Thaddeus Blanchette

Graduado em Português, Sociologia e Latin American Studies (University of Wisconsin-Madison), mestre em Antropologia Social e doutor em Antropologia Social. Atualmente, é professor de Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Caubóis e Índios: ‘Hum. Chiclete tutti-frutti’ – os Precursores do Novo Cinema Indígena

Caubóis e Índios: Os Precursores do Novo Cinema Indígena
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Caubóis e Índios: Os Precursores do Novo Cinema Indígena

Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Humm, chiclete tutti-frutti.

Puta merda, Chefe! Eles pensam que você é surdo e mudo. Jesus Cristo, você os enganou, Chefe! Você os enganou… Enganou todos eles! — Diálogo entre os personagens Chefe Bromden e Randle McMurphy  no filme Um Estranho no Ninho, vencedor do Oscar de Melhor Filme em 1974.

Terras tradicionais e atuais do povo Piikáni / Piegan (Blackfoot)

Terras tradicionais e atuais do povo Piikáni / Piegan (Blackfoot)

A meu ver, Lily Gladstone (Piikáni / Peigan Blackfeet) deveria ter levado o prêmio de Melhor Atriz por sua representação formidável da mulher niukonska / osage Mollie Burkhart em Assassinos da Lua das Flores, de Martin Scorsese. Tão confiante eu estava em sua vitória que até proclamei essa como quase uma certeza em minha última coluna.

Infelizmente, como a própria Gladstone reconheceu, a competição este ano foi extremamente feroz. Embora a indígena americana não tenha levado seu primeiro Oscar de atuação, sua presença foi marcante na celebração. O ano 2023 foi e 2024 vai ser bom para o cinema indígena norte-americano e, em suas falas para a imprensa, Gladstone lembrou que a atual onda de produções sobre e de indígenas tem uma longa tradição; algo que é basicamente oculto em nosso país, ainda que — como o Chefe Bromden — está escondido do olhar desatento.

Portanto, nas próximas colunas, vamos falar sobre o nascimento do novo cinema indígena, indicando alguns filmes disponíveis aos espectadores brasileiros. Necessariamente, essa vai ser uma história bem basiquinha e simplificada. Se quiserem saber mais, sugiro que assistam ao documentário Reel Injun, que entra em mais detalhes. Na coluna de hoje, porém, vamos enfocar a década de 1970, uma época crucial para a transformação das representações indígenas no cinema americano.

***

No Brasil, quase não existem obras escritas que retratam os povos indígenas dos Estados Unidos e Canadá. Consequentemente, quase tudo que é conhecido sobre esses povos em terras brasilis foi aprendido por meio de sua imagem nos telões do cinema. A indústria cinematográfica, portanto, é uma disseminadora importante de estereótipos — e verdades — indígenas norte-americanas por essas bandas.

Na minha primeira semana morando no Brasil, 40 anos atrás, eu costumava ver o pai da família que me hospedava sentar-se para assistir, religiosamente, ao “Bang Bang à Italiana”: uma sessão de filmes italianos do Velho Oeste americano, patrocinada pela Record TV. Mesmo que os spaghetti westerns eram longe de ser os piores do genro, ainda assim, seguiram o roteiro estabelecido, canônico, no trato dos personagens indígenas. Essas poderiam ser, de maneira geral, divididas em três categorias:

  1. O Selvagem Anônimo. Pensa num soldado imperial de Guerra nas Estrelas, só mais bronzeado e sem blindagem;
  2. O Guerreiro Estoico. O mesmo que o primeiro, mas um aliado do mocinho do filme. Seguindo a mesma metáfora “georgelucasiana”: Chewbacca. Tonto, do Cavalheiro Solitário, é provavelmente o exemplar mais conhecido;
  3. O Índio Bufão, geralmente bêbado. Dispensa maiores descrições. Existe principalmente para providenciar um toque de comédia racista;
  4. A Princesa Indígena. A namorada do mocinho mas, por alguma razão, nunca a mãe de seus filhos. Pocahontas, Iracema, Sacagawea… A lista é enorme e, como o filósofo lakota Vine Deloria Jr. uma vez comentou, “existe uma em cada família americana”. Os brasileiros costumam apontar que ela é a avó mítica que “foi pega no laço” (curiosamente, sem nunca pensar ou comentar sobre a violência sexual implícita nessa frase);
  5. E, finalmente, o Índio Nobre, Porém Apagado. Geralmente, um chefe. Esse cara costuma aparecer para lembrarmos como estamos fodendo com a beleza natural e os costumes nobres que outrora dominaram esses continentes. Na literatura brasileira, seria Peri, de O Guarany. Sua sina é lamentar o desaparecimento de tudo que é bom neste mundo, além de desaparecer logo em seguida.

Todas essas figuras estavam presentes nos filmes de “Bang Bang à Italiana” e também numa infinitude de produções hollywoodianas. Todo brasileiro as conhece. Em muitos casos, essas criaturas fantasmagóricas até dominam os pensamentos brasileiros sobre os povos nativos de nossa terra. Afinal de contas, quando o ex-presidente Bolsonaro fala que a cavalaria brasileira é “incompetente” em comparação aos seus contraparentes ianques, fica mais que óbvio que são as sessões de cinema de sua juventude que orientam seu pensamento sobre a tal “questão indígena”, e nada do que ele leu foi baseado na vida vivida.

Dado a centralidade do cinema para a apresentação de temas e estereótipos indígenas, não é de se espantar que os povos indígenas têm levado muito a sério suas representações na cultura popular. Esse foi o caso desde antes do estabelecimento da indústria cinematográfica. Mais do que qualquer outra pessoa, Búfalo Bill Cody codificou os tropos do Velho Oeste americano — antes da época da fronteira propriamente acabar.

Cartaz do Show de Búfalo Bill, ca 1899, Biblioteca do Congresso dos EUA

Cartaz do Show de Búfalo Bill, ca 1899. Foto: Biblioteca do Congresso dos EUA

Seu circo itinerante, Buffalo Bill’s Wild West, começou em 1883 e circulou pelo mundo nas três décadas seguintes, fazendo exposições até para as casas reais da Europa. Em seu auge, o Wild West empregava centenas de artistas que “reproduziam”, ao vivo e a cores, as “cenas históricas” que mais tarde formariam a base da linguagem literária e cinematográfica acerca do oeste americano. Incluído nessas, eram ataques indígenas contra colonos brancos, bem como uma “recriação” da Batalha de Little Big Horn, em que os lakota e seus aliados derrotaram e dizimaram o 7º Regimento de Cavalaria estadunidense. (Eita, cavalaria americana competente…)

Entre seus artistas, Cody contratou dúzias de indígenas, principalmente lakota, muitos dos quais tinham participado nas guerras contra a expansão dos EUA. Esses eram pagos para se vestir, dançar, cantar, e cavalgar de maneira tradicional no exato momento em que tais atividades estavam sendo criminalizadas nas reservas do oeste. Ironicamente, então, ser pago por Búfalo Bill para “brincar de índio” não só providenciou uma subsistência econômica para os lakota (U$18.000 — quase 250.000 no dinheiro de hoje — foi remetido à reserva de Pine Ridge em 1891), criou um espaço para a sobrevivência de seus costumes.

Durante as primeiras sete décadas do século XX, artistas indígenas eram rotineiramente empregados para participar no tipo de filme que o pai de minha família hospedeira gostava tanto de assistir, que consagraram os mitos e estereótipos dos índios estadunidenses que assombram a imaginação de nosso querido ex-presidente e vários outros brasileiros. Mas, começando na década de 1970, a visão cinematográfica dos povos indígenas começou a mudar. A impopularidade da Guerra de Vietnã colocou as velhas histórias da “conquista do oeste” numa nova luz, e os artistas e ativistas indígenas estavam preparados para explorar essa brecha na consciência nacional.

Entre 1970 e 1976, houve três representações de personagens indígenas no cinema americano que foram uma espécie de divisor de águas no relacionamento entre Hollywood e os povos indígenas. Nenhuma dessas era, em si, revolucionária e todas aconteceram no contexto de histórias firmemente centradas em protagonistas brancos. Mesmo assim, abriram o caminho para contar outras histórias e representar outras vidas indígenas que quebraram o molde estabelecido por Búfalo Bill e a literatura adolescente do fin du siècle.

A primeira, e talvez a mais forte, foi Old Lodge Skins, encenado por Chefe Dan George (Tsleil-Waututh) no filme Pequeno Grande Homem. Embora a produção contava a história da personagem de Dustin Hoffman (Jack Crabb — o intitulado Pequeno Grande Homem), oferecia um retrato simpático e até historicamente embasado dos heévâhetaneo’o (cheyenne) e lakota (sioux), além de uma representação da Batalha de Little Bighorn como uma derrota mais-que-merecida de uma cavalaria genocida. A personagem de Chefe Dan George é humorística, mas bem humana, mesmo quando estereotipada. O forte porém sútil senso de humor de George imbuia os comentários e ações de Old Lodge Skins com críticas ácidas sobre a sociedade branca que estava cercando seu povo e o empurrando para as reservas. Em 1976, George faria uma personagem semelhante — Lone Watie — no longa de Clint Eastwood, Josey Wales – O Fora da lei.

Chefe Dan George, Caubóis e Índios: Os Precursores do Novo Cinema Indígena

Chefe Dan George. Foto: Wikimedia Commons

Ambos Old Lodge Skins e Lone Watie cabiam nos estereótipos do Índio Bufão e o Índio Nobre, Porém Apagado. Todavia, na primeira instância, o humor se direciona contra os colonizadores e suas presunções sobre índios. Na segunda, crucialmente, a velha e nobre representação do passado não desaparece — apesar de todas suas intenções, no caso de Old Lodge Skins — mas continua presente, caminhando em direção à futura. George foi indicado a dois Oscars por suas representações nos filmes citados, que trouxe um índio diferente, ainda que familiar, às telas. Embora não tenha ganhado os prêmios, serviu como forte alento para uma nova geração de artistas e escritores indígenas.

A terceira representação, da qual retiramos a epígrafe desta coluna, foi Chefe Bromden, interpretado por Will Sampson (mvskokvlke / muskogee), no clássico Um Estranho no Ninho. Mais uma vez, um estereótipo tradicional — o Índio Bufão — é virado de ponta cabeça quando o “chefe”, alienado de um hospital psiquiátrico, revela que não é surdo, mudo e estúpido (como todos achavam), mas um observador atento da realidade. Ainda que suas desordens mentais eram decorrentes do alcoolismo de seu pai, isso é estabelecido como resultado de um sistema indigenista que trata os povos indígenas como povos sem futuro, fadados ao desaparecimento. No final, Bromden se revela como a personagem principal do filme, tomando atitudes decisivas para se libertar, tanto do hospital quanto de seus demônios internos. A atuação de Sampson não é tão bem lembrada quanto a de George, Chefe Bromden, porém, é notável por outra razão: uma representação de um indígena moderno, numa situação moderna, e seus problemas são reconhecivelmente modernos, mas indígenas.

Nas décadas de 1980 e 1990, representações e papéis para atores indígenas surgiram lenta, mas constantemente. O filme que todo mundo lembra, obviamente, é Dança com Lobos. Ainda assim, trata-se de uma obra bastante problemática e estereotipada. A ativista Ward Churchill uma vez o apelidou de Lawrence da Dakota do Sul. Mas, pelo menos, encheu a tela com vozes e corpos indígenas. Pela primeira vez, uma mega produção hollywoodiana fez questão de retratar um povo indígena — os lakota — com atores indígenas, muitos dos quais virariam rostos familiares no cinema das décadas seguintes. Dois artistas, em particular — Graham Greene (Onyota’a:ka / Oneida) e Wes Studi (Tsalagi) — ganharam ampla representação na cultura popular, atuando em dezenas de longas e seriados e sendo indicado ou ganhando Oscars. Mesmo no Brasil, as pessoas reconhecem seus rostos, se não sua ascendência indígena.

Wes Studi, Caubóis e Índios: Os Precursores do Novo Cinema Indígena

Wes Studi. Foto: Bleecker Street/YouTube

Graham Greene, Caubóis e Índios: Os Precursores do Novo Cinema Indígena

Graham Greene. Foto: Clearcut/ Reprodução

Em suas declarações à imprensa em torno do Oscar deste ano, Lily Gladstone especificamente lembrava George, Studi e Greene como atores indígenas que outrora foram nomeados para o prêmio ou, no caso de Studi, ganharam (mas não por sua atuação). Em sua primeira reação à derrota, ela se pronunciou com o seguinte comentário:

Sentindo muito amor hoje, particularmente do Território Indígena. Kittō”kuniikaakomimmō”po’waw — Realmente amo todos vocês (Pode acreditar, quando estava de saída do Teatro Dolby e passei pela estátua grande do Oscar, dei uma tapinha de coup naquela bundinha dourada. Contagem: uma.

Entre os povos indígenas das altas pradarias norte-americanas (das quais os piikáni, povo de Gladstone, fazem parte), “contar coup” é uma forma tradicional de demonstrar coragem frente a um inimigo. O guerreiro toca no corpo de seu adversário, sem usar armas, na esperança de intimidá-lo e forçá-lo a admitir a derrota, sem a necessidade de derramar sangue.

Interessante, então, que a revista Variety e os outros órgãos da imprensa de entretenimento têm interpretado o comentário de Gladstone como prova de seu “bom humor”. Conhecendo um pouco mais as culturas indígenas das pradarias do que a maioria dos forasteiros, eu diria que não foi um ato de uma brincalhona, mas sim um aviso. É a promessa de alguém que, como Chefe Bromden, está observando silenciosamente há muito tempo. Porém, está prestes a quebrar algumas janelas e criar sua própria liberdade.

Nas próximas colunas, vamos falar mais sobre o que está acontecendo e o que está por vir no mundo do novo cinema indígena.

 

*Aviso aos interessados: todos os filmes que são mencionados nesta coluna estão disponíveis em português e tem sido um hobby colecioná-los. Se você não consegue achá-los, entre em contato comigo em [email protected].

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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