Amazônia nas margens: favelas, comunidades urbanas e a COP30
Com mais da metade da população vivendo em favelas, Belém se prepara para a COP30 entre contradições, promessas e o apagamento das periferias


Rua alagada em Belém com banner de protesto e ponte provisória feita por moradores. Foto: Oswaldo Forte / Amazônia Latitude.
Eu moro em um lugar que enche quando chove. Por esse motivo não me sinto integrado ao restante da cidade”
O desabafo é de Bozo Cardoso, membro da Central Única das Favelas do Pará (CUFA-PA), representante e morador do bairro do Paar, que fica na cidade de Ananindeua, a segunda mais populosa da Região Metrpolitana de Belém. Na área que será sede da Conferência das Nações (COP) mais da metade da população vive como Bozo: em favelas do maior glomerado urbano paraense.
A palavra soa estranho aos ouvidos de quem sempre se viu como morador da baixada, mas apenas mais recentemente passou a se reconhecer como habitante de uma favela em Belém. Os números também parecem “novidade”, mas não são.
A sede da COP30 é a quarta capital em número de favelas do país, porém, essa constatação só se tornou mais clara no último Censo populacional feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2022. Foi quando as áreas que não têm acesso a serviços e concentram populações de baixa renda na Amazônia começaram a ser chamadas de favelas.
O que são favelas?
A formação das favelas no Brasil é fruto de um contexto social marcado pela migração, pela ausência de acesso a serviços essenciais e pela a falta de investimentos em infraestrutura.
Por todo o país, a urbanização acelerada e a falta de políticas públicas habitacionais ao longo do século XX intensificaram esse fenômeno. Grandes contingentes populacionais, expulsos do campo pelo êxodo rural, ou das próprias cidades pelo alto custo de vida, ocuparam terrenos desvalorizados e muitas vezes de risco. Sem alternativa formal de moradia, construíram suas casas em áreas sujeitas a alagamentos, encostas instáveis ou terrenos desprovidos de saneamento.
O resultado desse processo é evidente nos números do Censo 2022: o Brasil possui 12.348 favelas e comunidades urbanas, espalhadas por 656 municípios, onde vivem 16.390.815 pessoas—o equivalente a 8,1% da população nacional.
O IBGE define favelas e comunidades urbanas como assentamentos com infraestrutura precária, irregularidade fundiária e urbanística e concentração de populações de baixa renda. Mas, essa nomenclatura é recente. Até 2024, o órgão utilizava o termo “aglomerado subnormal”, um rótulo que carregava o tabu da ilegalidade.
Então, todo mundo estava ali, era ilegal. Então, o pessoal da Defesa Pública teve mais contato nessas questões da luta pela terra, pelos direitos, das propriedades. Eles buscaram mostrar isso para a gente, porque eles não eram pessoas ilegais. Eles tinham a sua posse e aquela posse tinha que ser respeitada de alguma maneira.”, explica Regivaldo Villar, chefe da Sessão Integrada de Informação do IBGE .
A mudança busca reconhecer a complexidade social desses territórios, onde o direito à moradia e à cidade é historicamente negado, mas segue sendo reivindicado.

Mapa da localização das favelas e comunidades urbanas no Brasil. Fonte: Censo Demográfico 2022 / IBGE.
Às margens da Amazônia
Diferente do sudeste, onde as elites evitaram os morros e se concentraram nas praias, na Amazônia, as favelas se desenvolveram nos rios, moldadas pela geografia e pela cultura da região.
De acordo com o Censo de 2022, a região norte conta com 1.438 favelas distribuídas em 93 municípios, abrigando 1.952.562 pessoas – o que equivale a 11,6% do total de brasileiros vivendo em favelas e comunidades urbanas, representando 10,2% da população da própria região. Nesse cenário, estados como Amazonas (34,7%), Amapá (24,4%) e Pará (18,8%) lideram as estatísticas, evidenciando que uma parcela significativa de suas populações vive em condições precárias.
Isso, para o arquiteto, urbanista e professor da Universidade Federal do Pará, Juliano Ximenes, é um reflexo da invisibilização do Norte dentro do contexto nacional, que também impacta no processo de surgimento das favelas e comunidades urbanas na região.
Somos tratados como periferia do Brasil, nosso contingente populacional proporcionalmente menor e nossa densidade demográfica menor não são fatores vistos como particularidades nossas que as políticas urbanas deveriam reconhecer e compensar. Ao contrário, fatores como esses, particularidades nossas, são vistos como supostos motivos para que recebamos menos recursos na distribuição concentrada do orçamento brasileiro, não observando e nem reconhecendo que, por termos distâncias maiores e sem investimento em transportes e comunicações, há óbvio encarecimento em nossos processos econômicos e a desigualdade se aprofunda.”, critica Juliano.
No Pará, foram identificadas 723 favelas distribuídas em 43 municípios, abrigando 1.523.601 residentes—o equivalente a 18,8% da população estadual. Em relação a números absolutos, é o quarto estado do Brasil com o maior número de favelas e comunidades urbanas e o maior do norte. Das 20 maiores favelas do estado, 18 estão localizadas em Belém. A cidade concentra a maioria dessas áreas, com 214 favelas e comunidades urbanas, onde vivem 745.140 pessoas.
Para a criação dessas comunidades, o histórico urbano de Belém tem mais de um momento responsável pela criação das comunidades urbanas na cidade.
Nossas áreas urbanas habitacionalmente precárias datam pelo menos de meados dos anos 1800, com o encortiçamento de parte do casario da cidade e as chamadas choupanas, ou da década de 1930, dada a velocidade do processo de modernização brasileiro no Estado Novo e sua consequente concentração de riquezas tal como ocorreu aqui na Região Norte.”, explica o professor.
Segundo ele, nas décadas de 1960 e 1970, a integração da região Norte ao restante do país, impulsionada pelo desenvolvimentismo da ditadura militar, acelerou a migração campo-cidade. Esse fenômeno resultou na formação de um proletariado urbano empobrecido e na expansão das favelas em áreas alagáveis próximas ao centro econômico da cidade.
O arquiteto explica que as favelas de Belém podem ser classificadas em três categorias principais. As baixadas surgiram nas primeiras décadas do século XX, localizadas em áreas inundáveis próximas ao centro e ocupadas por migrantes pobres do interior. Já as ocupações, que se expandiram principalmente nos anos 1980, encontram-se em territórios mais afastados, muitas vezes em terrenos também alagados e sem infraestrutura. Por fim, as ocupações de conversão, iniciadas nas décadas de 1990 e 2000, localizam-se em antigas áreas rurais que se tornaram urbanas, caracterizando-se pela infraestrutura precária e, em alguns casos, pela presença de atividades ilegais.
Belém nunca se viu como uma cidade isolada, mas sempre como um polo regional que atrai populações do interior do estado e da Amazônia como um todo. Essa dinâmica acelerou o crescimento periférico, sem um planejamento que desse conta da chegada constante de novas populações. O resultado disso é um padrão de urbanização fragmentado, onde a infraestrutura sempre chegou antes para os bairros mais centrais e as elites, deixando as áreas populares em um estado de precariedade permanente.”, resume.
Atualmente, a concentração urbana de Belém, incluindo os municípios vizinhos de Ananindeua, Marituba e Benevides, abriga cerca de 1,9 milhão de habitantes. Destes, 57,1% residem em favelas e comunidades urbanas, sendo a capital brasileira com maior proporção de moradores em favelas, enfrentando desafios estruturais, sem a garantia de moradia digna e acesso a serviços essenciais.
Os desafios das periferias belenenses
Um dos moradores que conhece bem os desafios estruturais das periferias de Belém é Bozo Cardoso, membro da Central Única das Favelas do Pará (CUFA-PA), representante e morador do bairro do Paar. O bairro, cujo nome vem da palavra indígena para “arrozal”, é localizado no município de Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, em uma área que, nos anos 90, chegou a ser considerada a maior área de ocupação da América Latina. Nessa época, Bozo chegou com sua família: “Eu e a minha família moramos no bairro do Paar, há 34 anos, chegamos aqui no início da ocupação”.
Segundo ele, na parte central do bairro, que é um dos mais populosos de Ananindeua, ficam as feiras e comércios, e por isso, tem uma estrutura urbana melhor. Mas, no entorno é onde ficam os problemas: “[…] Em nosso caso, onde moramos, falta saneamento, asfaltamento, coleta de lixo regular e o atendimento à saúde é muito precário. Eu moro em um lugar que enche quando chove. Por esse motivo não me sinto integrado ao restante da cidade.”
Para o morador, o poder público trata a comunidade “simplesmente como celeiro de votos”, realizando promessas em época eleitoral que raramente se traduzem em ações efetivas.

Bairro do Paar, em Ananindeua, Região Metropolitana de Belém. Foto: Bozo Cardoso / Arquivo Pessoal.
Além dessas, Juliano aponta ainda mais problemáticas enfrentadas nas periferias da cidade:
O Estado não priorizou os Planos Diretores de Água e de Esgoto da Região Metropolitana de Belém, que estão prontos, precisando de atualização e de investimentos, em uma cidade que praticamente não tem tratamento de esgoto. Na Região Metropolitana temos mais de um terço da população sem acesso à água tratada. É uma calamidade. As intervenções viárias, se articulam a Região Metropolitana de Belém, estão produzindo desmatamento, perda de fauna, impactos ambientais negativos severos, e induzindo a mais ocupação precária. Então devemos cobrar criticamente dos poderes a responsabilidade pelas prioridades que elegeram sem consulta pública.[…] Outro grande desafio local é lutar contra a privatização da Companhia de Saneamento do Pará, a COSANPA, processo que o Governo do Estado já iniciou, com leilão marcado para abril de 2025, e que ameaça com muita restrição às populações mais pobres e que não têm acesso a água e esgoto.”
Para piorar a ameaça da privatização, além do possível aumento nas taxas para os mais pobres, existe a possibilidade do serviço demorar ainda mais a chegar para quem ainda não tem acesso a ele. No caso do Pará, aproximadamente 20% dos domicílios ocupados no Estado do Pará estão situados em favelas e comunidades urbanas, e somente 53,6% desses domicílios possuem ligação à rede geral de serviços de água.
O futuro das favelas
Agora, em um ano onde a cidade vai receber o maior evento ambiental do mundo, cria-se a questão: qual o reflexo disso para as favelas e comunidades urbanas da cidade? Para Bozo, existe uma pequena expectativa de ver algum eco da Conferência das Nações (COP) próximo a sua realidade: “Eu espero que a COP30 deixe um legado de obras e serviços para as comunidades da periferia. E não só para o centro de Belém, pois as grandes obras estão na capital de fato. Mas onde precisa chegar mesmo esses investimentos é na periferia onde as problemáticas são constantes.”
No entanto, até o momento, para o morador, os efeitos da COP só tem se mostrado negativos: “Hoje, aqui na periferia, estão cortando árvores das praças para colocar bloco de concreto. O que vai de encontro a proposta da Cop 30 que é a preservação do meio ambiente. Os Rios estão secando depois das obras, não é esse legado que eu quero. Hoje, a falta de incentivo à cultura, esporte, saúde e saneamento estão aqui na periferia.
Juliano também concorda que a crítica popular de que o evento será apenas voltado para a parte rica da cidade seja pertinente. Mas ele acredita que o debate precisa ir além disso:
Se formos falar em um horizonte temporal mais imediato seria a COP30 e seus investimentos no caráter de um megaevento a grande ameaça aos movimentos sociais de luta pela moradia e pelo direito à cidade, hoje, em Belém. Há tendência de dinâmicas de valorização imobiliária sem políticas de defesa da moradia digna para populações vulneráveis em geral, empobrecidas, negras, de mulheres, da comunidade LGBT, indígenas, quilombolas etc. Isso provoca remoção pela via do mercado, um processo muito perverso. Além de impactos imobiliários decorrentes de algumas obras da COP30 (principalmente do Governo do Estado), os desafios estão em pautar no Ministério das Cidades o debate real, concreto, diário, da política urbana no Brasil.”, detalha o urbanista.
Segundo ele, o governo deslocou a prioridade de pautas populares, reivindicadas pela população por meio de consultas públicas, como o Mercado de São Braz, a macrodrenagem do Mata-Fome e Paracuri e a reurbanização do entorno do igarapé São Joaquim, que já estavam no planejamento para dar início à obras e intervenções da COP30, que não tem a mesma urgência e utilidade para o povo, periférico ou metropolitano.
Com a perspectiva de melhora em mente, Juliano entende que a urbanização das favelas é prioritária:
Belém é uma das metrópoles brasileiras mais precárias que temos, então uma de nossas prioridades deveria ser a urbanização dessas favelas e comunidades urbanas para que elas possam alojar as populações moradoras em condições dignas. Isso é mais prioritário do que a construção de milhares de unidades habitacionais em conjuntos isolados da dinâmica urbana, do emprego, da oportunidade de sobrevivência e de renda.”
Com tantos desafios pela frente, Bozo acredita que a transformação virá pela força da mobilização popular, que tem sido a sua base para buscar uma vida melhor para aqueles que vivem à margem:”
Hoje, temos muito orgulho de dizer que moramos no bairro do Paar, que se desenvolveu e cresceu muito graças à união comunitária. Os moradores e líderes sociais se juntaram e foram em busca ativa de melhorias junto ao poder público. Muitas batalhas foram travadas, e o nosso bairro é historicamente conhecido por sua militância social. Ainda há muito a ser feito.”
Texto e Montagem da Página: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón