Parentes em defesa da Amazônia: Mulheres extrativistas, quilombolas e indígenas reunidas e renomeadas

Guardiãs da floresta, elas compartilham lutas e responsabilidades na proteção de territórios, culturas e de modos de vida que mantêm uma relação indissociável com o lugar onde vivem, com os lares coletivos que dependem do meio ambiente para existir

Rosane Steinbrenner, Manoela Karipuna, Sandra Regina Gonçalves e Queila Couto. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi
Rosane Steinbrenner, Manoela Karipuna, Sandra Regina Gonçalves e Queila Couto. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi
Rosane Steinbrenner, Manoela Karipuna, Sandra Regina Gonçalves e Queila Couto. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Rosane Steinbrenner, Manoela Karipuna, Sandra Regina Gonçalves e Queila Couto. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

O que uma quilombola, uma indígena e uma extrativista têm em comum? Todas são mulheres, todas são líderes, todas são guardiãs de suas famílias, de suas comunidades e de seus territórios. Todas vivem na Amazônia. E, agora, todas estão se identificando por uma palavra que é, ao mesmo tempo, uma “forma de tratamento” e um símbolo da luta que as une. Elas são “parentes”.

Uma conexão que não é sanguínea ou forjada na convivência partilhada num mesmo núcleo familiar. A palavra que sempre foi usada como sinônimo de “um de nós” entre os povos indígenas no Brasil se amplia para receber aqueles que compartilham a mesma luta: a defesa e a proteção da Amazônia.

Queila Couto é mestre em direito e assessora Jurídica da coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Pará (Malungu). Sandra Regina Gonçalves é representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem). Manoela Karipuna é doutoranda em Sociologia e Antropologia, além de conselheira da Associação dos Povos Indígenas Estudantes da Universidade Federal do Pará (APYEUFPA).

Essas mulheres latinas, afroindígenas, amazônidas se encontraram na gravação do PodCast do Projeto Experimental Cumbuca da Ciência, uma parceria da RadioWeb da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Pará (Facom/UFPA) com o Museu Paraense Emílio Goeldi “testada” durante a realização da 76ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), que aconteceu na Universidade Federal do Pará (UFPA), de 7 a 13 de julho de 2024.

Elas, que abraçam tantas identidades, conversaram sobre seus desafios e, ao se referirem umas às outras, evocaram o título de “parente”.

Para Queila, há uma proximidade nesse vocábulo, uma familiaridade e afetividade que são cotidianas dentro das comunidades quilombolas. “Porque ali a coletividade está entrelaçada com a nossa família, porque ali todos são parentes, uma grande família”.

Queila Couto, mestre em direito e assessora Jurídica da coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Pará. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Queila Couto, mestre em direito e assessora Jurídica da coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Pará. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Transformando os indivíduos em coletivos

A quilombola acredita que essa é “uma família que se amplia para quem ‘tem a mesma luta’, se identifica com a causa, é sensível com as demandas, a cultura e as problemáticas existentes dentro das nossas comunidades e dos nossos territórios. A gente pode se considerar como parente porque está lá para ouvir e também para dialogar e apontar possibilidades que podem auxiliar…e aí a gente vai formando uma grande corrente, uma grande família. [Por isso] a gente pode, então, considerar essas pessoas também como parentes”.

Por sua vez, Sandra Regina Gonçalves reforça que todo grupamento extrativista é extremamente marcado pela ideia de coletivo, por isso, a palavra “parente”, então, vem sempre carregada de sentimento e proximidade.

“Para nós que somos de unidades de conservação marinha ou florestal está claro que nada é individual, tudo é coletivo. Os mesmos direitos que eu tenho, os demais têm. Se forem duas, três, …15 mil famílias que compartilham o território naquela unidade de conservação. Um parente para nós significa muito…o aconchego, o carinho…então, inclusive, temos uma senhora da minha unidade, ela chama assim: ‘vem cá parente’, quero ‘sentar na tua ‘ilharga’…usamos muito [essa palavra]..na minha cidade, usamos muito essa palavra. Não importa se você faz parte do meu ciclo familiar, se você está dentro do meu território, você é meu parente. E, para nós, isso é muito importante”.

O vocábulo adotado pelas comunidades tradicionais já era conhecido entre os povos indígenas para se referir uns aos outros. Já era um marcador de uma identidade que, agora, se amplia impulsionada por desafios compartilhados.

“Essa palavra vem do movimento indígena. Podemos não ser do mesmo povo, mas estamos na mesma luta, no mesmo movimento, lutando pelas mesmas pautas e, por isso, nos referimos assim entre os povos indígenas. Aqui [entre as líderes de comunidades tradicionais] usei [o termo ‘parente’] porque estamos de forma coletiva discutindo demandas dos movimentos aos quais pertencemos e questões relacionadas à conservação, à natureza, às mulheres…é uma maneira de ‘coletivar a gente’. Entendo elas como ‘parentes’ porque estamos na mesma luta”.

Sandra Regina Gonçalves, representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem). Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Sandra Regina Gonçalves, representante da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem). Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

 Os “poucos tantos” de nós…

E faz sentido considerar “parente” todos que fazem “parte” da parcela de uma população que reúne comunidades marcadas pelo extermínio, marginalizações e perseguições ao longo da ocupação do território atualmente chamado de Brasil.

De acordo com o Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que pela primeira vez inseriu em seu questionário a pergunta direta “você se considera indígena?”, o país tem 203 milhões de habitantes. Destes, 1.694.836 milhão de pessoas se identificam como indígena. A maioria (1.227.642 milhão) indica que “ser indígena” é sua raça ou etnia. E há outros 1.330.186 milhão de habitantes que se identificam como quilombolas no território nacional.

Ainda não há dados divulgdos de forma condensada pelo IBGE, do Censo 2022, sobre contagens de populações extrativistas, ribeirinhos, pescadores ou caboclos – identidades e comunidades ligadas aos chamados “povos tradicionais” ou “da floresta” na Amazônia, mas segundo o Cadastro Nacional de Unidades de Conservação (CNUC) do Ministério do Meio Ambiente, há 994 unidades de conservação reconhecidas, onde habitam milhões de pessoas, inclusive grande parte dos três milhões de quilombolas e indígenas.

Quando olhamos os dados referentes à Amazônia Legal, onde vivem, na contagem do IBGE, 26.650.789 habitantes, percebemos que, entre os moram por aqui, 3,26% (868.419 mil pessoas) são indígenas e 1,61% (427.801 mil pessoas) se identificam como quilombolas. Ou seja, metade dos indígenas brasileiros e cerca de um terço dos quilombolas é “amazonico”.

É essa a rede que compõe os “guardiões da floresta”. Aquelas culturas, povos e comunidades; aquelas pessoas que necessitam da floresta de pé para existir, como têm existido há décadas ou ainda há centenas e milhares de anos.

Bastidores da gravação do Mesacast. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Bastidores da gravação do Mesacast. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Quem são os parentes? São os defensores dos territórios!

“Não há como dissociar as pessoas de seus territórios. A luta para resguardar esse território [Amazônico] é constante, é diária. Se não temos a proteção do território, todas as outras políticas necessárias – para que nossa população tenha acesso à educação e saúde, [para que] tenha dignidade – são afetadas. E isso não é favor. É um direito reconhecido pela constituição federal”, aponta Queila Couto.

Manoela Karipuna, lembra que a principal luta de todo povo tradicional é sempre pelo território, porque cada cultura na Amazônia está ligada à defesa da terra e à preservação do meio ambiente como uma etapa essencial para resguardar a cultura e o modo de vida de quem chama a Amazônia de lar.

“A ‘mãe de todas as lutas’ é a luta pelo território. A gente luta para preservar o território, contra o marco temporal, contra o que o ameaça. Falam que a gente está atrapalhando, que é selvagem. Vêm sempre com a visão racista contra os povos indígenas. E nossa existência vai sendo violentada. Nossa principal luta é pelo território e as principais ameaças que enfrentamos são, portanto, as contra os nossos territórios”.

Ela lembra que as políticas públicas são demandas de todos os “parentes”, mas de maneira dialógica. A forma como cada política, cada projeto é realizado precisa passar pelo respeito, compreensão e escuta de quem conhece a Amazônia como ninguém porque nasceu, cresceu e “evoluiu” junto com ela.

A etapa “evolutiva” da parceria com a natureza para organizar a vida cotidiana é o que torna quem vive na Amazônia, único, específico, sabedor de maneiras de sobreviver e viver na região, de modo a manter a água, a terra, o ar, a fauna e a flora sadios.

“É pela luta pelo território que vamos garantir a educação, a saúde…o futuro dos nossos filhos, queremos que eles tenham [acesso à] educação e falem nossa língua, tenham uma alimentação que não esteja envenenada…”

E para quem depende do meio ambiente, a floresta precisa permanecer preservada. Nas palavras de Sandra Regina Gonçalves:

“Mangue, floresta é vida. A gente precisa da floresta em pé. Não há floresta deitada. Só quando a árvore é cortada que ela fica deitada. Viva, ela está em pé. Sempre estaremos [aqui] para proteger e conservar e estamos lutando pra isso, para manter essa vida. Estamos juntos em um só objetivo”.

Manoela Karipuna, doutoranda em Sociologia e Antropologia e conselheira da Associação dos Povos Indígenas Estudantes da Universidade Federal do Pará (APYEUFPA). Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Manoela Karipuna, doutoranda em Sociologia e Antropologia e conselheira da Associação dos Povos Indígenas Estudantes da Universidade Federal do Pará (APYEUFPA). Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Para ver e ouvir a Amazônia, enxergue e escute os amazônidas

Para as três lideranças femininas tradicionais da Amazônia é preciso ver e ouvir mais a Amazônia e seus povos. A fim de garantir a continuidade desse lugar tão importante para a economia, clima, diversidade e cultura mundiais. É preciso enxergar essas pessoas, dar visibilidade aos seus modos de vida e saberes. É preciso incluir os “habitantes dessa casa” na hora de pensar em “reformá-la”.

Ouvir e ver os “parentes” significa muita coisa. Significa pesquisar e se aproximar nas várias frentes científicas dos indígenas, quilombolas, caboclos, pescadores, ribeirinhos, extrativistas da Amazônia. “Mas não apenas visitar, também fazer as devolutivas, essa ‘volta com o resultado’. Uma apresentação, uma cartilha, um livro, um projeto, uma proposta de política pública. Todas são maneiras de ‘devolver’ [e, assim, dialogar verdadeiramente sobre] o que pegaram de nós”, indica Sandra. Porque “Nós somos os doutores dos nossos saberes e podemos ajudar os pesquisadores indicando o que já foi feito ‘aqui’, se soubermos o que já ‘sabem sobre a gente’”.

Enxergar os “parentes” também é importante na implementação de políticas públicas para que elas sejam mais eficazes na Amazônia. Queila Couto fala sobre a educação quilombola, que é diferenciada e, por isso, precisa de diálogo. “Aulas sobre nossa história, dias em que os mais velhos dêem aula às nossas crianças”, estão entre os exemplos do que pode ser feito em cada comunidade.

Políticas públicas que sejam implementadas sem considerar as especificadas culturais e maneiras de viver dessas comunidades; decisões que não considerem os saberes e percepções ancestrais de como funcionam os ecossistemas; os riscos do que “pode dar errado” na construção, implantação de funcionamento de grandes projetos “cegos” aos impactos de cada etapa na existência dos amazônidas estão entre os exemplo do que não fazer.

Ainda falando sobre políticas públicas e a importância de os povos tradicionais participarem de todas as etapas de cada uma delas, do planejamento à avaliação, Manoela Karipuna lembra do Processo Seletivo Especial mantido pela Universidade Federal do Pará (UFPA) para oferta de vagas para estudantes indígenas e quilombolas.

“Participamos, somos ouvidos, falamos sobre os problemas e o que precisa melhorar e, assim, ocupamos nossos espaços, que são espaços que devem ser acessados por todos”.

Ao entrar na universidade, por essa seleção especial que já acontece há mais de uma década, médicos, psicólogos, jornalistas, designers, antropólogos, professores, engenheiros, administradores indígenas e quilombolas são formados e habilitados para pensar o mundo a partir de suas percepções únicas.

Gravação do Mesacast, apresentado por Rosane Steinbrenner. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Gravação do Mesacast, apresentado pela professora Rosane Steinbrenner. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

“Eles” são os “outros”?

E embora a palavra “parente” seja claramente importante como ligação entre as comunidades e povos tradicionais da Amazônia, há outro aspecto dela que chama a atenção: o desejo de “ampliar” a família.

Ao perpetuar um conceito e uma identidade de proximidade pautada nas alianças, na coletividade, nas lutas em comum pela proteção e preservação, fica claro que “qualquer um pode ser parente”. E talvez seja essa uma das maiores lições que a Amazônia e seus povos podem oferecer ao mundo: a ideia – ingênua, simples e poderosa – de que todos estamos conectados. Uns com os outros e também com o ambiente em que vivemos. Daí a importância para preservá-lo, daí a relevância da missão de cuidar da natureza e de quem vive integrado à ela, especialmente na Amazônia.

Todos que se unem a esses propósitos podem se tornar “parentes”. Oportunidades para isso não faltam e a iminência da 30ª Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 30), agendada para novembro de 2025, em Belém do Pará, é uma dessas grandes oportunidades para se entender e, quem sabe, se alistar à luta quilombola, indígena, ribeirinha e extrativista na proteção da Amazônia.

Convidadas e equipe responsável pelo Mesacast. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Convidadas e equipe responsável pelo Mesacast. Foto: Janine Valente / Museu Emílio Goeldi

Para a COP 30…

É, em busca dessa ampliação, de conquistar mais “parentes” para a luta necessária e desafiadora para a preservação da maior floresta tropical do mundo, ameaçada por tantos inimigos – desmatamento, mudanças climáticas, grandes projetos – que indígenas, quilombolas, extrativistas e demais comunidades tradicionais olham além e pensam sua participação na COP 30 como um lugar de diálogo e busca por proteção.

“Pode ter certeza de que todas as oportunidades que tivemos de ocupar essa COP, vamos ocupar. Vamos fazer o debate sobre a proteção de nossos territórios para que ele não saia das nossas mãos. A COP é um momento para discutir isso. Quanto tempo demoramos para termos o reconhecimento sobre nosso território? Quantos ainda faltam ser reconhecidos? Vamos, agora, entregar as decisões sobre ele [terrítório] a outros? A gestão de nossos territórios tem de ser feita por nós”, garante Queila Couto.

Para Sandra Regina Goncalves, embora o Pará, por exemplo, seja conhecido como o “Estado Resex” (de reservas extrativistas), com 14 unidades de conservação marinha e 11 de conservação florestal, não há garantia de proteção de direitos para quem vive em cada uma delas. Por isso, as alianças e diálogos, especialmente sobre o território, precisam ser o foco na COP 30.

“Se nós estamos como guardiões de cada território, conservando e preservando, precisamos sim sermos ouvidos para conduzir esse processo [de decisões sobre ele]. A aliança de parentes é importante para que possamos realmente estar nesse diálogo e organizar como se dará dentro do território a questão do crédito de carbono, dos projetos, para garantir os nossos territórios e os nossos direitos, para [garantir] nosso sustento e manutenção da floresta em pé”.

Manoela Karipuna enumera os grandes temas que devem se apresentar ao mundo durante a Conferência: demarcação de terras, proteção das áreas já demarcadas, discussão sobre a proposta de marco temporal, créditos de carbono e exploração de petróleo na Amazônia são alguns destes debates.

E “precisamos garantir a presença dos povos tradicionais nele e que o documento final elaborado, seja mais. É importante ter as discussões, [o debate] acontecer, trazer a coletividade dos grupos, mas precisamos ir além disso. Se continuarmos nesse sistema exploratório, não vai adiantar nada”, pontua.

Texto: Glauce Monteiro
Montagem da página e acabamento: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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