Rio das Cinzas: Para Além do Neoinfernismo Amazônico

Obra desmascara a visão do vale amazônico e conecta os problemas da região ao colonialismo interno

Victor Leandro e seu livro "Rio das Cinzas". Fonte: Raphael Alves/Divulgação/Temiporã Livros.
Victor Leandro e seu livro "Rio das Cinzas". Fonte: Raphael Alves/Divulgação/Temiporã Livros.
Victor Leandro e seu livro "Rio das Cinzas". Fonte: Raphael Alves/Divulgação/Temiporã Livros.

Victor Leandro e seu livro “Rio das Cinzas”. Fonte: Raphael Alves/Divulgação/Temiporã Livros.

Recentemente me chegou às mãos Rio da Cinzas, o novo romance de Victor Leandro, obra cujas questões ligadas à Amazônia são bastante atuais. Embora outros autores amazônidas tragam a região como foco do seu trabalho, percebo uma diferença interessante na escrita de Leandro, que parece preencher uma lacuna no que diz respeito ao olhar sobre o grande vale de romances de autores contemporâneos. Esta lacuna gera o que chamo neoinfernismo amazônico.

A narrativa me atraiu pela forma que conecta os problemas da região ao colonialismo interno que a Amazônia vem sofrendo desde a independência, como afirma o professor Bruno Malheiro, e que vem se apresentando hoje de diferentes maneiras. Essa conexão é mostrada logo no início do romance, em que o protagonista, em uma antessala de um dos ministérios de Brasília, conversa com um lobista: “rumando de contrato em contrato para os milhões, para depois jogar migalhas aos pobres por meio de uma fundação”. Só por esse início o livro merece atenção, pois expõe o que a maioria dos artistas da Amazônia não quer mostrar: que a arte, além de outras iniciativas que se apresentam como defensoras da região, trabalha muitas vezes para grandes empresas que, por meio de suas fundações, destroem de forma cada vez mais acelerada o meio ambiente. Um claro exemplo disso é a Fundação Vale.

Em outro momento da narrativa, há um diálogo entre o protagonista e a ministra do meio ambiente. As afirmações desta no romance são atualíssimas, pois mostram como a política em Brasília se liga aos grupos que destroem a Amazônia, vendo em qualquer ação de defesa do meio ambiente um entrave para a economia. Com relação a isso, uma das maiores lideranças indígenas do país, Ailton Krenak, recentemente afirmou que a atual ministra chega à COP 30 enfraquecida por conta do congresso ligado aos interesses agrominerais. Aliás, há algumas semanas Marina Silva foi novamente desrespeitada publicamente por políticos conservadores ligados aos setores do agro e da mineração. Uma forma de pressionar o avanço do capital sobre a região.

Essa conexão desmascara a visão do vale amazônico que teve em Euclides da Cunha e Alberto Rangel alguns dos principais criadores. Nesta perspectiva, a Amazônia estaria “à margem da história” do país e do mundo, contribuindo para o que Alisson Leão chamou de infernismo amazônico. A diferença é que agora a violência de um ambiente hostil não se restringe à selva, se estendendo aos espaços urbanos, resultado de um submundo do crime. Na verdade, à Amazônia foi dado um papel de colônia interna do país e do capital estrangeiro, com conexões inclusive com a ilegalidade, mas também com a legalidade do Estado.  Não por acaso, é justamente o nome “capital” que intitula o primeiro capítulo da obra de Leandro.

A lacuna a que me refiro e que Rio das Cinzas preenche diz respeito ao fato de, apesar de a Amazônia ser hoje centro das atenções mundiais com a COP 30, antigos discursos parecem ainda se reatualizar em narrativas contemporâneas, mesmo em autores amazônicos. Um exemplo dessa reatualização é o romance Pssica (2015). Apesar de o crítico Relivaldo Pinho dizer que as tramas do livro não procuram ser explicadas por nenhuma tese sociologizante” (2017), a obra de Edyr Augusto se mostra devedora de teses naturalistas, como a de que mesmo em um estupro, se o estuprador for “bom de cama”, a mulher (de 14 quatorze anos) chegaria a um orgasmo “impossível de deter”.  Esse narrador já não é o falso moralista Brás Cubas, que busca justificar os seus pensamentos e ações; apesar de aparentemente neutro, ele escancara seu olhar de homem que sadicamente goza com a cena violenta que descreve.

Outra tese presente na narrativa de Augusto diz respeito à sexualização da mulher na Amazônia. Se não soubéssemos que Janalice tem 14 anos, pensaríamos que estamos vendo uma personagem já adulta. Essa tese já foi derrubada por outro romance amazônico, Pantaleão e as visitadoras, de Vargas Llosa, mostrando que a sexualização precoce é um discurso que se projeta sobre a realidade amazônica, justificando violências. O próprio nome da protagonista, Janalice, traz a sugestão de alguém que saiu dos sonhos da infância, pelo abandono do nome Alice, e que, após rebatizada pelo seu estuprador “bom de cama”, se torna Jane, a mulher que depende do herói que a salve do mundo selvagem neoinfernista, como na tela hollywoodiana.

Assim, “o  narrador de Pssica se enquadra, portanto, naquilo que Silviano Santiago chamou de narrador pós-moderno, marcado pela pobreza de experiências, numa perspectiva benjaminiana, e solidário com o ávido leitor empolgado e pronto a se deixar seduzir por experiências ou simulacros de experiências alheias que reificam o hedonismo masculino contemporâneo”.

Para além desse neoinfernismo de homens embrutecidos e mulheres indefesas, outras são as personagens de Rio das Cinzas. Noeme, por exemplo, lembra as mulheres cabanas que pegavam em armas, como mostra o estudo de Eliana Ramos Ferreira. Noeme também é atacada por um homem no banheiro do bar onde trabalhava, mas reage matando-o. Ela vai ser a mateira importante para guiar e defender o protagonista do ataque de garimpeiros ilegais.  Mas me surpreendeu também na obra a presença da dessacralização da maternidade, tema espinhoso para nós, latino-americanos.

Outra afirmação do crítico Relivaldo Pinho merece atenção, ao afirmar que em Pssica “não há filtros que alterem a realidade”. Apesar de não deixar de ser verdadeira a realidade sugerida pelo autor e ratificada pelo crítico, há no romance uma limitação de olhar que não há em Rio das Cinzas, pois fica parecendo que existe um submundo do crime em que apenas políticos corruptos estão envolvidos. O romance de Victor Leandro mostra que há uma ligação desse mundo com a instituição do Estado desde Brasília, envolvendo também pastores e empresários respeitados no mercado. Um exemplo real é a cidade de Abaetetuba, no Pará, que na última eleição municipal teve um candidato que era um conhecido traficante com o apoio de evangélicos, vindo a perder o pleito com uma diferença de apenas 30 votos. 

Além disso, em Pssica, embora se afirme a expressão da realidade sem filtros, tomando como ponto de partida um caso real de vazamento de imagens na internet acontecido em Belém, a herança infernista que influencia na leitura da realidade está presente na invenção de uma Curralinho sem delegacia e sem telefone, à época em que os jornais noticiaram o vazamento das referidas imagens. Já em Rio das Cinzas, há o resgate de famílias de garimpeiros ilegais que ficaram isoladas no período da recente grande seca do Rio Amazonas, fato também histórico. Na narrativa, as críticas a esse resgate na floresta lembram as que o ex-presidente fez quando do desaparecimento de Bruno e Dom, assassinados por criminosos de pesca e caça ilegais no Vale do Javari, em 2022, também no Amazonas.

Essa proposição de um submundo amazônico infernal casa bem com o gênero do romance policial de Edyr Augusto, e se aproxima daquela imagem que no cinema brasileiro recente o filme Cidade de Deus pareceu criar, de uma oposição entre o morro do crime e o asfalto da legalidade, e que alguns críticos como Ivana Bentes chamaram de cosmética da fome. Mas o fim das investigações do assassinato de Marielle Franco, com a maior autoridade de segurança do Rio de Janeiro envolvida, mostra que essa divisão é ilusória, assim como é ilusória uma contraposição entre legalidade e ilegalidade no que diz respeito à rede de crimes na Amazônia. Não por acaso, o mesmo diretor de Cidade de Deus está envolvido na adaptação de Pssica para uma série de TV.

O antepenúltimo capítulo, Fim do rio sem fim, nos remete à já referida seca histórica do Rio Amazonas, que se liga ao título do livro. Nesse sentido, a obra desconstrói o discurso disseminado a partir de cronistas e naturalistas, de uma natureza amazônica de recursos infinitos e inabarcáveis, o que justificaria hoje as incursões tanto do capital legal quanto ilegal sobre a região, sob a alegação de que a Amazônia não se deterioraria mesmo com a acelerada exploração.

No caso do romance de Leandro, essa incursão é representada pelos garimpeiros ilegais. Relacionado a esse capítulo e ao título do livro, a obra também traz um elemento do romance contemporâneo, que é o diálogo com outras linguagens. No caso, esse diálogo se dá pela presença das fotografias de Raphael Alves, que acompanhou de perto o drama da seca do Amazonas. A escolha de um papel fotográfico fosco combina com o clima desalentador da paisagem. Se desde os cronistas dos séculos iniciais da invasão europeia são as imagens de abundância e riqueza que atraíam e fascinavam pessoas do mundo todo, Leandro agora, com a inserção das fotos de Alves, nos alerta para o risco de desaparecimento do bioma, com uma cena que até então pareceria inacreditável: a seca no maior rio do mundo.

Capa "Rio das Cinzas". Fonte: Raphael Alves/Divulgação/Temiporã Livros.Rio das Cinzas

Autor: Victor Leandro

Ano: 2025

Páginas: 105

Idioma: Português

Editora: Temiporã Livros

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Referências

Clei Souza é doutor em Estudos Literários e professor de Literatura pela Universidade Federal do Pará, letrista, poeta, contista, crítico literário, e artista visual. Venceu diversos prêmios literários no Pará, entre eles os prêmios Inglês de Souza e Dalcídio Jurandir.  É autor do livro de poemas Poema pássaro e outros versos migratórios (Fundação Cultural do Estado do Pará, 2016) e do livro de contos O suicidado e outras histórias (Mezanino Editorial, 2021).

Edição e Revisão: Juliana Carvalho
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

 

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