Culturapitalismo e a máquina que devora a Amazônia

Camufladas sob o status de defensoras da arte e da cultura, grandes empresas promovem o capitalismo artista e assumem uma atribuição que deveria ser do governo

O Culturapitalismo é um sistema em que a arte e a cultura são subsumidas pela lógica do capital, transformando-se em mercadorias de alto valor simbólico e financeiro. Fotos: Dr clave / Wikimedia Commons; Benzoix / Freepik; Marcos Colón / Amazônia Latitude. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude.
O Culturapitalismo é um sistema em que a arte e a cultura são subsumidas pela lógica do capital, transformando-se em mercadorias de alto valor simbólico e financeiro. Fotos: Dr clave / Wikimedia Commons; Benzoix / Freepik; Marcos Colón / Amazônia Latitude. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude.
O Culturapitalismo é um sistema em que a arte e a cultura são subsumidas pela lógica do capital, transformando-se em mercadorias de alto valor simbólico e financeiro. Fotos: Dr clave / Wikimedia Commons; Benzoix / Freepik; Marcos Colón / Amazônia Latitude. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude.

O Culturapitalismo é um sistema em que a arte e a cultura são subsumidas pela lógica do capital, transformando-se em mercadorias de alto valor simbólico e financeiro.
Fotos: Dr clave / Wikimedia Commons; Benzoix / Freepik; Marcos Colón / Amazônia Latitude. Arte: Fabrício Vinhas / Amazônia Latitude.

Hoje a arte virou um grande mercado. Grandes eventos e artistas são patrocinados por grandes empresas que lucram com suas imagens associadas a eles. Até aí, não há nada que não se saiba defsde os tempos de Andy Warhol, que propunha a art business. Essa junção entre mercado e arte gerou o que denomino de culturapitalismo.

Mas, em tempos de crescentes crises climáticas, resultado da exaustão dos recursos naturais pelo modelo consumista capitalista que não conhece limites no que diz respeito à exploração desses bens, um fato interessante se apresenta. Trata-se de essas empresas que têm grande responsabilidade pela destruição do planeta se colocarem agora como patrocinadoras de eventos artísticos e culturais ligados à defesa do meio ambiente, vendendo ao público uma imagem de politicamente corretas, enquanto aceleram e ampliam os seus processos destrutivos dos recursos globais.

O culturapitalismo é um sistema em que a arte e a cultura são subsumidas pela lógica do capital, transformando-se em mercadorias de alto valor simbólico e financeiro. Nesse modelo, grandes corporações patrocinam eventos, artistas e instituições não por filantropia, mas para capitalizar em cima de sua aura de criatividade e rebeldia, esvaziando potencial crítico e convertendo-o em branding. Se Andy Warhol anteviu a fusão entre arte e negócios (“art business”), o culturapitalismo é sua etapa neoliberal consolidada: um ecossistema onde até o gesto mais contestador é recodificado como produto, e em que a “autenticidade” virou moeda de troca em bienais, festivais e NFTs. Não se trata mais de arte no mercado, mas da arte como mercado, um circuito fechado de valorização financeira que dita o que (e quem) é visível. A arte na Amazônia é um exemplo interessante para se refletir sobre esse momento singular de que aludem Gilles Lipovetky e Jean Serroy:

O capitalismo, que se desenvolveu sob o signo do descompromisso, do culto ao presente, do desperdício, do lúdico, é hoje obrigado, em resposta às novas exigências relativas à preservação da ecosfera, a incorporar o que lhe era alheio, a saber, o princípio da responsabilidade aplicado ao futuro, a preocupação planetária, a consideração do impacto da produção no meio ambiente (Lipovetky; Serroy, 2015, p. 128).

Mas, como se deu essa aparentemente improvável aproximação entre artistas ligados à defesa da Amazônia ou da ecosfera e grandes empresas responsáveis pelo seu esgotamento? Para ajudar a responder essa questão é preciso recuar algumas décadas, para o Governo Collor, quando se deu o início da aplicação das políticas neoliberais no Brasil.

No campo da arte e da cultura, dois fatos marcam a chegada do neoliberalismo: em 1990, o fim da EMBRAFILME, a Empresa Brasileira de Filmes S.A., uma iniciativa estatal de apoio ao cinema nacional; e, em 1991, a criação da Lei Rouanet. Esta última inaugura no país uma lógica neoliberal no que diz respeito ao patrocínio à arte e à cultura, pois a partir dela a iniciativa privada passa a ser responsável pelo patrocínio de produções artísticas. E todos sabemos que a iniciativa privada tem como finalidade o lucro e não a disseminação da arte.

Um dos primeiros a perceberem o prejuízo que a Rouanet trouxe para a arte foi o diretor de teatro Augusto Boal, mantendo seu posicionamento até o fim da vida: “A Lei Rouanet assassinou a criatividade do teatro. Ao transferir do governo, que representa o povo, para as empresas a decisão de onde investir, a Lei substitui o pensamento criativo pelo publicitário. Essa lei tem que acabar”, pontuou. Quando se fala em políticas neoliberais, pensamos mais em empresas públicas repassadas à iniciativa privada a preço de banana, à exemplo da Vale do Rio Doce, hoje Vale; mas a fala de Boal mostra que também a produção artística e cultural foi impactada por tais políticas.

Minas de Carajás (Pará), da Vale S.A. Considerada a maior mina de minério de ferro a céu aberto, com produção anual de mais de 100 milhões de toneladas. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude.

Minas de Carajás (Pará), da Vale S.A. Considerada a maior mina de minério de ferro a céu aberto, com produção anual de mais de 100 milhões de toneladas. Foto: Marcos Colón / Amazônia Latitude.

No que diz respeito à aplicação do neoliberalismo em arte e cultura, a própria palavra patrocínio deveria ser relativizada, pois o valor que vai para os artistas é o que a empresa deveria, obrigatoriamente, repassar ao Estado em forma de impostos. Este, por sua vez, com a nova lógica, permite com que a empresa repasse parte da verba para o patrocínio de produções artísticas e culturais. Ou seja, na verdade não se trata de um patrocínio pois este, em seu sentido verdadeiro, implicaria na companhia arcar total ou parcialmente com a produção artística. O fato é que a empresa que adere a referida Lei não tem nenhum gasto a mais do que teria pagando as taxas devidas.

No entanto, publicamente, acaba por se passar por patrocinadora, criando uma imagem positiva perante o público e conseguindo publicidade gratuitamente. No fundo, trata-se do Estado obrigando os e as artistas a se submeterem e fazerem propaganda gratuita para a iniciativa privada. E o critério de escolha de quem será contemplado com o “patrocínio” é a geração de visibilidade, bem como a inexistência de críticas à própria empresa nas obras propostas.

Vejamos alguns exemplos de como a produção artística na e da Amazônia tem sido capturada pelo grande capital interessado na exploração dos recursos naturais da região, agravando, desse modo, problemas ambientais e sociais. Um caso emblemático de como as grandes empresas envolvidas em crimes ambientais buscam artistas para criar uma imagem ecologicamente correta é a contratação da cantora Fafá de Belém pela estrangeira Hydro, que opera na região de Barcarena.

Fafá é uma intérprete ícone da Música Popular Brasileira, que ficou notabilizada também como artista defensora da Região Amazônica. Dentre os seus muitos sucessos, estão as canções compostas por Paulo André Barata, com letras do pai, o poeta Ruy Paranatinga Barata.

Paulo André, Fafá e Ruy Barata

Paulo André, Fafá e Ruy Barata. Foto: Guilherme Ledo / Acervo da família.

A dupla, na vanguarda da reflexão sobre a resistência dos povos da Amazônia ao ataque do capital estrangeiro, alertava na canção que dá nome ao álbum “Amazon River”, de 1980, “mas não vai manchar meu nome e nem vai sujar meu rio. ‘Good bye, mister Bill’”.

Ironicamente, é justamente uma empresa estrangeira, que criminosamente sujou rios amazônicos, que se vende como incentivadora da cultura paraense por meio da cantora. Vejamos o que o professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará, Gilberto Marques, relata sobre a Hydro:

Em fevereiro de 2018 ocorreu um vazamento de rejeitos de bauxita (matéria-prima do alumínio) de uma barragem de rejeitos da Hydro Alunorte. A Secretaria de Meio Ambiente do governo paraense (PSDB) apressadamente tentou negar o vazamento, mas sem sucesso. Dias depois foi comprovado que a mesma empresa mantinha três pontos clandestinos de despejo na mata e cursos de água (Marques, 2019, p. 191).

Como mostra Marques, não se trata de uma empresa envolvida em um acidente; trata-se de uma que, criminosamente, polui o Meio Ambiente, comprometendo a vida ao redor de seus empreendimentos, e contribuindo para que Barcarena tenha recebido o triste título de Chernobyl brasileira. É o que reforça a matéria de Cícero Pedrosa Neto, intitulada Barcarena, uma Chernobyl na Amazônia:

Marcelo de Oliveira Lima, analisa que mesmo a bauxita beneficiada pela Hydro Alunorte, antes de passar pelo banho de soda cáustica na refinaria, já possui inúmeros contaminantes altamente prejudiciais à saúde humana e ambiental em sua composição, tais como chumbo, arsênio, cádmio, cromo, níquel, manganês, e até elementos radioativos como o urânio e o tório. Em estado natural, esses contaminantes encontram-se em baixas dosagens no minério de bauxita, mas o relatório aponta para a concentração de milhares de toneladas de rejeitos “altamente corrosivos” do processamento industrial da bauxita, que são depositados a céu aberto nas bacias da Hydro. Marcelo Lima chegou a ser processado pela mineradora Norueguesa em 2019, mas foi absolvido pela Justiça Federal no mesmo ano (Neto, 7-8, 2022).

Hydro Alunorte em Barcarena, no Pará. Foto: Paulo Santos / Interfoto.

Hydro Alunorte em Barcarena, no Pará. Foto: Paulo Santos / Interfoto.

Marcelo de Oliveira Lima é o geoquímico responsável por escrever um relatório técnico-científico sobre toda a cadeia produtiva da Hydro. Como mostra a reportagem citada, a mesma empresa que patrocina uma artista amazônida é a que processa um pesquisador por expor os riscos que o empreendimento causa à Amazônia.

Um outro exemplo interessante para percebermos essa estratégia neoliberal do culturacapitalismo é o Festival de música Psica, que já acontece há mais de uma década e, na edição de 2025, tem o apoio da Petrobras, empresa que trabalha com combustíveis fósseis.

Segundo uma pesquisa da ONG Carbonplan, nos próximos anos Belém vai ser um dos lugares do planeta em que o calor mais vai aumentar, sendo o principal motivo a queima de combustíveis fósseis. E, ainda assim, o município sedia um festival apoiado por uma empresa ligada àquilo que deveria ser extinto para o não agravamento do problema climático na capital. A referida ONG afirma que, no início dos anos 2000, a cidade registrava 50 dias de calor extremo, mas que até 2050 serão 222 dias, seis meses, significando um aumento súbito e significativo em relação a outros locais do mundo. Vai ser, portanto, o município com a maior alta de dias com calor extremo do planeta.

Outra empresa que se liga aos combustíveis fósseis é a Shell. Este ano, a companhia está “patrocinando” a Bienal das Amazônias. O evento também recebe o apoio da Vale, que é uma das maiores “patrocinadoras” da arte no Brasil, segundo o site Direção Cultura.

“Patrocinadoras” entre aspas, porque em 2023 o grosso desses patrocínios foi via Lei Rouanet: 1,1 bilhão. Ou seja, trata-se de um dinheiro que deveria ser repassado em forma de imposto ao governo brasileiro.

Assim, sem nenhum custo, a empresa ganha o status de uma das maiores defensoras da arte e da cultura, de comprometida com a sustentabilidade. Mas, por trás dessa máscara, há a perseguição e criminalização de lideranças dos movimentos sociais, que reivindicam reparações pelos danos causados pela mineração nas localidades em que está instalada.

É o que mostra o premiado documentário “Processados” (2020), de Evandro Medeiros e Alexandra Duarte. O próprio diretor foi processado pela Vale, que alegou que ele e outras pessoas teriam impedido a passagem do trem da empresa durante uma manifestação, o que foi desmentido pela justiça, tendo sido o professor e cineasta inocentado.

O episódio se refere a um ato em solidariedade ao crime de Mariana, que aconteceu em 2015, vitimizando dezenove pessoas e deixando um rastro de destruição em Minas Gerais. Para a Vale, pouco importou que o protesto tenha sido em favor de vidas perdidas e prejudicadas pela mineração. O documentário evidencia que muitos outros militantes, de diferentes localidades, foram alvo de processos, alguns nem estavam nos locais dos supostos crimes contra a empresa.

Mais ainda, em “Processados” tomamos conhecimento de que a Vale mantém um sistema de reconhecimento e monitoramento de lideranças para criminalizá-las, visando intimidar os que vão contra os seus interesses. Estratégia semelhante acontece no campo da cultura, porém de forma mais sutil, pois muitos artistas, com medo de não conseguirem com que suas cartas de patrocínio sejam aceitas, não se posicionam diante dos crimes cometidos pela empresa. Nesse sentido, o modo neoliberal de patrocínio é uma forma também de cerceamento e intimidação desses fazedores de cultura.

Um argumento muitas vezes utilizado e divulgado nesses eventos e por esses artistas é o de que essas empresas agora estão sensibilizadas com os impactos que as suas atividades causam ao meio ambiente havendo, portanto, em tais explorações, uma preocupação sustentável. No entanto, por trás desse discurso, há uma continuidade da aceleração da exploração dos recursos naturais com a finalidade do aumento dos lucros, como mostra Marques:

A voracidade da extração dos recursos naturais pode produzir tragédias e processos (sociais e ambientais) difíceis de serem revertidos. A dinâmica capitalista da lógica do lucro, imposta pela concorrência interburguesa, conduz a um ritmo de apropriação da natureza muito maior que aquele que ela necessita para se recompor. Daí os problemas ambientais. Por não analisar as contradições do capital, o “desenvolvimento sustentável” e seus apologistas estendem a insustentabilidade (Marques, 2019, p. 238).

A afirmativa do professor e pesquisador pode ser comprovada pela realidade enfrentada na Amazônia junto às empresas referidas. Se, no que diz respeito ao problema do agudo crescimento dos dias de calor extremo em Belém, uma medida a ser tomada imediatamente seria o fim do uso de combustíveis fósseis, não só essa possibilidade está fora dos planos do governo brasileiro, a quem a Petrobras se vincula, como este pretende extrair petróleo da Amazônia Atlântica, o que coloca mais ainda em risco os ecossistemas da região.

A Vale, por sua vez, duplicou a estrada de ferro, acelerando a exploração de minerais na Amazônia. Um estudo encomendado pela própria empresa revela que, com essa aceleração, as reservas de ferro no sudeste do Pará, que deveriam durar quatro séculos, se esgotarão até 2035. Esse quadro deve agravar ainda mais um cenário que já é bastante dramático para as populações que vivem nos arredores dos empreendimentos.

A fundação de amparo à pesquisa, FAPESPA, sistematizou dados e constatou que nos anos de 2010 a região de carajás alcançou o maior PIB per capta do estado (muito acima das demais), mas apresentou a menor expectativa de vida e a segunda menor relação posto/centro de saúde por 10 mil habitantes (Marques, 2019, 258).

Enquanto a Vale duplicou seus trilhos e acelerou a retirada de minérios das terras paraenses, as populações atingidas têm sua expectativa de vida cada vez mais reduzida. Foto: Juliana Carvalho / Amazônia Latitude.

Enquanto a Vale duplicou seus trilhos e acelerou a retirada de minérios das terras paraenses, as populações atingidas têm sua expectativa de vida cada vez mais reduzida. Foto: Juliana Carvalho / Amazônia Latitude.

Por toda essa conjuntura, acabei por desenvolver um hábito que antes não possuía – o de olhar os patrocinadores antes de ir para um evento. Por saber que, por trás de um cartaz bonito está uma estratégia do capitalismo artista de mascarar suas ações devastadoras sobre o meio ambiente, e também sobre a Amazônia.

Há poucos dias, vi na emissora de televisão pública do Pará, a TV Cultura, uma propaganda da Hydro, cujo final tinha uma afirmação que tem a ver com esta reflexão: “Venha conhecer as histórias que só a Hydro pode contar”.

Essa história única das ações do capital sobre a Amazônia se dá, como vimos, por duas maneiras: pela cooptação de artistas que ajudam a construir uma narrativa de empresas politicamente corretas, e pela criminalização dos movimentos sociais. Essa é a face contemporânea do capitalismo artista, tão ou mais violento que sua face precedente, mas com uma aparência de ecologicamente e artisticamente comprometido com um futuro que, todavia, ele vai destruindo cada vez a passos mais largos.

O capitalismo artista, de acordo com Gilles Lipovetky e Jean Serroy, é um estágio desse modelo econômico em que as críticas feitas a ele foram incorporadas não para a sua transformação, mas para torná-lo um produto rentável, com a tutela do Estado, que proporcionou as condições para uma maior aproximação entre arte e mercado via política artístico-cultural neoliberal, ou culturapitalismo.

Como a Amazônia é um dos nomes mais divulgados em tempos da crise climática causada pelo próprio capitalismo, nada melhor do que “investir” em artistas da região para que estes façam uma propaganda positiva dessas grandes empresas enquanto elas aceleram a destruição recursos naturais e a opressão sobre os povos amazônidas.

Clei Souza é doutor em Estudos Literários e professor de Literatura pela Universidade Federal do Pará, letrista, poeta, contista, crítico literário, e artista visual. Venceu diversos prêmios literários no Pará, entre eles os prêmios Inglês de Souza e Dalcídio Jurandir.  É autor do livro de poemas Poema pássaro e outros versos migratórios (Fundação Cultural do Estado do Pará, 2016) e do livro de contos O suicidado e outras histórias (Mezanino Editorial, 2021).

Edição e Revisão: Juliana Carvalho
Montagem da Página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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