Reflexões sobre Cinema, Educação e Cultura Amazônida
Artigo reflete sobre a história do cinema e seu desafio contínuo de representar de forma autêntica identidades e culturas
Cena do filme O Abraço da Serpente. Fonte: Divulgação / Filme Distribution E.K.
RESUMO:
Marcos Antônio Moreira Carvalho e Bene Martins relembram a história do cinema para refletir sobre como o cinema, usado para massificar mensagens e criar uma ideia de identidade nacional unificada enfrenta, ainda nos dias atuais, o desafio de se aproximar das representações, identidades e culturas para mostrar de forma mais ampla a realidade, especialmente, quando se trata de lugares tão significativos e específicos como a Amazônia. Nesse processo, a educação (e seus estudos sociológicos, culturais e antropológicos) é uma importante aliada da produção audiovisual, a fim de que os produtores de conteúdo do presente não perpetuem equívocos do passado.
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História de imagens em movimento
O Cinema é considerado invenção dos irmãos Lumiére, pois, ao criarem o Cinematographo, possibilitaram a captação de imagens em movimento no final do século XIX. Inicialmente, ele foi entendido como uma invenção de entretenimento que agradou muitos espectadores, mas sem grandes perspectivas artísticas. Nas primeiras décadas do século XX, porém, alguns artistas perceberam o potencial da invenção dos Lumiére como arte e desenvolveram suas contribuições para a expansão de uma linguagem, mais próximo ao que hoje chamamos de cinematográfica. Aos poucos, influenciada por diversas artes, ela adquiriu características próprias.
Nomes como George Méliès1George Mélies (1861-1938), ilusionista e cineasta francês famoso que contribuiu com a elaboração da linguagem cinematográfica ao criar novas técnicas e narrativas de ficção., Edwin S. Potter2Edwin Potter (1870-1941), cineasta norte-americano e um dos pioneiros na realização de filmes. Dirigiu O Grande Roubo de Trem (1903), um dos maiores sucessos de público do início do século XX., Alice Guy Blaché3Alice Guy Blaché (1873-1968), cineasta pioneira no cinema francês. É considerada a primeira cineasta e roteirista de filmes ficcionais., David W. Griffith4David W. Griffith Griffith (1875-1948), diretor de cinema americano e um dos mais importantes pioneiros do cinema. Introduziu inovações técnicas e narrativas. É considerado o criador da linguagem cinematográfica., entre tantos outros, pensaram o cinema como meio de criação de ideias, pensamentos, transformações. Como arte/entretenimento, o cinema conquistou seu espaço e, efetivamente, tornou-se um elemento de grande influência artístico-ideológica-econômica no século passado.
Percebendo a força do encantamento diante das imagens em movimento, o Cinema começou a ser utilizado como meio educacional de ideologias, valores, culturas e políticas. Na revolução Russa5Revolução Russa foi um período de conflitos, iniciado em 1917, que derrubou a autocracia russa e levou ao poder o Partido Bolchevique., em 1917, o cinema foi utilizado para construção e disseminação ideológica, experiência considerada bem-sucedida e que evolui, anos depois, na Rússia, quando o líder Stalin investiu maciçamente na produção de filmes criando condições de trabalho para diretores como Serguei Eisenstein6Serguei Eisenstein (898-1948), um dos mais importantes cineastas soviéticos. Realizou um cinema engajado politicamente e sua teoria sobre a montagem cinematográfica mudou a história do cinema..
Na Alemanha, Adolf Hitler se valeu do cinema para impor e veicular propaganda de seu governo ao utilizar os cinejornais que, exibidos antes dos filmes de longa-metragem, constantemente insistiam nas vantagens e sucessos do Terceiro Reich.
Na Itália, Benito Mussolini utilizou ações semelhantes no final dos anos 1930, quando o regime fascista investiu recursos financeiros na construção do estúdio Cinecittá que foi inaugurado em 1937. Entre o ano de sua fundação e 1943, esse estúdio foi utilizado para mais de trezentas produções cinematográficas italianas.
Naturalmente, outros países recorreram às mesmas estratégias. No Brasil, o presidente da república Getúlio Vargas (19/04/1882-24/08/1954), incentivou a produção e divulgação do Cinema como recurso pedagógico para imprimir as ideologias do seu governo utilizando-se, particularmente, dos cinejornais produzidos a partir da criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE)7Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) foi fundado no Governo Getúlio Vargas, em 1936, sob coordenação do Ministério da Educação e Saúde Pública. , nos anos 1930. A intenção de grande parte da produção do INCE era unir o país culturalmente por filmes que abordavam histórias, lendas, tradições e personagens os quais demonstravam a riqueza econômica das regiões brasileiras.
O cineasta mineiro Humberto Mauro8Humberto Mauro (1897-1983), um dos pioneiros do cinema brasileiro, realizou filmes entre 1925 e 1974, com temas brasileiros. foi um dos mais ativos diretores do Instituto e realizou ótimos trabalhos abordando questões culturais de maneira didática e poética, as quais ampliaram os olhares, antes, direcionados apenas para o Sul e Sudeste do país, regiões economicamente mais ricas naquele período. Ou seja, se percebe que o Cinema, anos depois de sua invenção, tornou-se ou poderia ser um poderoso aliado da educação. À depender da narrativa e proposta audiovisual, ele pode demonstrar ou não as realidades das regiões de um país, mesmo de um tão grande como o Brasil.
Cinema, educação e identificações
Na relação do cinema com a educação é necessário entender que a busca de identificações individuais e coletivas de enredos e seus personagens deve levar em consideração vários fatores. A memória é um dos elementos essenciais para a constituição de um processo narrativo educacional. Ao refletir sobre esta produção, os estudos sociológicos, antropológicos e históricos são bases fundamentais para uma narrativa que se aproxime do tema abordado.
As diversas regiões de um país como o Brasil, são apresentadas, na maioria das situações, de modo distante e com distorções de contextos, tempos e espaços de ação. Saber respeitar esses fatores é condição fundamental para que as atividades audiovisuais possam ultrapassar apenas as boas intenções de se registrar e compartilhar a cultura de uma região, cidade, bairro, pessoas. Extrair as dificuldades deste processo criativo e narrativo é um dos maiores desafios para os realizadores do audiovisual neste século XIX.
Pois, se a memória fornece a noção de pertencimento, podemos tematizar sobre as particularidades das produções cinematográficas de uma região como a Amazônia, diversas (re)construções de memórias coletivas e individuais. Provocar estímulos sobre elementos que poucos conhecem, incluindo o próprio “Ser amazônida”, exige um comprometimento na busca por outras maneiras de ver, no sentido amplo do termo, prestar atenção para tentar interpretar o que existe nesta região. Isso inevitavelmente levará este novo observador (estrangeiro ou não) a escapar do estereótipo, da imagem envelhecida e equivocada sobre os elementos que compõem a realidade dessa região, particularmente, sobre suas culturas.
Essa mudança de paradigma audiovisual, em sua maioria, baseada em um histórico de equívocos, deve ter forte ressonância a partir dos realizadores amazônidas. Como aconteceu em diversos momentos históricos no passado, deve-se pensar no audiovisual como elemento educacional para formação e expansão de um público que entenda a necessidade de encontrar no cinema, arte tão influente, questões que colaborem para problematizar e entender suas identidades a nível local, nacional e internacional. Tal mudança de perspectivas é possível com a (re)elaboração de conceitos educacionais que integrem o cinema amazônida, na ficção ou no documentário, em diversos gêneros, da animação ao documentário, para criação de laços de identificações.
Com foco inicial no cinema direcionado ao público infanto-juvenil, é necessário desenvolver produções que incluam personagens, narrativas e características da Amazônia. Essa é uma maneira de, no mínimo, contrapor a leitura colonizada e estereotipada que diariamente chega a este público, incluindo trabalhos veiculados pela televisão que, raramente, preocupam-se com as diferenças culturais (tendência não apenas da televisão brasileira, mas também da maioria das redes de televisão em diversos países).
Sob o aspecto educacional, o audiovisual deve seguir premissas de criar, discutir e informar sobre aspectos e particularidades das culturas amazônidas. No segmento infanto-juvenil, a quantidade de produção deste tipo ainda é pequena, mas já surge como alternativa mais presente.
A partir destas indicações citadas, entendemos o espectador como sujeito que pode interagir com a narrativa de filmes sob o ponto de vista de ser influenciado com outro modo de ver e, posteriormente, entender universos materiais e imateriais amazônidas, únicos em suas diversidades.
Compreendendo que o público é ativo
Estudos da recepção ou da interpretação de audiências indicam que nessa interação, o espectador existe de modo ativo, consciente ou não. Exemplo interessante sobre este tema pode ser encontrado na própria animação (antes definida como desenho animado). Raramente os poucos filmes/especiais de TV, de fácil acesso ao público, de produção amazônida, chegaram ao público infanto-juvenil, a exemplo dos curtas ou longas produzidos pelos cineastas Jorane Castro, Fernando Segtowick e Cássio Tavernad.
Personagens que refletem exemplos e culturas (entre outros valores) são essencialmente estrangeiros. Os filmes da produtora Disney, por exemplo, estão no imaginário de grande parte dos espectadores. Muitas vezes, por sua qualidade técnica e, em alguns casos, porque sempre estavam presentes no roteiro de lançamentos anuais das salas de cinema em todo mundo.
Dessa maneira presente e insistentemente, adquirimos um modo de ver e interpretar filmes/culturas/valores com uma tendência ao estranhamento naquilo que não se aproxima da suposta verdade audiovisual apresentada por esses filmes divulgados pelas produtoras e aceitos por um público meio alienado sobre seus lugares no mundo, não porque não tem interesse em conhecer melhor suas culturas, mas pela facilidade de encontrar o que as mídias decidem exibir em canais de fácil acesso.
O sentido que atribuímos aos exemplos audiovisuais que observamos com mais frequência revelam uma complexa cadeia de elementos que, entre outras influências, formam e consolidam nosso caráter cultural. Por isso, num conceito que entenda o cinema como elemento educacional presente, pensar a Amazônia é preciso e urgente. Mesmo que se leve em consideração uma série de significações afetivas em relação a nossa memória e influências anteriores nesse campo de realização, pensar a Amazônia cinematograficamente é considerar a urgência em, no mínimo, apresentar outros traços identitários dos povos amazônidas.
Essa questão, naturalmente, é polêmica. Podemos levantar indagações sobre o alcance sociocultural-político-econômico do audiovisual nas opiniões/comportamentos/práticas das pessoas. Esse imaginário social midiático que pode (ou não) gerar outras identidades e valores é presente na vida de milhões de pessoas, mas não podemos afirmar quais identidades e valores mudarão apenas pela influência de um elemento, no caso, o audiovisual.
De acordo com a educadora Rosália Duarte, ainda existem poucos estudos que procuram entender de maneira abrangente o modo como o espectador utiliza/aproveita os conteúdos transmitidos pelos veículos audiovisuais. O receptor/espectador do século XXI, em sua maioria, não é mais tão passivo, no sentido de que havia somente uma opção de escolha, como antigamente. Ele questiona mais sobre o que observa, haja vista a proliferação de alternativas, as quais os capacitaria para um olhar mais comparativo-crítico sobre o que lhes oferecem nas plataformas e canais do audiovisual.
Por isso, os estudos sobre o tema devem incluir as linguagens/narrativas que os meios audiovisuais utilizam para conquistar este espectador que normalmente é induzido a incorporar, nos termos de Giles Lipovtsky, a cultura-mundo (termo elaborado pelos autores Gilles Lipovetsky e Jean Serro no livro “A Estetização do Mundo Viver na era do Capitalismo”), ou seja, uma cultura globalizada e transmitida por olhares estrangeiros que, muitas vezes, deixam escapar importantes referências culturais, sociais e psicológicas que fazem parte do processo de criação artística.
É evidente que a influência dos mercados comerciais invade o processo criativo, mas o desenvolvimento de um senso amazônida requer um compromisso que deve se sobrepor a supostos desvios de observação. Podemos reiterar a necessidade de identificação de signos pertinentes-significativos à região, evidenciando o pensamento de Clifford Gertz em A Interpretação das Culturas, citado por Relivaldo Pinho:
Entender os objetos estéticos através de uma interpretação é concebê-los como parte da cultura e da sociedade, é identificar os signos que neles se apresentam, ou se mantém ocultos, é, com esses signos, identificar, no real, o espírito, a sensibilidade, a experiência que os estimula. Não como o pesquisador que acredita no desvelamento de um significado oculto, mas como o crítico que acredita que “uma boa interpretação de qualquer coisa – um poema, uma pessoa, uma estória, um ritual, uma instituição, uma sociedade – leva-nos ao cerne do que nos propomos interpretar (Pinho, 2015, p. 41)
Desafios para a pesquisa em Cinema
Boas interpretações para o pesquisador, no caso, aquele envolvido com o audiovisual como linguagem de expressão, envolve um vasto campo de pesquisa. O que é a Amazônia? Quantas Amazônias temos para conhecer, revelar, evidenciar e, especialmente, fortalecer, um processo de observação e divulgação do que essa diversidade representa?
Walter Benjamim, escritor e pensador contemporâneo, chama a atenção para essa falta de percepção sobre nuances textuais culturais, numa de suas anotações para seu livro Teoria do Conhecimento, Teoria do progresso sobre as passagens parisienses:
A incapacidade de sentir as nuances mais sutis do texto pode levar o pesquisador a pesquisar com maior atenção os mínimos detalhes nas relações sociais, que subjazem à obra. Ademais, aquele que não tem sensibilidade para as gradações mais sutis pode adquirir, através de uma percepção mais clara do contorno do poema, uma certa superioridade em relação a outros críticos, uma vez que o sentido para nuances nem sempre acompanha o dom da análise (Benjamin, 1940, p. 528).
Ao analisar o pensamento de Benjamim, no contexto amazônida, podemos avaliar que uma percepção clara sobre os universos que existem na região, que sejam percebidos pelo audiovisual com foco na educação, deve manter um distanciamento crítico sobre seus estereótipos e desconstruir a visão distante e pouco envolvida com suas particularidades. Felizmente, algumas alternativas despontam no cenário da produção amazônida, a exemplo dos estudantes no curso de graduação em Cinema da Universidade Federal do Pará (UFPA), os quais têm experimentado alternativas e recursos midiáticos para seus exercícios fílmicos.
Além disso, devem-se evitar reproduzir, repassar narrativas internacionais e nacionais que repitam conceitos e preconceitos que já deveriam ter sido superados, mas que ainda surgem em diversas formas de expressão ou, se trabalhá-los em sala de aula, por exemplo, que o façam de modo a despertar a crítica e o contexto em que foram produzidas. Uma obra de arte deve ter uma riqueza cultural que seja relevante com o tempo de acordo com diversos contextos (históricos, sociais).
Exemplo de uma Amazônia endógena
Por isso que, numa relação que se pense o audiovisual amazônida em paralelo com a educação, a percepção de uma Amazônia com rica diversidade é uma representação contemporânea que pode fazer a diferença diante do que se realizou em outras épocas.
Ao entendermos a arte como conhecimento e num pensamento audiovisual conectado com a educação e o desenvolvimento de um senso amazônida, o filme O Abraço da Serpente9O Abraço da Serpente de Ciro Guerra é baseado nos diários escritos pelos cientistas Theodor Koch-Grunberg e Richard Evan Schultes e foi exibido na seção “Quinzena dos Realizadores” do Festival de Cannes 2015. Foi a primeira produção colombiana a ser indicada ao Oscar de melhor filme estrangeiro., de Ciro Guerra, é relevante.
Lançado internacionalmente em 1916, o filme realizado numa coprodução entre Colômbia, Venezuela e Argentina, nos mostra a trajetória de Théo (Jan Bijvoet), um explorador europeu que conta com a ajuda do xamã Karamakate (Nilbio Torres) para percorrer o rio Amazonas.
Gravemente doente, ele busca uma lendária flor que pode curar sua enfermidade. Quarenta anos depois, a trilha de Théo é seguida por Evan (Brionne Davis), outro explorador que tenta convencer Karamakate a ajudá-lo.
A produção é baseada nos diários de dois exploradores europeus que vagaram pela Amazônia decididos a desvendar seus segredos nos primórdios do século XX. Filmado primorosamente em preto e branco, percebemos a floresta de forma distinta dos padrões da maior parte dos filmes que tiveram este elemento como paisagem de suas narrações.
É uma proposta de outro ponto de vista sobre a natureza e dos povos que vivem e interagem com ela. Na sua construção imagética, o longa-metragem se torna um estudo antropológico, pois, aborda questões importantes como o alcance das missões jesuítas e o preconceito do homem branco em relação aos indígenas. No decorrer do tempo da história, a complexidade e riquezas da selva toma conta dos estrangeiros que, em conflito com os costumes indígenas, entram numa jornada de descoberta da região e de seus habitantes. Estes, considerados selvagens por aqueles.
A proposta narrativa do filme é arrojada. Percebe-se uma atitude diferente da tradição de se registrar histórias indígenas/amazônidas sem consultar, estudar e analisar a região. Além disso, o processo de criação artística do filme se baseia em referências reais da região e não em interpretações estrangeiras que, apesar de muitas vezes bem-intencionadas, não trazerem nenhuma contribuição para as novas configurações que existem hoje na região amazônica após tantas transformações e dificuldades geográficas – estas pelas imensas distâncias – e humanas – pelas (des)configurações estereotipadas atribuídas aos habitantes.
Cinema e os “exóticos”: preconceitos disseminados
Podemos entender que não apenas a região amazônica é percebida de maneira estereotipada. O audiovisual procura, erradamente, em sua maioria, o encantamento da imitação do belo, dos mistérios do desconhecido como elemento de absorção do espectador.
A região africana, por exemplo, em inúmeros filmes americanos dos anos 1930 e 1940, era apresentada quase sempre com personagens, histórias e situações lendárias e/ou miseráveis de pessoas reais que lá habitam, esquecem de suas qualidades, dores, anseios, necessidades humanas, acima das condições geofísicas apenas.
Tais filmes, trazem personagens envolvidos muitas vezes em mistérios sobre tesouros perdidos, animais pré-históricos, pedras preciosas que valiam milhões ou plantas que poderiam curar doenças graves, por exemplo, estes personagens eram explorados para criarem um misticismo e interesse no espectador que assistia a estes filmes com olhar e interesse diferentes em relação às produções urbanas e sobre cotidiano daqueles que moravam em grandes centros.
Com tal estratégia, estas produções tiveram boas bilheterias. Porém, a questão é que este encantamento da imitação de uma vida inventada gera um afastamento da realidade, dos fatos, do que efetivamente existe nesta ou em qualquer região desconhecida, ou seja, não há a noção da alteridade, de se considerar o outro como indivíduo igual ao outro.
O resultado imediato dessas narrativas audiovisuais foi a propagação de um distanciamento e de um pré-conceito sobre as regiões que, por serem consideradas exóticas, na maneira que foram apresentadas, levam o espectador/ a interpretar esses povos como menores em termos de cultura e de humanidade.
Do período enfocado anteriormente, por exemplo, podemos citar um seriado chamado A Deusa de Joba (1936) de B. Reeves Eason e Joseph Kane. Foi o primeiro seriado produzido pela Republic, produtora que marcou a história do cinema com produções independentes chamadas de filmes B, que incluíam, principalmente, faroestes e seriados. Posteriormente, foi responsável por produções mais ambiciosas como Macbeth (1948) de Orson Welles.
A Deusa de Joba mostra a trajetória de Clyde Beaty que parte em uma perigosa jornada à cidade perdida de Joba para salvar a irmã raptada de Baru, uma criança da selva. Ele encontra diversos obstáculos em seu caminho incluindo homens-morcegos que ameaçam Beatty e Baru na Terra Proibida e homens-tigres que poderão talvez mudar seu destino.
O seriado fez muito sucesso nos cinemas e na televisão, marcou diversas gerações de cinemaníacos e revelou uma visão mística encantadora sobre o que poderia existir na misteriosa África, daí a consequente disseminação das impressões apressadas e da falta de conhecimento sobre a região.
Exemplo semelhante do audiovisual, em sua maioria, sobre o nordeste e outras regiões do Brasil, especialmente como já citado, a Amazônia. Olhares estrangeiros foram criados dentro do próprio país que, em determinado período, pela criação do Instituto Nacional de Cinema Educativo, no governo de Getúlio Vargas, tentou aproximar as diferentes e diversas culturas brasileiras com a produção de curtas e médias metragens em documentários para exibição nos cinemas do país, embora estes priorizassem o viés ideológico da presidência e interesses populistas.
O papel do INCE no Brasil
O Instituto Nacional de Cinema Educativo (INCE) (1936-1966) foi um projeto que teve o apoio do Ministério da Educação e Saúde e aprovação do então presidente Getúlio Vargas. Seu principal idealizador e primeiro diretor foi o cientista, antropólogo e professor Edgard Roquette-Pinto (1884-1954)10Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), professor, escritor, antropólogo, etnólogo, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras. É considerado o pai da radiodifusão no Brasil. . O projeto tinha como intuito promover e orientar a utilização do cinema como auxiliar do ensino e servir-se dele como um instrumento voltado para a educação popular.
Um dos maiores colaboradores do INCE, foi o cineasta mineiro Humberto Mauro (1897-1983). Considerado o pai do cinema brasileiro pelo seu pioneirismo e criação artística nos primórdios do cinema nacional, Mauro realizou filmes importantes como Ganga Bruta (1933) e dirigiu mais de 300 documentários de curta-metragem sobre temas variados como astronomia, agricultura e música para o INCE. Entre os títulos mais populares que realizou está A Velha a Fiar (1964).
A Velha a Fiar apresenta música popular homônima cantada pelo Trio Irakitan, baseada numa canção popular, na qual sempre um animal ou ser está criando problemas para o outro. A história mostra uma sequência de imagens e fotos para ilustrar a canção popular.
O curta tem imagens bucólicas da vida rural com bois pastando, a moagem no pilão, os trabalhos do campo e os animais que ajudaram na narrativa da história. De repente, surge a velha na roca a fiar, quando começa a canção tema, cantada pelo Trio Irakitan, que apresenta os eventos nesta sequência.
De alguma maneira, estes trabalhos colaboraram para uma integração da cultura brasileira num período anterior à chegada da televisão. Assistir a estas produções nos cinemas brasileiros, numa época em que existia pouca produção nacional em comparação ao cinema estrangeiro, especialmente o cinema americano, era um ato educativo e de resistência cultural. Filmes como A Velha a Fiar foram exibidos antes de grandes sucessos do cinema estrangeiro e lembraram, para muitos espectadores, sobre a diversidade de um país tão grande como o Brasil.
Audiovisual amazônida
Uma situação semelhante, mas com menos alcance de público, ocorreu com produções regionais amazônidas que procuravam abordar de maneira educativa alguns temas pouco relevantes nacionalmente, mas que tinham significado (com efeitos estaduais e/ou nacionais).
A Vila da Barca de Renato Tapajós11Renato Tapajós é paraense e iniciou sua carreira como jornalista. Em São Paulo, começou a trabalhar com cinema até se envolver na política. merece ser citado. Lançado em 1968, em circuito restrito de exibição, ao contrário dos filmes do INCE, o curta documentário faz um registro crítico sobre a favela construída sobre palafitas em Belém do Pará (1964-65).
A produção ganhou prêmio de melhor documentário no Festival Internacional do Filme de Curta Metragem de Leipzig, Alemanha Oriental, naquele ano. Num período de pouca produção do cinema paraense, o filme se destacou pelo olhar social sobre um tema urgente e provocou uma polêmica necessária.
O audiovisual paraense aparece aqui como meio de denúncia de um fato socialmente questionável e demonstrou a necessidade de se produzir mais trabalhos com este foco dentro de uma produção nacional que, muitas vezes, fica atenta para outras situações, criando um distanciamento entre o espectador e sua realidade.
A televisão, posteriormente, trabalhou com estes e outros temas e cumpriu este papel mesmo que de maneira limitada e diversas vezes sem um olhar mais crítico sobre os assuntos regionais/locais escolhidos.
A produção audiovisual paraense, em anos posteriores, teve poucas condições e recursos financeiros para trabalhar com temas e urgências locais relevantes mas, eventualmente, registrou histórias e personagens próximos do cotidiano local, como por exemplo, o curta de Vicente Cecim12Vicente Cecim (1946-2021), escritor, crítico de cinema e cineasta. , Sombras, de 1977. O filme é uma parábola sobre o exílio da velhice, reflexão sobre o Tempo e a solidão das pessoas idosas nos asilos.
Exibido também em circuito de exibição restrito (como a maioria da produção paraense), Sombras é um símbolo, ao lado de outros poucos títulos da sua época, de um conceito de audiovisual que se importa com a cultura e educação a partir de uma aproximação com um tema tão universal, mas que tem suas particularidades na cidade de Belém do Pará dentro da Amazônia brasileira.
Com estes exemplos, podemos afirmar a necessidade de um audiovisual que seja comprometido com a educação, com a diversidade cultural e um emergente senso amazônida que desperte nos realizadores e espectadores uma nova interpretação sobre o que temos nessa região.
Cinema é obra de arte educativa!
Considerar o Cinema como uma obra de arte educativa é preciso. Uma obra de arte deve iluminar, clarear, abrir novos caminhos. O artista deve arriscar a busca do conhecimento que nos livre da dependência cultural de terceiros. As identificações culturais de nossa região podem ser estimuladas pelo audiovisual que deverá despertar interesse na e pela questão amazônica e, por consequência, teremos outras leituras para maior entendimento dos problemas e universos amazônidas tão ricos quanto a vastidão da flora, da fauna e dos recursos materiais.
Todas as linguagens artísticas podem provocar mais interesse nas questões amazônidas. Não podemos desconsiderar nenhuma linguagem neste processo. Nada é insignificante para o conhecimento da Amazônia.
Com a grande influência das plataformas audiovisuais existentes, é possível que se crie estímulos para o desenvolvimento de mais pesquisas, principalmente, nas escolas, institutos, universidades de maneira mais abrangente e profunda. É necessário alterar paradigmas que limitam o interesse e o estudo para além da curiosidade alegórica desenvolvida em narrativas de imitação e interpretações equivocadas.
Num mundo globalizado, onde a tecnologia é usada como um “cabo de guerra” de influências em diversos sentidos, é importante saber respeitar as culturas para entendermos as diferenças e a questão de uma cultura dominante querer se sobrepor a outra. Somos testemunhas desse mecanismo diariamente, mas é fundamental ainda perceber e valorizar uma busca das identidades amazônidas, cujos traços e especificidades estão próximas de nós e, por vezes, não as notarmos.
E os recursos do audiovisual são essenciais, especialmente o Cinema com sua força e influência bem definidas pelo escritor Jean-Louis Comolli13Jean-Louis Comolli (1941-2022), escritor, editor e diretor de cinema francês. Foi editor-chefe da revista Cahiers du Cinéma, importante publicação sobre cinema, que nos anos 1950, teve participação dos cineastas Jean-Luc Godard e François Truffaut como críticos de cinema. numa palestra sobre Cinema.
Comolli chamou a atenção para o lugar central do espectador. Ou seja, toda criação artística, neste caso, depende da presença do público, os quais, segundo o autor, primam pela visão prática do que veem.
A realização de filmes lançou uma nova luz, um novo olhar sobe a teoria. Nesse domínio do cinema (documentário), particularmente, mas, também, de uma maneira mais geral, a ligação entre a teoria e a prática é essencial. Mas não defino a prática como exclusiva dos realizadores, dos que fazem os filmes, mas também, as práticas dos que veem os filmes, as dos espectadores. Os espectadores, sem que o saibam, têm uma prática de cinema. Dessa prática do espectador, alguns (espectadores), sendo eu um deles, fazem uma teoria. Na minha teoria, na visão que eu tenho de cinema, o lugar do espectador é central. Então eu proponho uma inversão de perspectiva, para não falar de um modo pretensioso – uma nova perspectiva – que seria a de considerar um filme não como é projetado sobre uma tela diante do espectador, mas o que acontece na tela do espectador. O que se chamou de tela mental. Posso citar aqui a frase importante de Serge Daney, que é um grande teórico do cinema francês que trabalhou comigo na revista Cahiers du Cinéma, quando eu era redator-chefe, uma ideia particularmente importante e que é sempre esquecida: pode se projetar um filme em uma sala de cinema vazia, há um projetor, um filme, uma tela, uma sala com cadeiras enfileiradas e há a projeção, mas sem espectador não há cinema. O Cinema se inicia com a presença, pela presença do espectador. O que é chamado de cinema consiste na relação entre o filme projetado e o espectador. O Cinema é uma relação (Vianna Hissa, 2011, p. 98).
Essa prática de cinema dos espectadores, especialmente da Amazônia, deve ser desenvolvida para transformações e entendimento dessa sua relação com o cinema como aliado da educação, a depender das escolhas de quem os trabalha em escolas. Ao incentivar outras leituras sobre a região, é possível que seja criada outra postura dos artistas/realizadores que podem usar várias linguagens para consolidar interesses sobre o tema.
Audiovisual e janelas para (novas) realidades
De acordo com Avelino Aldo de Lima Neto, autor de O Cinema como educação do Olhar, “é preciso encontrar modos de fazer da educação uma sala de cinema, na qual seja possível partilhar esse outro regime de inteligibilidade do real, fundado no visível” (Lima Neto, 2018). Ou seja, é necessário utilizar o audiovisual como meio de revelar-se outras realidades a partir do que se vê no cinema. E, desse modo, será possível motivar novas ações de transformação cultural. Imergir no percurso visual também é tomar atitude. Ver é agir segundo Lima Neto, quem dera que assim o fizéssemos!
Como exemplo, entendemos que as peças publicitárias, na linguagem audiovisual, são importantes para mudanças de paradigmas. Os meios publicitários têm apresentado a Amazônia de forma exótica. É como se rejeitassem uma comunidade nativa presente.
Uma variedade de expressões identitárias, as quais não nascem sozinhas, são construídas por vários meios (escola, família, meio social). Utilizar os meios publicitários como veículos de ideias e valores sobre a Amazônia é ação urgente para aqueles que trabalham esta linguagem audiovisual.
Outro exemplo de ação cultural que poderá surgir pelas linguagens artísticas e que pode ser incentivada pelo conceito de um audiovisual comprometido com a educação e senso amazônida é a arte de periferia, especialmente os experimentos fílmicos, que crescem cada vez mais nas cidades, com mais frequência nas capitais.
Outros modos de produzir arte surgem a partir de expressões de populações mais carentes que encontram na arte da periferia, com diversidade e pluralidade de formas e conteúdo, um meio de expressão do seu inconformismo e revolta contra um sistema político de exclusão, aí a criatividade se impõe e demonstra a que veio.
Com a inclusão de um senso amazônida nas linguagens artísticas criadas pelos realizadores, por meio de conceito educacional e cultural, em poucos anos teremos espectadores mais atentos às estas questões, analisem mais estes temas e procurem outras referências.
Entender que não existe uma cultura superior, mas sim diversa e que, na prática diária, a cultura mundo se impõem sempre como a melhor, transformará o espectador padrão em espectador modelo que saberá ser um agente cultural de sua própria realidade, no nosso caso, a Amazônia.
Referências
Autores:
Marco Antonio Moreira Carvalho tem Graduação em Administração pela Universidade Federal do Pará (1986), Pós-graduação em Marketing (1999) pela Fundação Getúlio Vargas/Ideal, Mestrado em Artes pela Universidade Federal do Pará (2015), Doutorado em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA), foi professor substituto do curso de Cinema da UFPA (Universidade Federal do Pará) e gestor da programação do Cinema Olympia (Belém-Pará). É membro da Academia Paraense de Ciências (APC), presidente da Associação dos Críticos de Cinema do Pará (ACCPA), crítico de cinema do Jornal O Liberal (Revista TROPPO, até 2020. Coluna Cineclube, desde 2021), membro/fundador da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (ABRACCINE) e coordenador-geral do Centro de Estudos de Cinema(CEC). Colaborador do projeto de Pesquisa Memórias da Dramaturgia Amazônida: Construção do Acervo Dramatúrgico. Dramaturgias da Dança e Estudos do Corpo e coordenador do projeto de extensão Acervo de Críticas Cinematográficas. In: Coleção Memórias da Cinefilia Amazônida.
Bene Martins é professora associada da Universidade Federal do Pará. Leciona e pesquisa na Faculdade de Dança e no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGARTES), da UFPA. Mestre em Letras: Linguística e Teoria Literária pela Universidade Federal do Pará (1997), Doutora em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (2004). Pós-doutora em Estudos de Teatro, 2016, Universidade de Lisboa-PT, realizado com apoio UFPA-CAPES. Coordenadora do Projetos de Pesquisa: Memórias da Dramaturgia Amazônida: Construção do Acervo Dramatúrgico. Dramaturgias da Dança e Estudos do Corpo e do projeto de extensão: Acervo de Críticas Cinematográficas. In: Coleção Memórias da Cinefilia Amazônida
Revisão: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón