Olho d’Água: Saberes ancestrais e a ciência da floresta
No décimo primeiro episódio do Olho d’Água, exploramos como a ciência indígena e o conhecimento ancestral podem transformar as estratégias de conservação da Amazônia


A utilização milenar do Jenipapo como tintura corporal é mais um exemplo dos saberes ancestrais indígenas
que podem ser aplicados na ciência moderna. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude. Foto: Alexandre Moraes / Amazônia Latitude.
Você já ouviu falar em ciência indígena?
A palavra “ciência” costuma evocar imagens de laboratórios, microscópios, experimentos rigorosamente controlados. Mas a Amazônia tem sido cuidada e manejada há milênios por povos que desenvolveram métodos de conservação baseados na observação da natureza e na interação com os espíritos que habitam a floresta.
A ciência ocidental tem sido lenta para reconhecer esse conhecimento. E agora, enquanto o planeta enfrenta uma crise climática sem precedentes, cientistas começam a perceber que o caminho para preservar a Amazônia pode depender exatamente desse saber ancestral.
Recentemente, um grupo de pesquisadores publicou um artigo inovador na revista Science, defendendo que a conservação da floresta deve integrar o conhecimento indígena com a ciência ocidental. O trabalho é resultado de dois anos de diálogo entre cientistas indígenas e pesquisadores de universidades do Brasil e dos Estados Unidos.
Entre os autores está Justino Rezende, acadêmico indígena do povo Utã pino pona-Tuyuka, padre e pesquisador, que une saberes tradicionais e metodologias acadêmicas. Neste episódio, a gente vai conversar com ele para explorar o que significa essa integração entre diferentes formas de conhecimento e por que ela é essencial para o futuro da floresta.
Eu penso assim, com o meu pensamento pequeno, como dizia o indígena Waiwai, sozinho penso pequeno, dizia ele. Se a gente pensar junto, esse pensamento pode aumentar. Ele dizia assim, para dizer que juntos podemos pensar melhor. Eu penso que com a divulgação desse nosso conhecimento, mais pessoas falando, mais pessoas divulgando, eu penso que vai criar outra consciência cósmica, outra consciência que precisa ser feita para estancar a ferida de exploração. Penso que na política pública poderia ser isso, criar uma consciência política maior, quem sabe internacional.
Você está ouvindo o Olho d’Água, podcast produzido pela Amazônia Latitude e que propõe um mergulho nos assuntos profundos da maior floresta do mundo.
Ouça abaixo o nono episódio completo:
Não existe um conceito definitivo do que são os conhecimentos indígenas. Dá pra gente dizer que eles são as teorias e práticas desenvolvidas por vários desses povos na tentativa de entender o mundo, a partir das suas interações com a natureza.
Há mais de 12 mil anos as populações originárias da Amazônia, por exemplo, têm construído seu corpo de conhecimentos sobre a dinâmica da floresta. Os laboratórios indígenas são atividades e conversas diárias e cerimoniais em que os especialistas transmitem conhecimento válido dentro de suas próprias comunidades.
A ciência indígena que nós aprofundamos tentando fazer uma equivalência linguística para fazer a sociedade não indígena entender é de que os nossos conhecimentos também são elaborados por pessoas especialistas que se especializaram em diversas áreas de conhecimentos, os territórios, como compreendem as árvores, frutas, ciclos de vida, ciclos de constelações, enchente dos rios, época de secas, quais são os seres que aparecem em cada ciclo de vida, como se trata cada ciclo de vida da pessoa. Então, cada apreensão, cada ciclo dessas vidas foram exigindo dos nossos antepassados fórmulas de cuidados da vida. E deram muito certo.
O artigo publicado na Science, o primeiro na prestigiada revista a ter autores indígenas brasileiros, propõe um novo modelo de ciência integrada. O exemplo que os pesquisadores apresentam é das teorias e práticas de povos indígenas do Alto Rio Negro, na Amazônia.
Para essas populações, o mundo pode ser organizado em três domínios: terrestre, aéreo e aquático. Na floresta, os caminhos que os humanos percorrem também são percorridos por animais, pelo vento e pela água. No artigo, os pesquisadores falam inclusive em “humanos” e “outros humanos”.
Existem milhares de seres vivos que, com suas linguagens, procuram dialogar, conversar, nos entender também. Nós que não entendemos muito as linguagens cósmicas.
Por causa disso, certas restrições e prescrições devem ser seguidas para garantir uma boa relação entre todos os seres envolvidos.
Justino e seus colegas identificaram três princípios fundamentais dos povos indígenas do Alto Rio Negro que podem transformar a forma como pensamos a conservação:
A rede cosmopolítica, que envolve a relação entre humanos e outros participantes do ecossistema, como animais, rios e espíritos da floresta.
Práticas e processos para manter essa rede funcionando, como os rituais, as restrições de caça e os períodos de regeneração.
A percepção dos ciclos da natureza, que seguem os ritmos da Terra e das constelações.
Para os povos do Alto Rio Negro, o mundo é um corpo formado por partes que se complementam e dão origem a novas vidas, sempre em transformação e movimento.
Onde nós pisamos, onde nós moramos, tem uma estreita relação com o mundo aéreo, que é onde estão o sol, a lua, as estrelas. Isso também faz parte da nossa mitologia, da história de nossas origens, que se fala que os trovões são nossos avós. Um dos avós nossos, o trovão, que se transformou depois em uma cobra grande, trouxe os povos da família linguística tukano-oriental no seu ventre, passando por diversos lugares. Por isso que esse mundo aéreo, que é composto por chuvas, nuvens, trovões, relâmpagos, eles têm uma influência muito grande com o mundo nosso humano, né?
A ideia central é a seguinte: fazer um monitoramento colaborativo, baseado no conhecimento indígena dos domínios aéreo, terrestre e aquático, ajuda a compreender tanto as dinâmicas mais amplas dos ambientes naturais quanto as específicas. Fora que pode facilitar a identificação de sinais de aviso que permitem respostas adaptativas, sem interromper o funcionamento sustentável dos ecossistemas.
A visão indígena desafia a ideia de que a Amazônia é uma “natureza intocada”. Pelo contrário: os povos indígenas sempre interagiram com a floresta de forma ativa e cuidadosa.
A tese aqui é que, ao se afastar da perspectiva colonialista que enquadra a natureza como intocada e desabitada, os esforços para conservar e restaurar ecossistemas podem ser mais holísticos e eficazes.
Justino e seus colegas propõem que o conhecimento indígena seja reconhecido nos seus próprios termos, sem precisar da validação da ciência ocidental. Mas isso exige mudanças profundas na forma como a academia e os órgãos de conservação operam.
Os conhecimentos indígenas têm uma série de diferenças em relação ao conhecimento científico. Diferente da ciência ocidental, por exemplo, não há distinção entre o mundo natural e o mundo da cultura. O artigo ressalta que os seres humanos não são tratados como “agentes excepcionais separados dos ecossistemas”.
O enquadramento indígena também captura variáveis e relações ecológicas sutis, que costumam ser negligenciadas por muitas ciências ocidentais tradicionais. Aqui, mais uma vez, o Justino:
Existem pessoas das ciências ocidentais que são muito de mente aberta para poder compreender que o outro povo também tem suas ciências, e tem aqueles que têm uma visão mais dura, né, da ciência, e que não aceitam outra forma de elaboração da ciência. Com esses é mais difícil, né? E o que mais se tem proporcionado o diálogo atual são as mudanças atuais também do mundo, transformação do desequilíbrio ecológico que vai causando diversos problemas em todos os continentes. Então se busca diversas explicações por que está acontecendo isso. E uma das explicações pode estar a partir dos conhecimentos indígenas, o que os indígenas têm a contribuir para a compreensão do mundo atual.
No entanto, a visão antropocêntrica e utilitarista da natureza ainda prevalece. A conservação ambiental geralmente trata a floresta como um objeto de estudo, ignorando sua dimensão espiritual e as relações entre humanos e outros seres.
O Justino descreveu essa compreensão de mundo utilitarista, em que o humano e o outro humano não são vistos da mesma forma, como permissiva demais. O que não é humano não tem conhecimentos, sentimentos, não sente dores, nem alegria, nem frustração. Não se revolta. Então, pode ser explorado.
Já os indígenas, tendo outra relação com o território, com as árvores, com as águas, entendem que é preciso ter cuidado com os outros humanos. Até pedem permissão para viajar em certos rios, porque eles têm donos, tem avós. Podem desconfiar das intenções de quem os atravessa, e nessa desconfiança podem atacar e matar.
Ainda que as ações de conservação promovam o valor da biodiversidade, elas não costumam levar em conta práticas pré-existentes e relações históricas entre humanos e outras espécies, como na concepção indígena da natureza.
A palavra ciência, ela é muito definida, né, pela sociedade acadêmica, ciência aquilo que já passou pelas pesquisas, comprovações, resultados, e os nossos conhecimentos não entram nesse critério, por isso que muitas vezes não se aceita os conhecimentos indígenas, mesmo que elas tenham passado por milênios, anos de vida prática, dando resultados positivos, garantindo a sustentabilidade da vida física, humana, psicológica, com suas práticas de vida, também de garantir a sustentabilidade ecológica de pesca, caça, cultivo, e não se aceitou ou não se aceita ainda como ciência indígena. Então, nossa busca era fazer esse diálogo, que também nossos conhecimentos indígenas podem ser considerados ciência.
Só na Amazônia, 27% do território é formado por terras indígenas, habitadas por mais de 410 povos indígenas que vivem na região. Estudos que são citados no artigo na Science mostram que terras indígenas conservam pelo menos um terço da vegetação nativa, previnem a degradação e o desmatamento e protegem espécies ameaçadas.
Esses padrões refletem o fato de que muitos povos têm uma relação com o território e os ecossistemas diferente de sociedades ocidentais. E não é que os pesquisadores estão defendendo, então, que povos originários precisam ocupar uma área para protegê-la, mas que sua ciência pode se espalhar em colaboração com a ocidental – na verdade, ela já está em muitos lugares que não imaginamos.
A grande questão que eu vejo é que o território indígena não é somente onde os indígenas estão vivendo, é onde os indígenas já passaram também. Porque na nossa compreensão, por onde nós passamos, aí estão também os nossos antepassados vivendo, cuidando desses territórios. E os seres que vivem conosco, os pássaros, os animais, eles têm uma ligação muito próxima também. Parece que eles acompanham também. Então, a vegetação cultivada, as capoeiras que falamos, capoeiras, antigas localidades, continuam sendo nossas casas. Por isso que, embora estando situados em determinados lugares, nós acabamos sendo habitantes de diversos territórios.
Os conhecimentos indígenas, nesse sentido, podem contribuir para: expandir o conhecimento ecológico científico ocidental, melhorar as avaliações e a conservação da biodiversidade e contribuir para a educação ambiental e a formulação de políticas.
Para os povos indígenas, não há separação entre ciência e espiritualidade. A relação com o mundo natural envolve respeito e comunicação com os outros seres que habitam a floresta.
Além dos humanos e outros humanos, os domínios do mundo são habitados pelos “encantados”, que existiam antes mesmo dos humanos — e só podem ser acessados por pajés.
Especialistas indígenas, geralmente xamãs ou pajés, se comunicam e gerenciam essas relações nos domínios terrestre, aquático e aéreo. Eles entendem os modos de comunicação e relações de outros seres para realizar práticas que facilitem a manutenção de um ambiente saudável para a coexistência.
A briga maior entre grupos é justamente porque eu sou padre. Eu também navego um pouco no mundo xamânico dos meus avós, às vezes faço cura de algumas doenças. A pergunta principal era que se o nosso pensamento indígena não estava caindo no mundo da religião, da crença, ou no mundo da espiritualidade. Depois, procurando explicar o sentido, como nós estávamos entendendo isso, eu dizia que também a espiritualidade, da questão cerimonial, de danças, de músicas, ela contém forças que vão proteger as pessoas, que vão trazer benefícios para esse patamar, que lança também a proteção daqui, desse patamar, para o mundo aéreo, para o mundo aquático. Então, você assim, a espiritualidade não poderia estar fora do mundo da ciência, porque existe a ciência e não a ciência como se fosse uma moeda. Ele tem dupla face, o mundo da materialidade e o mundo imaterial. Para a ciência, parece que a ciência é no mundo material. Então, eles excluem a imaterialidade ou a espiritualidade ou outra coisa. Então, na minha compreensão, as duas faces são importantes.
Não é um argumento para a incorporação de crenças religiosas na prática científica. Mas sim uma defesa de que as teorias e práticas indígenas, que têm apoiado o manejo do ecossistema amazônico por milênios, podem ser características centrais de uma ciência eficaz de conservação e restauração. E é especialmente oportuna no contexto de um novo arcabouço ético e legal que vem surgindo para defender os direitos da natureza.
Além disso, os indígenas estão inovando dentro e fora da floresta. Centros de medicina indígena, escolas bilíngues e novos espaços acadêmicos estão criando pontes entre os saberes ancestrais e o mundo contemporâneo.
Os povos indígenas, com o passar dos tempos, foram se afastando dos próprios conhecimentos. Então, a educação escolar indígena, hoje se fala muito isso, pode ser um canal de transmissão de conhecimentos originários e ao mesmo tempo educar-se para aprender a cuidar do mundo atual, que o mundo atual não é mais como nossos avós viviam. Por exemplo, aqui em Manaus, nós como estudantes de antropologia, iniciamos um centro chamado de Bacê. Os indígenas podem contribuir também com a saúde pública. Podem também servir para assessorias, formação de médicos, de enfermeiras, além de especialistas atuarem como aqueles que vão também curando as doenças, pessoas que buscam esse centro de medicina.
O Justino me contou que seu avô, certa vez, ao perceber seu avanço nos estudos, disse: “no futuro, vocês não serão mais como nós, vão ficar como os brancos”. Essa profecia quase se concretizou, mas aí vieram garantias, como a Constituição de 1988, para dizer que os povos indígenas têm direito a escolas próprias específicas. Depois vieram os cursos de magistérios indígenas, licenciaturas, e os indígenas foram aprofundando e retomando os conhecimentos dos seus avós.
O mundo não é mais o mesmo. Foi uma perda. Mas também houve ganhos.
A gente conseguiu, está conseguindo, reconstituir as histórias dos nossos avós e organizando aqueles conhecimentos que a gente ainda consegue recuperar. Isso que pode, agora como cientistas, vamos dizer, nós podemos nos tornar pontes de diálogo também com outros cientistas.
O futuro da Amazônia não depende apenas de tecnologia e políticas públicas. Ele depende de ouvir aqueles que há séculos protegem essa floresta.
Produção: Revista Amazônia Latitude e Rádio Web UFPA
Roteiro e locução: Amanda Péchy
Edição Sonora: Rádio Web UFPA
Revisão: Glauce Monteiro
Montagem da página: Alice Palmeira
Arte e montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón