Na Amazônia, a Mãe de Jesus é de cor: imagens do Círio de Nazaré

Artigo de Márcio Couto destaca como a evolução da representação das múltiplas faces de 'Nazinha' reflete a fé e a identidade amazônica

Imagem original de Nossa Senhora no seu altar na Basílica de Nazaré. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará
Imagem original de Nossa Senhora no seu altar na Basílica de Nazaré. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará
Imagem original de Nossa Senhora no seu altar na Basílica de Nazaré. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará

Imagem original de Nossa Senhora no seu altar na Basílica de Nazaré. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará

O elemento mais importante do Círio de Nazaré é, certamente, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré. É em torno dela que tudo acontece, desde seu suposto achado por Plácido, homem de origem humilde, por volta de 1700, nas proximidades do atual Santuário de Nazaré.

Como em tantas outras devoções católicas, a imagem da santa escolheu se apresentar para um homem do povo, um homem pobre. Plácido levou a imagem para sua humilde palhoça, construindo para ela um pequeno nicho.

Não demorou e a imagem alcançou fama de milagreira. A palhoça de Plácido ficava na então estrada do Utinga, hoje avenida Nazaré. Era uma via de passagem dos que se dirigiam ao Maranhão e dos que saíam do núcleo central de Belém, até então restrito à área da Cidade Velha.

Caçadores, agricultores, comerciantes, indígenas, negros escravizados, todos começaram a fazer uma parada na palhoça de Plácido, a fim de fazer pedidos ou agradecer por graças alcançadas por intervenção de Nossa Senhora de Nazaré.

O movimento de devotos na cabana de Plácido era maior entre os meses de setembro e outubro. E, foi por essa razão que, ao ter a ideia de organizar uma feira de produtos regionais para dinamizar a economia local, o governador Francisco de Souza Coutinho escolheu a data de 8 de setembro de 1793 para sua inauguração. Ele sabia que a presença do público era garantida.

Além da feira, o governador estabeleceu que a pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré seria conduzida, de véspera, ao Palácio do Governo, sendo no dia seguinte reconduzida em procissão para sua igrejinha. Nascia, assim, o Círio de Nazaré, devoção de origem popular, apropriada pelo poder público.

Mão de devota erguida durante a Descida do Glória, quando a imagem original fica mais perto dos fiéis. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará

Mão de devota erguida durante a Descida do Glória, quando a imagem original fica mais perto dos fiéis. Foto: Bruno Carachesti / Agência Pará

No século XIX, os jornais já se referiam à “popular” ou à “popularíssima” Festa de Nazaré. E, já se falava, também, na presença da “multidão” no Círio. Já se dizia que “quase toda a cidade” participou da procissão.

E, tanto naquela época, como hoje, é a imagem de Nossa Senhora de Nazaré que causa todo esse alvoroço, que faz a cidade parar, se movimentar, que faz a economia girar, que faz pairar sob a cidade um clima de solidariedade e fraternidade tal que muitos consideram o Círio “O Natal dos paraenses”.

Em 1879, no contexto de disputas entre a igreja e a maçonaria, o jornal católico A Boa Nova publicou uma matéria atacando os maçons, que supostamente se vangloriavam de ter a posse de “uma imagem que quando aparece na rua faz enlouquecer todo o povo”.

A cena não poderia ser mais atual, a imagem de Nossa Senhora de Nazaré, sempre que sai à rua, “enlouquece” todo o povo. É a figura da mãe, da protetora, da intercessora, da milagreira, da amiga íntima, como sugere o modo carinhoso com que é tratada por muitos devotos: Nazinha. Quando ela sai às ruas, espalha seus efeitos de consagração.

Todos querem vê-la, tocá-la, senti-la perto. É isso que a imagem de Nossa Senhora de Nazaré representa, que ela agencia, que ela movimenta nas ruas de Belém, desde 1793, data do primeiro Círio.

Fato curioso: não importa a forma como a imagem se apresenta. Não importa o tamanho, os traços, as características da imagem. Atualmente, a imagem que está na memória afetiva de todos os paraenses, a que é retratada nos cartazes do Círio, a que visita hospitais e instituições públicas, é a chamada imagem Peregrina. Mas, nem sempre foi assim.

Imagem original de Nossa Senhora de Nazaré durante a Descida do Glória. Foto: David Alves / Ag Pará

Imagem original de Nossa Senhora de Nazaré durante a Descida do Glória. Foto: David Alves / Ag Pará

De 1793 até 1906, a imagem conduzida nas procissões do Círio de Nazaré era a chamada “original”, a que teria sido encontrada por Plácido. Trata-se de uma imagem de madeira, em estilo barroco, de 28 cm de altura.

A imagem “original” representa Nossa Senhora de Nazaré como um senhora portuguesa, branca, com os cabelos caindo sob seu ombro direito. Ela carrega no braço esquerdo o Menino Jesus, despido, sentado, com um globo nas mãos. Aos pés da Virgem, vê-se a cabeça alada de um anjo, símbolo da glória celestial. Essa imagem fica no interior do Santuário de Nazaré, em uma redoma de cristal no alto do altar-mor dessa igreja, chamado de “Glória”.

Desde 1992, a imagem “original” só é retirada do “Glória” duas vezes ao ano, a primeira por ocasião do aniversário do Santuário e a segunda na chamada “Descida do Glória”, na véspera da procissão do Círio. Durante toda a quinzena da Festa se Nazaré, essa imagem fica exposta em uma vitrine de vidro blindado no presbitério, onde pode ser contemplada pelos devotos.

A imagem “original” deixou de ser conduzida na procissão como forma de protegê-la e a Diretoria da Festa de Nazaré passou a utilizar a chamada imagem do Colégio Gentil, que foi conduzida nas procissões entre 1906 e 1968. Até 1968, essas era a imagem de Nossa Senhora de Nazaré que costumava ser estampada nos mais diversos meios de divulgação do Círio.

Observem que essa imagem é bastante diferente da “original”. Nossa Senhora de Nazaré é representada como uma mulher branca, rechonchuda, tem os cabelos para trás, escondidos pelo manto. O Menino Jesus está deitado nos braços de Maria, enrolado por um manto e não segura nada em suas mãos. No pedestal da imagem está escrito: Nazareth.

As três imagens de Nossa Senhora: a original, aexposta no Colégio Gentil e a peregrina, respectivamente. Fotos: Diretoria da Festa de Nazaré. Arte: Glauce Monteiro

As três imagens de Nossa Senhora: a original, aexposta no Colégio Gentil e a peregrina, respectivamente. Fotos: Diretoria da Festa de Nazaré. Arte: Glauce Monteiro

Segundo a pesquisadora Mízar Bonna, a grande diferença entre a imagem do Colégio Gentil e a “original” incomodava o vigário Pe. Miguel Giambelli. Diz Bonna: “a imagem do Gentil era demais diferente da imagem do Plácido. Aparenta uma senhora gorda (de toca envolvendo a cabeça) com um menino Jesus recém nascido deitado ao colo e enquanto a do Plácido nada possui envolvendo a cabeça, somente bela cabeleira que lhe cai no ombro do lado direito. Carrega ao colo um menino de uns dois anos de idade, sentado, sem vestes, com um globo nas mãos”.

Incomodado com essas diferenças, Pe. Giambelli solicitou ao fotógrafo Pedro Pinto que fizesse fotografias da imagem “original”, coloridas, sem manto e as enviou para a Itália, a fim de se fazer uma cópia que substituísse a imagem do Colégio Gentil. Surgiu, assim, a chamada imagem Peregrina, que tem sido conduzida em todas as procissões da Festa de Nazaré até os dias de hoje.

Seguindo Mízar Bonna, “o rosto do menino Deus desgastado, um loirinho europeu, nos trouxe na imagem nova, um rostinho de garoto amazônida, com forte cabeleira escura, olhos empapuçados, nariz redondinho. E nossa Senhora, pele morena e feições um pouco mais bonitas do que o da imagem do Plácido, assim como parecendo mais jovem, mais perto da idade que Nossa Senhora tinha quando Jesus estava com dois anos, a Senhora-Jovem de Nazaré”.

Costuma-se dizer que a imagem Peregrina é uma réplica da imagem “original”, mas basta observar as duas imagens para ver que elas são diferentes entre si, como aponta Mízar Bonna, apesar de que ela mesma diz que é “a imagem quase cópia perfeita da autêntica do Plácido”.

Imagem peregrina. Foto: Foto: Rodrigo Pinheiro / Ag.Pará

Imagem peregrina. Foto: Foto: Rodrigo Pinheiro / Ag.Pará

A partir de 1969, a imagem Peregrina passou a ocupar o lugar da imagem do Colégio Gentil nos meios de divulgação do Círio de Nazaré, especialmente nos cartazes que divulgam a Festa de Nazaré. Atualmente, é a imagem Peregrina que está no imaginário dos devotos como a representação maior de Nossa Senhora de Nazaré.

Segundo o Pe. Luciano Branbilla, a igreja solicitou que, nessa imagem, Maria e Jesus tivessem os traços das mulheres e dos meninos da Amazônia. Notem os traços indígenas de Maria e do Menino Jesus, que segura o globo. Durante a chamada Missa do Mandato, cerimônia que abre oficialmente o Círio, em fins de agosto, milhares de cópias da imagem Peregrina são distribuídas para serem utilizadas nas peregrinações que percorrem os lares das famílias de devotos.

Matéria publicada no jornal A Província do Pará, em 1971, dizia que “alguns que acompanham o Círio de ano para ano notaram a diferença na troca das imagens, porém para a maioria, o fato passou desapercebido”.

Assim, o que se percebe é que, mais do que a imagem, o que importa para os devotos é o que ela representa: transcendência e fé. Várias imagens, diferentes representações de Maria e seu filho Jesus. Imagens que contam parte significativa da história da Amazônia, de sua ligação com o português colonizador, do modo como os devotos da região se apropriaram da devoção e da relação afetuosa de grande parte dos paraenses com sua “Nazinha”.

Um relato de Mízar Bonna nos ajuda a compreender a força do simbolismo desse enegrecimento da imagem de Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará. Diz ela que, certa vez, sua cozinheira, chamada Eudóxia, “preta da carapinha bem curtinha”, foi visitá-la na igreja de Nazaré por ocasião da decoração da berlinda. A imagem “original” da santa estava exposta no nicho em que seria contemplada pelos devotos durante a quinzena da festa.

Ao ver a imagem de pertinho, Eudóxia afirmou: “’Gostei, Mízar, eu vi com os meus olhos que a Mãe de Jesus é de cor’. E saiu feliz e rindo (na verdade a imagem escurecida com o tempo dava impressão de morena jambo)”.

De acordo com o vocabulário racial típico daquela época, costumava-se diluir a identidade negra em expressões como “morena” ou “morena jambo”.

O fato é que Eudóxia, “preta da carapinha bem curtinha”, preta de cabelos crespos, ao se deparar com a imagem “original” escurecida pela ação do tempo, logo se identificou: “eu vi com os meus olhos que a Mãe de Jesus é de cor”. Certamente se identificou, também, com a negritude da imagem Peregrina. A Maria negra da tradição foi embranquecida em Portugal e enegrecida/indianizada em Belém do Pará. Na Amazônia, a Mãe de Jesus é de cor.

Na próxima publicação da Série sobre o Círio de Nazaré vamos conhecer mais sobre a história do Círio e como vindo do “além mar” e com raizes européias, o Círio e  a Nossa Senhora de Nazaré se amazonizaram no Brasil.

Texto: Márcio Couto
Revisão: Glauce Monteiro
Arte: Glauce Monteiro
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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