Conto de Sandra Godinho: Infâmia
Conto de Sandra Godinho revela a trajetória de um jovem moldado por Dona Jovelina, que tirou sua vida ainda em vida e o transformou em um atirador violento


Capa de “Infâmia”, conto de Sandra Godinho. Arte: Alice Palmeira / Amazônia Latitude.
Não mexa com meus penduricalhos, não ande rebolando pela casa, não mexa com as meninas em hora de trabalho, não beba – homem que bebe não presta pra nada -, não se intrometa nos assuntos de cama, não se pinte, esqueça os estojos de maquiagem que ganhou, não me deixe passar vergonha nem me arrepender de ter pegado um moleque como você pra acabar de criar. E não ande de enxerimento com freguês, basta o favor que lhe fiz para que conseguisse a ararinha azul e que, no fim, você acabou libertando. Moleque desmiolado. Não me atente e nem me faça arrepender de ter te acolhido. Não, não, não.
Dona Jovelina era carne de pescoço, não sossegou até me transformar em segurança da casa, protetor das meninas e me proibir de todo o resto: maquiar, pintar as unhas, rebolar, flertar ou cantar. Me tirou a vida ainda em vida. Meteu-me um trabuco na mão, o Colt de cano longo, calibre 45 e cabo de madrepérola, que tirou da gaveta da penteadeira e me pesava na consciência antes mesmo de atingir a carne. Fez-me treinar a pontaria, me ensinou a postura, a posição para a boa mira, segurar a respiração, ajeitar o dedo no gatilho com a segurança dos grandes atiradores. Não pense, só aponte para o alvo. Alvos. Os primeiros foram os jacus que ciscavam pelo terreiro no fundo da casa. Os porcos e as galinhas vieram em seguida. Os jacarés depois, em pesca de candeio à noite, quando os olhos brilhavam feito estrelas chamando malefício. Eu apontava bem no meio delas, sem a piedade que tinha quando se tratava dos passarinhos. Ela insistia no treino. Tanto apuro da mira que, em pouco tempo, já não perdia nenhum tiro, nem o coração descompassava depois de outro ter parado de bater. Com o tempo, vai acabar pegando o jeito. Foi verdade, tomei gosto e tino.
Até as meninas deixaram de ter saliências comigo, já nem me zoavam durante as refeições. Não éramos mais iguais e não digo isso apenas por causa dos braceletes, brincos e colares dourados que deixei de usar, tampouco por causa dos vestidos espalhafatosos e do batom carmim abandonados no canto do quarto. Havia um animal desconhecido crescendo dentro de mim, uma aura sombreada que avolumava em importância, silenciando as bocas alheias quando eu passava ao largo. Não havia mais risinhos femininos ao pé do ouvido, café batizado com alguma erva, pé bobo me fazendo tropeçar. Nem mesmo um olhar enviesado. Deixaram de me puxar os cabelos e freguês já não me exigia um boquete enquanto esperava as garotas se desocuparem. O cheiro da putaria persistia dentro do flutuante, mas agora a tapioca era oferecida a meu gosto. O cabo prateado, cintilando na cintura enquanto os beberetes aconteciam no salão, impunha respeito quando eu atravessava e as cunhantãs colavam o olhar ao chão. Como nos garimpos, eu, o novato, o bravo, desconhecedor de tudo, passei a manso, acostumado e sabedor do ofício, o monstro exposto. Atrevi-me diante de homens rançosos e mulheres adestradas às camas. Agora tinham medo de mim. As pilhérias pararam, mais medo do que respeito, e tudo seguia bem nesse novo estar até que o cheiro de aves silvestres me tocou as narinas outra vez.
O traficante tinha voltado. Também o perigo do raso que sobra da estupidez. Bastou um segundo de lembrança para me fazer surgir a frieza, aquela fundada no medo. Do azedume dele, antecipando a presença do homem que traficava animais silvestres, se impregnando em mim e me asfixiando. A memória daquele menino que fui um dia, desejando uma ararinha azul, acuado no quarto e encurralado junto a uma janela. O desejo me obrigou a ceder pelas margens. Foi pelas margens que me perdi, que adquiri futuro e consciência.
O homem entrou e ficou ali, escorado no batente da porta, olhando para mim, para onde eu já não existia, ou existia de outra forma. E foi se achegando ao balcão como quem é dono do mundo, pedindo uma bebida forte, um uísque caramelo no riso amarelado de dentes cobertos de ouro, faiscando um sorriso frio. Fiz-lhe sinal para que me seguisse, porta afora, puteiro fora, vergonha afora. Um sinal seco na memória úmida, um chamado para os arbustos na beirada do rio que o atiçou. Eu seguia à frente, direcionando o caminho, afastando as ramagens com a mão, trilhando uma trilha conhecida.
Filho do Boto, és agora um homem criado querendo posar de macho? Entendo que não queira se amostrar como o veado que sempre foi. Não quer perder o respeito, então vire-se logo que me ajeito. Tava com saudades, sabia? E logo desceu-me a mão pelo peito, coxas e membro. O homem não viu a arma, tampouco notou quando o tiro o atingiu, tombando feito pedra, o buraco obscuro por onde morremos, onde se plantam raízes, onde escavamos os ossos, terra para além da terra, onde se fecha o ciclo de vontades que alguém algum dia teve. Um buraco no membro do homem que não merecia enterro, indigno desse pedaço de chão. Empurrei o corpo para dentro d´água para que a correnteza o levasse, levasse essa fome antiga de vingança latindo dentro de mim.
Essa lembrança empedrada na alma nunca mais me causaria surpresa. Tão ruim quanto a que tive com dona Jovelina, no dia que abri a gaveta de sua cômoda à guisa de curiosidade, em busca de penduricalhos para as orelhas e descobri o papel com minha assinatura no fundo, encoberto pelas quinquilharias, dando-me o título de proprietário de sítio, de terras que ela tinha grilado, legalizado a frio e a suborno em algum cartório. A velha me tinha tão pouco apreço que nem percebeu quando aprendi a ler. Ao menos isso, o traficante de animais serviu. Tremi ao ver o recibo da venda das madeiras nobres. Levei pouco tempo para descobrir o restante, o espólio das terras que ela preparava para vender com papel timbrado e muita frieza. A mulher era insensível, pedra e concreto armado.
Então me lembrei das nascentes e do rio encolhendo, tão roto quanto meu corpo sem rumo. Um Filho do Boto como eu precisava do rio para trazer Luara de volta. Foi ali, no próprio quarto, que Jovelina tombou, os olhos abertos e já sem nada ver. A mira feita na cabeça, bem no meio dos olhos, já que nela não havia coração.
Sandra Godinho é graduada e mestre em Letras. É membro da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Com Orelha lavada, infância roubada (2018), recebeu Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019), e com Verso do reverso (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Seu romance Tocaia do Norte (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. Outra obra sua, A morte é a promessa de algum fim, recebeu o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, Memórias de uma mulher morta e A Secura dos ossos.
Montagem de página e acabamento: Alice Palmeira
Revisão: Glauce Monteiro
Direção: Marcos Colón