige nosso posicionamento. Ao adotar medidas institucionais e não institucionais arbitrárias, o governo federal incita a intolerância e a violência contra nós, povos indígenas, que temos uma maneira própria de pensar e viver”.
Intensificação das ameaças
Simultaneamente à assembleia geral da ONU, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), publicou o relatório “Violência contra os povos indígenas no Brasil – dados de 2018”. O relatório, publicado desde 1996, se baseia em informações de registros das onze regionais do Cimi, denúncias de indígenas, boletins de ocorrência, notícias veiculadas pela imprensa e informações oficiais da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), do Ministério Público Federal (MPF) e da Fundação Nacional do Índio (Funai), dentre outros órgãos públicos.
Considerado pelo Cimi como um importante instrumento de denúncia da violência e das violações que acometem os povos originários até hoje no país, o relatório também traz informações preliminares sobre o ano de 2019.
Segundo o Cimi “Nos nove primeiros meses de 2019, dados parciais e preliminares do Cimi apontam para um aumento alarmante nos casos de ‘invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio dos povos indígenas’. Foram contabilizados, até o lançamento do relatório, 160 casos do tipo em terras indígenas do Brasil”.
Em 2018, o Conselho Missionário Indigenista contabilizou 111 casos de invasão ou exploração ilegal de recursos em 76 T.I.s diferentes em 13 estados do país. Já em 2019, o número de casos subiu para 160, afetando 153 T.I.s até o momento – um aumento de mais de 100% em comparação ao ano anterior.
Esses dados estão relacionados à invasões, caça e pesca ilegais, construção de obras sem consulta de estudos ambientais, roubo de madeira e garimpos, arrendamentos, além da contaminação do solo e da água por agrotóxicos e incêndios, entre outras ações criminosas.
Para Gilberto Vieira dos Santos, secretário adjunto do Cimi, a omissão do governo na demarcação de terras indígenas em 2019 é “um ataque à constituição federal”, pois um dos compromissos firmados pelo poder público na constituinte de 1988 é justamente o reconhecimento e regularização dos territórios tradicionalmente pertencentes aos povos indígenas.
“Não é possível que o poder executivo, e aí a pessoa do presidente, que representa esse poder, se negue a cumprir o que diz a constituição – inclusive, um dos princípios assumidos quando se faz o juramento da posse”, afirma Gilberto.
Em nota de repúdio publicada em 25 de setembro, a APIB também aponta para o desrespeito da constituição de 1988 por parte do poder Executivo. No texto, a associação defende que “Se é verdade que ocupamos mais de 13% do território nacional, mais da metade desses territórios não está demarcada, apesar de que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu para esse ato administrativo cinco anos de prazo. Por outro lado, a demarcação não é um ato de cessão de terras para os indígenas brasileiros, é apenas um ato formal, administrativo, de reconhecimento, uma vez que o direito sobre as terras que tradicionalmente ocupamos é um direito originário, isto é, precede a criação do Estado nacional brasileiro”.
Em teoria, o aumento dos crimes contra povos indígenas pode ter sido influenciado pelo discurso do Executivo, que acena para uma grande “flexibilização” nas leis ambientais. Exemplo disso é o “Dia do Fogo”, data onde agricultores paraenses atearam fogo em grandes porções de terras às margens da BR-163 em apoio ao discurso de Bolsonaro.
“Esse discurso referenda essas práticas e amplia, no entendimento daqueles que têm invadido as terras indígenas, que essas terras não vão ser demarcadas e, ao mesmo tempo, podem vir a ser de alguma forma legitimadas, inclusive para exploração, quando o presidente afirma que vai liberar a mineração em terras indígenas. Então, de fato, a nossa leitura é de que esse discurso incendeia o campo brasileiro no que diz respeito à demanda dos povos, que é justamente garantir a demarcação de seus territórios”, conclui o secretário do Cimi.
Temor pela vida
Em nota divulgada em 24 de setembro pela União dos Povos do Vale do Javari (Univaja), as lideranças locais se mostram preocupadas com a integridade física de seus pares no contexto do desmonte ambiental promovido pelo governo federal. A preocupação ganhou ainda mais força após o assassinato de Maxciel Pereira dos Santos, colaborador da Funai baleado na cabeça em 06 de setembro, na principal via da cidade de Tabatinga-AM, na tríplice fronteira com Peru e Colômbia.
Os ataques às Bases de Proteção Etnoambiental (BAPEs) também se somam às preocupações. Em entrevista ao Cimi, Adelson Korá Kanamary, coordenador da Associação Kanamary do Vale do Javari (Akavaja), e vereador do município de Atalaia do Norte, o problema mais grave enfrentado pelos povos do Javari não são mais as invasões, mas sim as ameaças de morte.
“A situação mais grave, que a deixa a gente com mais medo, inclusive os servidores da Funai, os colaboradores indígenas, pois estes correm mais perigos, e até quem trafega pelos rios, é o medo de ser assassinado. Os invasores já deram o recado de que não vão parar. Os caras da Funai já correram. Quem quer morrer de graça?”, declarou Adelson Kanamary ao Cimi.
Sobre os ataques às BAPEs, Adelson afirma que os invasores atiram visando derrubar os funcionários da Funai instalados nas bases para intimidar a fiscalização na área.
A nota da Univaja tem como objetivo chamar a atenção das autoridades brasileiras para os crimes praticados na região, pedindo para que o Estado cumpra com suas obrigações constitucionais. A nota denuncia também as invasões perpetradas por agentes diversos na T.I. Vale do Javari, entre eles madeireiros, posseiros, traficantes, e até missionários evangélicos sem autorização para penetrar o território.
Mesmo com o caldeirão de conflitos socioambientais presentes no Vale do Javari, Adelson defende que a pior situação é a segurança.
“Os caras estão se revoltando contra nós. Eles são de Benjamin Constant, Tabatinga, Atalaia do Norte e estão querendo a riqueza que tem na terra”, finaliza Adelson Kanamary, que teme que a matança, inclusive de agentes de fiscalização, se torne corriqueira na região.
Aceno a garimpeiros
Na terça-feira (01), o presidente alegou que “o interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore, é no minério”. A declaração, feita em frente ao Palácio do Planalto para representantes da Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp), foi um ataque ao interesse de outros países na Floresta Amazônica.
Na ocasião, Bolsonaro citou novamente o cacique Raoni Metuktire, repetindo que o posicionamento do candidato ao Nobel da Paz 2020 não representa os interesses de todos os povos indígenas brasileiros e que ele “É outro que vive tomando champanhe e em outros países por aí, esse tal de Raoni aí”.
O presidente também aproveitou a oportunidade para acusar a Vale do Rio Doce, responsável pelas tragédias em Mariana e Brumadinho (ambas em Minas Gerais), por monopolizar o direito mineral no Brasil durante o governo FHC.
“Um crime, um crime o que aconteceu. Chamei o ministro de Minas e Energia, almirante Bento, para participar da rápida reunião nossa, que vai continuar agora com a Agência Nacional de Mineração, para a gente buscar alternativas. Se tiver alternativas, a gente vai até o final da linha. Não vou oferecer milagre para ninguém aqui”, afirmou Jair Bolsonaro.
Além disso, se mostrou incomodado com a parcela da sociedade que, segundo ele, critica o garimpo mas faz vista grossa para a atuação de mineradoras internacionais em território brasileiro.
“O mundo falando, muitas vezes criticando o garimpeiro, agora, a covardia que fazem com o meio ambiente, por empresas de vários países do mundo aqui dentro do Brasil, ninguém toca no assunto. A propina, pelo que parece, corre solta”, acusou o presidente.
Cacique Raoni rebate Bolsonaro
Em 25 de setembro, no retorno dos eventos em que participou por ocasião da Assembléia da ONU, o cacique Raoni Metuktire foi recebido no Congresso Nacional brasileiro num ato de solidariedade organizado pelo Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia. O Fórum reúne lideranças dos seis partidos de oposição (PT, PCdB, REDE, PSOL, PSB e PDT), os coordenadores das Frentes Parlamentares Ambientalista, Indígena e Quilombola e as principais organizações ambientalistas, movimentos sociais e acadêmicos.
Em sua chegada no Congresso Nacional, diversos parlamentares, membros da sociedade civil e lideranças indígenas manifestaram apoio ao nome de Raoni Metuktire à Indicação ao Prêmio Nobel da Paz 2020. Apoiadores gritavam “Raoni sim! Bolsonaro não!” nos corredores da Câmara. Na coletiva de imprensa na Câmara dos Deputados, Raoni rebateu o discurso do presidente brasileiro a seu respeito.
“Vocês têm que escutar os donos da terra, que permanecemos aqui, e vocês têm que nos respeitar. Eu sou contra a violência, porque isso é ruim. Defendo a paz e a união para todo mundo viver bem. Eu sou uma liderança do meu povo, assim como vocês também são lideranças para defender o povo de vocês. Bolsonaro é um louco, mas vou continuar a minha luta. Não aceito violência”, declarou Raoni aos jornalistas presentes.
Ainda no mesmo dia, após reunião com o Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia, Raoni se encontrou com Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. Durante a conversa, Maia garantiu que não levará ao Plenário da Câmara qualquer proposta que vise regulamentar a exploração predatória de recursos naturais em terras indígenas, importante ponto da plataforma de governo do Executivo.
“Nossa intenção é que a gente possa construir projetos que sinalizem aos brasileiros e ao mundo a nossa preocupação com o meio ambiente”, afirmou Maia.
A campanha para que o Nobel da Paz 2020 seja concedido ao cacique Raoni Metuktire cresce a cada dia. A candidatura lançada pela Fundação Darcy Ribeiro (Fundar) é endossada por lideranças indígenas e ambientalistas de todo o Brasil. No dia 17 de outubro, o cacique participará do Ato em Defesa do Meio Ambiente e dos Povos da Amazônia, em Marabá (Pará), a convite do Fórum Nacional Permanente em Defesa da Amazônia, onde sua candidatura ao Nobel de 2020 será reforçado com a presença de lideranças das etnias da região.
O retorno do cacique Raoni ao cenário político socioambiental, na véspera de completar seus 90 anos, desagrada e confronta a política de ataque aos territórios indígenas. Uma das consequências visíveis é o aumento das ameaças contra os líderes que se apõem ao projeto do governo Bolsonaro. Caso vença o Nobel da Paz de 2020, Raoni trará ainda mais visibilidade para a causa indígena no Brasil, contribuindo para conter o desmonte das políticas ambientais e indígenas promovidas pelo governo Bolsonaro.
No dia 04 de outubro, a Revista Amazônia Latitude entrou em contato com a Associação Yanomami, Hutukara, que encaminhou documento a respeito dos efeitos do discurso do governo Bolsonaro sobre a segurança dos povos indígenas. Confira o documento na íntegra:
Davi Kopenawa – Líderes Yanomami ameaçados
Outubro, 2019
Davi Kopenawa Yanomami é um xamã e líder indígena conhecido no Brasil e no exterior por sua defesa dedicada aos povos indígenas.
Nas décadas de 1980 e 1990, o Território Yanomami foi invadido por dezenas de milhares de mineiros ilegais, causando um grande aumento nas taxas de mortalidade e destruindo comunidades inteiras. As denúncias de Davi levaram à ação e, em 1992, o território Yanomami foi oficialmente reconhecido e os mineiros foram despejados. No entanto, eles retornaram em ondas sucessivas ao longo dos anos, levando a várias operações de remoção – e depois a invasões renovadas. Essa situação piorou quando Bolsonaro assumiu o poder em 1º de janeiro de 2019. Mais de 20.000 garimpeiros ilegais entraram no território Yanomami, causando poluição por mercúrio, erosão das margens dos rios, problemas sociais e ameaças crescentes de violência. Os líderes Yanomami, incluindo Davi, que se manifestaram sobre a situação, receberam novas ameaças de morte.
A associação Yanomami, Hutukara, denunciou continuamente a mineração de ouro em suas terras, devido aos extensos danos que causa. Eles pressionaram por investigações para determinar quem está financiando atividades ilegais de mineração e para identificar quem compra ouro do território Yanomami e para onde ele vai. Esse trabalho resultou na Operação Xawara pela Polícia Federal em 2012, quando pela primeira vez pequenos e médios financiadores ilegais de mineração foram identificados, presos e possuíam bens como aeronaves apreendidas.
Em 2014, quando essas pessoas foram levadas à Justiça Federal, uma série de eventos levantou preocupações sobre a segurança de Davi. O primeiro foi um aviso dado a outro diretor da Hutukara de que Davi não estaria vivo até o final
do ano. Então homens desconhecidos em motocicletas começaram a circular no quartel-general de Hutukara, pedindo por ele. Em um terceiro episódio, o escritório da ISA foi assaltado por homens armados, que intimidaram funcionários e roubaram computadores. Desde então, outras operações de remoção ocorreram, o que provocou novas ameaças ao longo dos anos. Dada a explosão no número de mineiros ilegais no território Yanomami este ano, as ameaças a Davi e outros líderes Yanomami se intensificaram. Esses fatos são motivo de grande preocupação, principalmente no contexto de violência e insegurança em que líderes indígenas e ambientalistas vivem no Brasil.
Segundo um relatório da Global Witness, no ano passado quase metade das pessoas que trabalham em defesa do meio ambiente em todo o mundo foi morta no Brasil. Dos 908 assassinatos entre 2012 e 2013, 443 estavam no Brasil. Surpreendentemente, o relatório também constata que o Brasil não monitora redes criminosas que operam na Amazônia, subestima os conflitos fundiários e negligencia a assistência às famílias ameaçadas pelos proprietários e madeireiros. O Brasil é o país mais perigoso para as pessoas que defendem os direitos à terra e ao meio ambiente, seguido por Honduras com 109 assassinatos e pelas Filipinas (67).
Com a eleição de Bolsonaro, tememos que esses números só aumentem. Os ataques a ativistas já dispararam, assim como o desmatamento e os incêndios. A certeza da impunidade provavelmente estimulará mais ataques nos próximos meses e anos.