Disputa por terras na Amazônia: Operação na Fazenda Mutamba deixa dois mortos e reacende alerta sobre violência
Movimentos sociais comparam ação da polícia a massacres anteriores e pedem investigações sobre abusos e tortura


Operação policial na Fazenda Mutamba. Foto: Agência Pará
Cerca de 18 trabalhadores se encontravam dormindo em redes em um barracão coletivo, dois deles já estavam acordados preparando um café, quando foram surpreendidos com os gritos dos policiais “perdeu, perdeu”, seguido de rajadas de tiros. No desespero e na escuridão, cada um tentou escapar como pôde dos tiros. O resultado foram dois mortos, vários feridos a bala e quatro presos”.
O relato é da Nota Pública assinada por sete instituições que atuam na Amazônia e conhecem bem os conflitos ligados à ocupação de terras na região, entre elas a Comissão Pastoral da Terra, o Instituto Zé Cláudio e Maria e o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST).
Os movimentos sociais denunciam a violência de uma operação policial deflagrada no dia 11 de outubro na Fazenda Mutamba, em Marabá, sudeste do Pará. Além de cumprir mandados de prisão, busca e apreensão, a ação também ratificou o roteiro sangrento que permeia a luta por terras na Amazônia.
A Operação Fortis Status começou nas primeiras horas da manhã de uma sexta-feira, conduzida pela Delegacia Especializada de Combate a Conflitos Agrários (DECA). De acordo com a Polícia Civil:
As equipes policiais foram recebidas a tiros por um grupo de 13 homens fortemente armados, desencadeando um confronto. Quatro suspeitos foram presos em flagrante, enquanto dois vieram a óbito. Sete criminosos conseguiram fugir, levando armas de fogo”.

Adão Rodrigues é uma das vítimas da Operação Fortis Status. Ele tinha cinco filhos. Foto: Instituto Zé Cláudio e Maria
Vinte quatro horas depois, na madrugada do dia 12, a Ouvidoria Agrária Nacional do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) chegou à Marabá. O objetivo era ouvir vítimas e testemunhas da operação para esclarecer o que aconteceu na área.
Na mesma semana, a Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) pediu providências urgentes para garantir uma investigação minuciosa e imparcial sobre o caso. Segundo a Alepa:
Um relatório do Departamento de Mediação e Conciliação de Conflitos Agrários (DEMCA) do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) indica que a ação policial teria sido desproporcional, com disparos letais sendo feitos contra trabalhadores que estavam dormindo no momento da operação” e “O relatório do DEMCA aponta ainda que a ordem judicial de busca foi genérica e indiscriminada, o que poderia configurar violação de direitos fundamentais”.
Na moção, o deputado Carlos Bordalo (PT) solicita que a Secretaria de Segurança Pública (Segup), o Ministério Público Federal, a Polícia Federal e o Conselho Nacional de Direitos Humanos trabalhem de forma articulada para esclarecer os fatos ocorridos na Fazenda.
O objetivo é assegurar que a operação policial, que ocorreu durante uma ocupação em terras disputadas entre fazendeiros e trabalhadores rurais, seja investigada de maneira rigorosa, evitando possíveis violações de direitos humanos.
O Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento para acompanhar as medidas adotads pelas instituições de segurança pública e de controle da atividade policial diante das mortes de trabalhadores rurais ocorridas na operação policial.

Trabalhadores rurais mostram ferimentos após operação policial. Fotos: Imagens Instituto Zé Cláudio e Maria
Desproporcional?
As intervenções ocorreram após vários movimentos sociais contestarem a versão oficial apontando controvérsias da ação e acusando a operação de ter sido uma ação premeditada contra os trabalhadores rurais que ocupam a Fazenda Mutamba.
A Nota Pública assegura que quem estava nos barracões no momento da chegada dos agentes de segurança, não tinha nenhuma possibilidade de defesa e chama a operação de farsa, salientando a desproporcionalidade entre os supostos crimes dos alvos da operação, o aparato usado na ação policial e o material efetivamente apreendido com os trabalhadores rurais.
“O discurso […] é que se tratava de uma organização criminosa fortemente armada, envolvida em venda ilegal de madeira, roubo de gado e outros crimes. O resultado da operação, que envolveu dezenas de policiais, várias viaturas, dois helicópteros, foi a apreensão apenas de 7 espingardas cartucheiras e algumas munições. Nenhuma arma pesada, nenhuma motosserra, nenhum caminhão de madeira, nenhum gado roubado, nada mais”.

Apenas sete espingardas e algumas munições foram encontradas, e nenhum dos trabalhadores mortos ou detidos possuía mandados de prisão. Foto: Agência Pará
O documento destaca ainda que “dos quatro trabalhadores presos, nenhum deles tinha mandado de prisão e só um tinha condenação pela justiça. Os dois mortos também não tinham prisões decretadas e nem passagem pela polícia. Ou seja, a operação, nessa perspectiva, foi uma farsa. Não estamos dizendo que não tenha, entre os ocupantes, pessoas envolvidas em algum tipo de crime, mas, essas pessoas têm que ser presas conforme a lei determina e não executadas”.
“Surpreendidos com rajadas de tiros naquela hora da madrugada e na escuridão, não houve qualquer chance de se defenderem, mesmo que tivessem um arsenal de armas”, aponta a nota.
Além das mortes de Edson Silva e Silva e Adão Rodrigues de Sousa – este último deixa órfãos cinco filhos -, várias pessoas ficaram feridas e quatro foram presas. Ainda segundo os depoimentos, os detidos escaparam da morte porque, durante a chegada da polícia, se atiraram ao chão com as mãos na cabeça.
Exames de corpo e delito realizados no Insituto Médico Legal (IML) corroboram as denúncias de tortura, o que levou o juiz que presidiu a audiência de custódia a encaminhar os casos para a corregedoria da Polícia Civil.
A denúncia compara o que aconteceu em Marabá com o massacre de Pau D’Arco, em 2017, onde dez trabalhadores foram assassinados em circunstâncias semelhantes. “A operação criminosa chefiada pelo delegado Mororó teve o mesmo modus operandi”, afirmam as entidades, que acusam o delegado de estar a serviço de latifundiários da região.
“Essa denúncia será encaminhada ao Governador do Estado, ao Procurador Geral do Ministério Público, aos Ministros da Justiça e da Reforma Agrária. Ficaremos no aguardo de respostas concretas”, asseguram as organizações.

Além das mortes, várias pessoas ficaram feridas e quatro foram presas na Fazenda Mutamba. Foto: Agência Pará
O que diz o delegado?
Em entrevista à Amazônia Latitude, o delegado Antonio Mororó deu sua versão sobre os fatos e classificou a nota dos movimentos sociais como inverídica. “A nota é totalmente vazia e falaciosa, não condiz com a verdade”, afirmou.
Segundo ele, a operação visava desmantelar um grupo armado que estaria aterrorizando colonos e funcionários da fazenda, e as ações policiais foram respaldadas por provas documentais e testemunhais.
Ainda de acordo com o titular da DECA, durante a ação, as forças de segurança apreenderam armamentos, munição e outros materiais, incluindo equipamentos militares.
O delegado destacou que, entre os quatro presos em flagrante, dois permaneceram em silêncio, enquanto os outros dois, assistidos por advogados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), confirmaram a presença de um grupo armado no local.
Mororó afirmou ainda que cerca de 12 a 18 homens teriam atirado contra os policiais durante a abordagem. Ele enfatizou que as versões apresentadas pelos interrogados contradizem alegações de que a polícia teria agido de forma violenta.
“As declarações de testemunhas indicam que esse grupo armado estava impondo terror e tomando terras de colonos”, explicou. Ele ainda disse que há registro de práticas de violência por parte do grupo, incluindo ameaças e intimidações contra trabalhadores da fazenda, além de um episódio em que homens armados teriam cercado e constrangido um funcionário.
As investigações, segundo o delegado, contaram com o apoio do Ministério Público, que reconheceu a gravidade da situação. “Estamos falando de um estado paralelo, onde a violência e o medo eram impostos aos colonos”, pontuou.
O titular da DECA comentou sobre as repercussões da operação e as reações de algumas instituições, que levantaram suspeitas sobre a condução das investigações. “Essas alegações de tortura e execução não se sustentam. Os presos foram levados vivos e todos os procedimentos seguiram a legalidade”.

Fazenda com 12 mil hectares atualmente é ocupada por cerca de 200 famílias agrupadas em três associações rurais. Foto: Divulgação/CPT
Disputa pela posse de Terra na Fazenda Mutamba
O clima de insegurança na Fazenda Mutamba não é recente. A propriedade já foi palco de inúmeras disputas e operações policiais ao longo dos anos. O local é considerado uma área valiosa por ser muito propícia à exploração de madeira.
No entanto, o conflito agrário na região tem se intensificado, com registros de violência, destruição de propriedades e ameaças a trabalhadores. Já houve relatos de incêndios em pontes e ataques com pneus em chamas, além de depredação tanto na sede da fazenda quanto nos acampamentos.
Por outro lado, as decisões da Vara Agrária de Marabá e a falta de fiscalização adequada durante operações policiais têm levantado questionamentos sobre a imparcialidade e eficácia da Justiça na proteção de trabalhadores rurais.
Em março deste ano, o juiz da Vara Agrária de Marabá, Amarildo José Mazutti, declarou que a posse da Fazenda Mutamba pertencia à família Mutran, determinando que os membros das associações rurais Terra Prometida e Balão III e IV desocupassem a propriedade.
No local com mais de 12 mil hectares atualmente vivem cerca de 200 famílias sem-terra agrupadas nas três associações que permanecem na área porque, em maio deste ano, uma decisão do ministro Cristiano Zanin, do Supremo Tribunal Federal, suspendeu a ordem de reintegração de posse até então favorável à família Mutran.
Os Mutran são uma oligarquia sírio-libanesa que começou a se instalar em Marabá a partir da década de 1920, como intermediários das principais firmas aviadoras da região. Com o passar dos anos, logo a família se tornou uma grande arrendatária de terra e não demoraram a exercer forte influência política no cotidiano da cidade.
No período conhecido como “Ciclo da Castanha”, por volta dos anos 1950, os Mutran já exerciam um papel de hegemonia nessa atividade econômica, possuindo grandes castanhais sob sua propriedade e controlando a produção, compra, transporte e exportação da castanha-do-Pará. Bené Mutran, um dos patriarcas, chegou a ser conhecido como o ‘rei da castanha’.
Atualmente, os remanescentes da família concentram suas atividades na pecuária e em empresas de diversos segmentos pela região. Na política, vários exerceram cargos públicos. Nagib Mutran Neto chegou a ser prefeito de Marabá (1989-1992) e, depois, vereador por dois mandatos. Sua viúva, Cristina Mutran, ainda tem mandato vigente na Câmara Municipal de Marabá.

Dias após a Operação, movimentos sociais distribuíram cestas básicas aos assentados na Fazenda Mutamba, ainda abalados pela ação policial. Foto: Instituto Zé Cláudio e Maria
Terra Sangrenta
Nos últimos anos, organizações de defesa dos direitos humanos têm observado uma crescente nos conflitos agrários por todo o país. Segundo dados do relatório “Conflitos no Campo 2023”, elaborado pela CPT, só no ano passado, foram 2.203 conflitos no campo no Brasil.
Este é o maior número já registrado desde que o levantamento começou a ser feito pela entidade, em 1985.
Em 2022, as reintegrações de posse de imóveis rurais quase triplicaram e os atos violentos também aumentaram. Grileiros e empresários seguem figurando como os maiores autores dessas violências, mas as agressões e agressões efetuadas por agentes de segurança pública dos governos estaduais mais que dobraram.
O Pará, lamentavelmente, ocupa a posição de destaque no ranking de conflitos agrários e é considerado o estado mais violento da região, com 226 casos registrados. Em seguida, aparecem o Maranhão, com 206 casos; e Rondônia, com 186.
Ainda de acordo com o relatório da CPT, a região Norte é onde estão concentrados os maiores números deste tipo de conflito. No total, foram 810 ocorrências em 2023.

O conflito agrário na região tem se intensificado, com registros de violência, destruição de propriedades e ameaças a trabalhadores. Foto: Agência Pará
Texto: Tay Marquioro
Revisão e edição: Glauce Monteiro
Montagem da Página e acabamento: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón