Olho d’Água: Do milagre ao carnaval devoto, o Círio que se amazonizou
No nono episódio do podcast, mergulhamos com o antropólogo Aldrin Figueiredo na trajetória do Círio de Nazaré, da sua origem europeia até sua transformação na identidade amazônica


Círio de Nazaré. Foto: Setur-PA. Arte: Fabrício Vinhas
Muito antes de milhões seguirem Nossa Senhora de Nazaré, em Belém do Pará, no que é conhecida como a maior festa religiosa da Amazônia, a Santa já era “Milagrosa” do outro lado do Oceano. O Círio de Nazaré tem suas raízes em outro Círio, mais antigo, que começou em Portugal e foi se “amazonizando” por aqui ao longo de séculos.
O ano era 1182 quando Dom Fuas Roupinho, um nobre português que administrava o castelo de Porto de Mós, no centro do país, encontrou um pequeno, mas precioso, tesouro enterrado.
Reza a lenda que ele estava caçando no litoral num dia de neblina espessa, quando começou a perseguir um animal selvagem e, de repente, se viu à beira de uma falésia. Naquele lugar, tinha uma gruta onde se venerava a Virgem Maria, e no último segundo, antes de cair no abismo, rezou, em voz alta: Senhora, Valei-me! De imediato, seu cavalo parou. A morte certa, evitada.
A história não para por aí. Dom Fuas desmontou e desceu à gruta para agradecer o milagre e, lá dentro, encontrou um cofre de marfim com uma figura de Virgem Maria amamentando o Menino Jesus. Junto à imagem, um pergaminho contava como ela tinha sido venerada desde os primeiros tempos do Cristianismo em Nazaré, cidade em Israel, berço da religião.
A lenda se espalhou rápido por Portugal e se integrou à cultura local quando o rei Dom Fernando, em 1377, mandou construir um grande templo, o Santuário de Nossa Senhora da Nazaré, onde a escultura que o Dom Fuas encontrou repousa até hoje. O culto a ela ficou incrustado na história do país, especialmente junto à monarquia portuguesa.
Apesar desse mito ter ficado menos famoso depois da história da aparição de Nossa Senhora de Fátima, em 1917, ganhar visibilidade; todos os anos, desde o século 14, os portugueses fazem romarias no mês de setembro em direção ao santuário na vila de Nazaré.
Se esse ritual parece familiar, é porque ele é mesmo. A colonização portuguesa é um dos motivos porque, desde 1793, o Círio de Nazaré é celebrado todos os anos em Belém do Pará.
Com mais de 300 anos de tradição, o Círio acompanhou as mudanças que ocorreram no mundo e na Amazônia e, talvez, por isso mesmo tenha se fortalecido a cada edição. Para além da herança de Portugal, essa festa virou sinônimo de uma identidade amazônica em eterna construção. Elementos da cultura indígena, cabocla e afrobrasileira na região se sobrepuseram à tradição católica, e transformaram o evento numa outra coisa. Algo único e especial.
O próximo Círio de Nazaré está chegando. No dia 13 de outubro, mais de dois milhões de pessoas vão sair pelas ruas de Belém durante a grande romaria. Para entender como o culto à Nossa Senhora migrou do interior de Portugal para vir definir o que é ser amazônida nos dias de hoje, a gente precisa recuperar a cronologia dessa história.
Quem vai ajudar a contar essa trajetória é o Aldrin Figueiredo. Ele é historiador, especialista em antropologia social e, desde 1991, é professor da Universidade Federal do Pará.
A gente pode dizer que o Círio testemunhou a própria história da Amazônia. É uma festa colonial e colonizadora, como o próprio cristianismo, o próprio catolicismo. Porém, ela teve esse momento de passagem. Hoje a gente pode dizer que o Círio é decolonial. Ele também é descolonizado. Hoje eu acho que o Círio já nem é mais propriamente uma festa católica. O Círio é uma festa da cultura amazônica.
Você está ouvindo o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o nono episódio completo:
Pra quem não sabe, o termo “círio” vem do latim e significa “vela grande”. Isso tem a ver com o fato de que tudo começou, lá do outro lado do Oceano Atlântico, como um evento noturno, numa época em que não existia energia elétrica.
No começo, também eram círios, no plural, porque várias romarias simultâneas iam em direção à vila de Nazaré de todas as partes de Portugal, reunindo centenas de pessoas. Pode parecer pouco, comparado à quantidade de gente que enche as ruas de Belém hoje, mas pra época, era bastante gente.
O ritual virou o Círio, no singular mesmo, e com C maiúsculo, aqui no Brasil, no século XVIII. Foram os padres da Companhia de Jesus, os famosos jesuítas, com laços íntimos com as tradições portuguesas e que tiveram um papel importante na colonização da Amazônia, que introduziram o culto à Senhora da Nazaré no Pará.
Mas dizer que o Círio foi “importado” seria um claro equívoco. Porque, por aqui, a história do Círio só começou mesmo quando a gente ganhou a nossa própria lenda.
Mais de 500 anos depois do Dom Fuas encontrar aquelas relíquias na gruta em Porto de Mós, um caboclo descendente de portugueses e de índios andava beirando o igarapé Murutucu, em Belém. O nome dele era Plácido e o ano era 1700.
Entre as pedras cobertas de lodo, ele achou uma pequena estátua de Nossa Senhora de Nazaré, com 28 centímetros, entalhada em madeira e um pouco deteriorada. Era uma réplica da que estava no santuário em Portugal. O moço ficou encantado. Ele levou a figura pra casa e improvisou pra ela um altar.
Aí é que o negócio começa a ficar místico. A lenda conta que, inexplicavelmente, a estátua voltou pro local onde ela tinha sido encontrada. Uma vez, duas vezes, três vezes. Até que o Plácido interpretou o fato como um sinal divino de que “Nossa Senhora” queria ficar onde foi encontrada e decidiu erguer sozinho uma capelinha do lado do igarapé.
A história não demorou pra se espalhar e logo habitantes da região começaram a visitar a capela que o Plácido construiu. Até o governador da Capitania do Grão-Pará, Francisco de Souza Coutinho, ficou sabendo. Ele usou sua autoridade pra transferir a estátua pra capela do muito pomposo Palácio da Cidade, onde era vigiada por guardas.
Adivinha? Ela desapareceu e voltou lá pra capelinha construída pelo Plácido.
Isso ficou conhecido como o “milagre do retorno”, o principal feito místico pelo qual a imagem é conhecida.
E foi com esse retorno da estatueta pra capela que a devoção ganhou caráter oficial. Alguns anos depois, o bispo de Belém do Pará, João Evangelista Pereira da Silva, fez de Nossa Senhora de Nazaré a padroeira da cidade.
E, em 1793, o governador Francisco, com autorização do Papa Pio VI, fez uma grande feira com produtos agrícolas vindos das várias regiões da capitania, com cortejo, autoridades políticas e militares, e uma multidão de devotos estimada entre 5 e 10 mil pessoas.
Era o primeiro Círio de Nazaré. Aqui, o professor Aldrin Figueiredo pondera sobre o avanço ágil dessa devoção na Amazônia.
Se a gente chorar aqui, a grosso modo, tem quase 150 anos de devoção no estado. É muito tempo, é bastante tempo para uma devoção se estruturar numa cidade que é colonial, é menor. O governador pega essa devoção, ele vê que é uma devoção que já tem força, e ele, inclusive, muito provavelmente, incorpora essa devoção. Então, não é uma coisa que foi só criada do nada.
Não foi criada Do nada, e também não foi criada No nada. A festa nunca existiu, nem poderia existir, afastada da realidade.
Por causa disso, de lá pra cá, se uma série de rituais e símbolos continuaram os mesmos, vários também foram atualizados – como a imponente Basílica de Nazaré que foi construída bem no lugar onde ficava a igrejinha do caboclo Plácido – e um monte de coisa mudou também, crescendo como o próprio Círio.
Aquela escultura do achado do Plácido ainda tá guardada na Basílica de Nazaré, e só desce do altar duas vezes por ano: em maio, na comemoração do mês mariano, dedicado à devoção à Virgem Maria, em outubro, durante o Círio. É um ritual chamado de “descida do Glória”. Uma chance para os fiéis se aproximarem um pouco da imagem original, conhecida como a “imagem do achado”.
Mas não é ela que desfila por Belém.
De 1920 a 1968 uma segunda imagem começou a ser usada nas procissões. A ideia era garantir a preservação da “original”. Não há registros sobre a origem dessa segunda imagem, apenas sabe-se que ela é esculpida em gesso e pertence às irmãs do Colégio Gentil. Além disso, tem características diferentes da “imagem do achado” o que, com o tempo, começou a incomodar os fiéis.
Foi então, encomendada uma terceira estatueta. Uma “Imagem peregrina”, maior, mais parecida com a original e que deveria ser usada durante as romarias. A nova imagem foi esculpida na cidade de Ortisei, norte da Itália, no fim dos anos 1960, pelo escultor Vincenzo Giacomo Mussner. A demanda veio do padre Alfredo Brambilla, um italiano que na época era pároco de Nazaré, em Belém do Pará.
Só que a primeira versão da estatueta desagradou e nem chegou a ir às ruas. Tinha alguma coisa errada na composição do rosto, nas proporções do manto e, além disso, estava muito europeia, entre outras críticas. A versão foi doada para outro Círio paraense em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré: A procissão, realizada na cidade de Bragança, no interior do Pará, que ocorre até hoje. Então, mandaram fazer uma outra versão da imagem.
A pedido do padre Alfredo, aquele artista italiano então esculpiu o rosto da santa com características amazônicas, incluindo aí cabelos ondulados e olhos puxados. E, o rosto do menino Jesus, com traços indígenas. O Aldrin resumiu a história assim:
Essa imagem que veio, a última que está aí, é uma imagem mais cabocla, é uma mulher morena, muito mais amazônica. Quer dizer, a própria imagem foi se acaboclando.
Era a Amazônia se impondo à tradição herdada dos colonizadores.
Além do próprio aspecto físico da santa, a dimensão puramente católica da festa também foi desafiada, de forma orgânica, ao longo dos anos. No universo afrobrasileiro, por exemplo, Nossa Senhora de Nazaré foi diretamente associada ao orixá Oxum. Além de as duas figuras usarem as cores branco e dourado e estarem com uma coroa, ambas são mulheres, mães e Rainhas das Águas Doces.
A cultura paraense, em particular, foi muito influenciada pelo culto dos voduns, uma tradição que veio da corte de Daomé, no norte da África, onde hoje fica o país chamado Benin. Ela é diferente da tradição nagô, da Bahia, que veio da Costa da Mina, região onde fica hoje a Nigéria.
No culto dos voduns, Nazaré é associada à princesa encantada africana Sinhá Abê, que a lenda conta ter ficado encantada com a imagem da Virgem. No dia do Círio, essa princesa é homenageada nas casas de tambor de mina, uma religião afrobrasileira nascida no Maranhão e muito praticada em Belém.
Então, você vai ver no Círio muitas pessoas vestidas com as suas roupas rituais do candomblé nagô, dessa tradição baiana ou alagoana, pernambucana, porque é um orixá Oxum, e também com o tambor de mina, porque vai ligar, ou com Oxum, ou com Sinhá Abê, com essas tradições africanas. Então tem toda uma leitura. É a mãe. É a Pachamama, que está nos indígenas, é a terra. Então, é uma festa que ultrapassa essa dimensão católica.
Quer dizer, aos poucos, a festa não foi só se abrasileirando, mas se amazonizando.
Uma outra mudança importante, que também tem a ver com a imposição do popular ao religioso, foi a introdução gradual de novos símbolos ao ritual.
Nas primeiras edições do Círio de Nazaré, a imagem da santa desfilava nas mãos do governador da capitania do Grão-Pará, e depois nas mãos do capelão. Foi só em meados dos anos 1800 que ela passou a ser transportada sozinha, instalada e protegida dentro de uma berlinda sobre uma espécie de veículo com rodas, em uma estrutura semelhante a uma liteira, ou carruagem, toda ornamentada com flores.
Durante o Círio, Nossa Senhora de Nazaré recebe status de chefe de estado, por isso, não surpreende que “A rainha da Amazônia” tenha passado a ser transportada num veículo inventado para a monarquia.
Mas, em Belém, um outro símbolo surgiu e se fortaleceu associado a um aspecto totalmente diferente da devoção mariana. Nossa Senhora de Nazaré é “Mãe” e o que a liga aos seus filhos durante as procissões é a corda.
Não uma corda qualquer. Com 400 metros de comprimento e aproximadamente 700 quilos, a corda começou a ser usada no Círio em 1855, quando, após uma enchente na Baía do Guajará, parte do trajeto da procissão ficou alagado, atolando a carruagem que conduzia a Berlinda de Nossa Senhora. o Círio parou. Nem a força dos cavalos era capaz de “fazer a romaria andar”
Um comerciante local cedeu uma corda que foi atrelada à carruagem e, os fiéis puxaram a corda para conduzir a Imagem de Nazaré pelas ruas. O plano deu certo. A estrutura “desatolou”. A romaria seguiu em frente, mas desde aquele ano, o Círio nunca mais saiu sem a corda. Os devotos passaram a sustentar e guiar a caminhada da imagem da Santa. A conexão entre eles e “A mãe dos paraenses” nunca mais poderia ser rompida.
Hoje, “ir na corda” é considerado um dos maiores atos de fé e devoção à Virgem Maria. Além disso, após o fim das procissões, pegar e levar para casa um pedaço da corda é considerado um dos principais momentos do Círio.
A corda é como as fitas, ela está atrelada à berlinda. Então, se ela está atrelada à berlinda, pegar ali é como pegar algo que liga aquela imagem que é considerada sagrada. Em latim chama potentia, potência. Aqui, ele tem potência. E a imagem está ali, presentia, presença e potência. Se a gente puder pensar aqui, simbolicamente, é isso que ocorre. E isso é fundamental na devoção, no catolicismo, que é a relação que você tem com aquele objeto de culto, aquela imagem, porque ela se liga a um cordão umbilical com os santos que estão no céu, de certo modo.
O Aldrin me contou que essas várias potências, esses vários símbolos, vão sendo incluídos como parte da devoção, mas é a devoção que extrapola o campo da religião e invade o campo da cultura e da arte. Em outras palavras, compartilhar a experiência do Círio, segundo ele, faz as pessoas se sentirem mais amazônicas.
Ao longo do tempo, o Círio foi quebrando as amarras do controle eclesiástico, se misturando com as culturas indígena, cabocla e afrobrasileira e virando um fenômeno típico amazônico. Nas palavras do romancista paraense Dalcídio Jurandir, virou um “carnaval devoto”, em que o simbólico e o físico andam de mãos dadas.
Para além das procissões, outros eventos também ocorrem de forma paralela, ligados à devoção, mas apropriando-se de outros aspectos artísticos e culturais da região. O cortejo musical e teatral do Auto do Círio; a procissão cultural do Arraial do Pavulagem e a celebração da comunidade LGBTQIA+ na Festa da Chiquita se incorporaram ao calendário do Círio de Nazaré, à revelia de questões religiosas.
Isso porque, no Círio, o sagrado e o profano não são opostos, mas coexistem. Tem reza, mas também tem muito suor, lágrimas e calor humano; tem festa e celebração; pedidos e agradecimentos; dor, sacrifício e milagre; um mar de cheiros – maniçoba, pato no tucupi, tacacá – e, talvez mais importante, o sentimento de congregação, de “fazer parte” de algo maior, único e importante.
Um espetáculo ímpar transmitido ao vivo para os paraenses desde que a televisão surgiu na Amazônia em 1961.
Essa mistura com raízes tão antigas e que se atualiza sempre, marcada por manifestações culturais e identitárias, é que torna o Círio de Nazaré especial.
Aqueles mais de 2 milhões de pessoas que, todos os anos, saem em romaria e aquelas centenas de milhares que assistem tudo isso ao vivo durante a transmissão pelas emissoras de televisão e via redes sociais sentem algo que não pode ser descrito.
Aqui, o Aldrin, mais uma vez:
Pois é, o Círio é aquela procissão, aquela devoção que abala ateus. Eu digo assim, porque abala ateus? Porque, de fato, tem uma presença de uma energia, dois milhões de pessoas… com todos os sentidos de corporais de suor, de choro de alegria, de êxtase. Não tem como não ficar tocado. Porque você se toca com muitos aspectos, com as pessoas, com a humanidade, com a sensação, parece que está passando um filme na sua própria vida, ao ver as pessoas, não é só propriamente a devoção, é muito complexo. Quer dizer, na verdade, a devoção está associada ao devoto, à pessoa que gosta daquilo. Ela é aderente. É uma devoção que se retroalimenta. Ela se reatualiza. Não adianta. Ela está sempre se reatualizando.
Bem que a Igreja tentou tomar as rédeas da situação. No século XIX, o bispo Dom Macedo Costa quis extinguir o Círio porque achava que o ritual tinha sido corrompido. Tinha ficado parecido demais com coisas que ele considerava incultas e pecaminosas, como as celebrações brâmanes na Índia ou bacanais romanas, em homenagem ao deus do vinho e dos excessos.
Mas o povo não quis nem saber. Invadiram a Basílica de Nazaré, tiraram a imagem de lá e fizeram o Círio sem a presença do bispo. Dom Macedo não via, mas já era evidente: a Amazônia tomou o evento para si. E a cada ano, o Círio de Nazaré se fortalece como parte indissociável da identidade Amazônica.
Produção, roteiro, locução e edição sonora: Amanda Péchy
Revisão: Glauce Monteiro
Montagem da página: Alice Palmeira
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón