A poeira da hipocrisia: o PL da devastação e o fim da floresta
Sanção do PL nº 2159/2021 expõe fragilidade do governo e descompromisso com o meio ambiente


Papai Noel chega de helicoptero para entregar presentes em Altamira (2025). Foto: Juliana Carvalho/Amazônia Latitude.
A imagem registrada em dezembro de 2015 em Altamira, no Pará, mostra um helicóptero pousando para a entrega de presentes de natal para os moradores do município. A ação da Norte Energia, empresa que detém a concessão da Hidrelétrica Belo Monte, ilustra de forma clara o chamado “desenvolvimento” chegando a galope, enquanto a população come poeira, na expectativa de ganhar migalhas do grande lucro de políticos e empreiteiros.
Outro, entre tantos fatos, que chamou atenção naquela época, foi uma chacina que antecedeu minha chegada à cidade. Ainda no aeroporto, fui comunicada sobre o silencioso toque de recolher. Tempos difíceis, nos quais a violência é fruto de escolhas onde o lucro é mais importante que a vida.
A sanção do PL da Devastação, que aconteceu nesta sexta-feira, 08, mesmo com vetos, impõe às populações tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, a poeira da hipocrisia. As covas abertas pelo retrocesso se preparam para engolir florestas inteiras enquanto a fumaça das queimadas e a lama do garimpo invadem nossas narinas e pulmões.
O veto ao licenciamento autodeclaratório, feito sob a justificativa de evitar a insegurança jurídica e garantir a devida análise dos impactos ambientais e sociais, não muda o fato de que o texto final da lei ainda flexibiliza pontos cruciais.
O primeiro Censo quilombola realizado pelo IBGE, em 2023, aponta que nem 10% das comunidades quilombolas têm a titulação de suas terras. Trata-se de uma média de 1.327.802 pessoas. Somado a isso, são 304 territórios indígenas não demarcados no país. Embora o governo tenha vetado dispositivos que restringiam a consulta aos órgãos responsáveis pela proteção de povos indígenas e quilombolas, a luta pela demarcação e titulação de terras ainda é crucial. Vulneráveis, esses povos precisam de atenção contínua para que não sejam, cada vez mais, invisibilizados.
E os encarnados, para onde vão? E os encantados? Curupira recolhe suas travessuras em uma COP que, palco de negociações excludentes, não engana ninguém. Há um dizer ancestral que nos aconselha a caminhar a favor do vento, mas não há vento. Seguimos desNorteados para um ponto de não-retorno.
Brasil fora do globo
Ignorar a emergência climática global contraria os compromissos firmados e pode até mesmo inviabilizar as metas climáticas estabelecidas. Além disso, endossa os argumentos utilizados pelos Estados Unidos para impor o tarifaço sobre os nossos produtos. Trump alega uma relação comercial injusta, mas é inegável que a questão ambiental é um ponto de divergência entre os dois governos.

Com a sanção do PL, a tendência é que os conflitos agrários se intensifiquem no país. Foto: Oswaldo Forte.
Sem proteção territorial, os predadores têm carta branca para dizimar a cultura e a vida dos povos tradicionais. 2023 e 2024 somaram 4.435 ocorrências de conflito no campo. “Por terra, água, trabalho e resistências”, diz o relatório da Comissão Pastoral da Terra.
A legislação ameaça ainda mais a biomas como o Cerrado e a Amazônia. Apesar de vetar a retirada do regime de proteção especial para a Mata Atlântica, que tem apenas cerca de 12% de sua cobertura original, o risco de empreendimentos de grande impacto suprimirem a vegetação nativa em especial de outros biomas é real.
Uma Nota Técnica do Museu Paraense Emílio Goeldi afirma que o licenciamento ambiental é estratégico na Amazônia, tendo em vista a importância global do bioma para a estabilidade climática planetária. Mais ainda, o documento diz que:
“O PL nº 2159/2021 ao flexibilizar as regras do Licenciamento Ambiental ameaça fortemente a região de transição dos biomas Amazônia-Cerrado, onde se concentram as maiores taxas de desmatamento da Amazônia nas últimas décadas, impulsionada pela expansão da fronteira agropecuária e da produção de grãos, principalmente a soja. Formações florestais únicas que ocorrem nesta região, como as florestas estacionais de ecótono, habitats de uma biodiversidade extraordinária de fauna e flora ainda pouco conhecida pela ciência, podem ser extintas”.
O congresso conservador dá carta branca para acelerar projetos de mineração, ampliando o desmatamento e a contaminação do solo e da água.
Entre os outros muitos casos que podem ser citados, está a exploração de Petróleo na Foz do Rio Amazonas, que representa um risco real para a biodiversidade local. O inquérito que investiga a possível violação dos direitos de povos indígenas na região do Oiapoque (AP) foi prorrogado por um ano pelo Ministério Público Federal (MPF). Segundo o órgão, o impacto está ligado ao risco de derramamento de óleo e fluidos de perfuração na rota das embarcações.
Quem já acompanhou de perto projetos como esses, conhece bem a realidade de ser arrancado de suas raízes sobre o discurso camuflado de qualidade de vida. Assim, comunidades inteiras são remanejadas para longe das suas bases de sustentação como os rios e as florestas.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei do Licenciamento Ambiental com 63 vetos. Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil.
A decisão do presidente Lula não surpreende, mas obriga a expor feridas abertas de um governo que contradiz o discurso em prol da floresta e dos povos tradicionais. Se a Constituição Federal garante o direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, a Lei é inconstitucional. Cabe ao Supremo Tribunal Federal (STF) questioná-la em sua totalidade, especialmente os pontos mantidos, pois a postura do Congresso já está clara.
Da mesma forma, a sociedade civil deve assumir a linha de frente. Quiçá uma mobilização pública recobre a memória dos “anos de chumbo” vividos entre 2019 e 2022 e mostre que já não basta apenas “esperar a poeira baixar”.
Texto, edição: Juliana Carvalho
Direção: Marcos Colón