A COP30 chega, mas Outeiro afunda na lama da injustiça social

No mesmo território em que o mundo se prepara para debater justiça climática, a população ainda paga o preço do abandono

Contrastes: de Outeiro: O luxo de um porto para a COP-30 em meio à lama e ao abandono da comunidade local. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Contrastes: de Outeiro: O luxo de um porto para a COP-30 em meio à lama e ao abandono da comunidade local. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Contrastes: de Outeiro: O luxo de um porto para a COP-30 em meio à lama e ao abandono da comunidade local. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Contrastes: de Outeiro: O luxo de um porto para a COP-30 em meio à lama e ao abandono da comunidade local.
Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A lama cobre os pés de quem caminha na maioria das ruas da Ilha de Caratateua, a principal das 26 ilhas do Distrito de Outeiro, em Belém. No inverno amazônico, cada passo exige equilíbrio entre buracos e poças que nunca secam. Moradores fazem pequenos reparos paliativos com entulho para que o local não afunde de vez. O mesmo chão instável, marcado pela ausência de políticas públicas, recebe máquinas pesadas que reformam o antigo Porto da Sotave para receber transatlânticos luxuosos durante a COP30.

O contraste de realidades é gritante. De um lado, famílias sem saneamento básico e ruas sem calçamento. Do outro, um investimento de quase R$180 milhões em um terminal que exibirá ao mundo uma Belém modernizada, capaz de hospedar navios com delegações internacionais. Mas, enquanto o governo estadual anuncia progresso, a população de Outeiro sente o peso de um desenvolvimento que chega sem consulta, atropelando vidas, culturas e ecossistemas.

Maria Eliete denuncia o abandona das ruas da Ilha de Caratateua. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

Maria Eliete denuncia o abandono das ruas da Ilha de Caratateua, que ficam intrafegáveis por causa da lama. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

“Sempre foi essa vergonha. Quando chove, a gente tem que andar com cuidado. A rua só não está pior porque os próprios moradores jogam entulho para tapar os buracos. Se for calçar um chinelo melhor, vai sujar de lama”, desabafa Maria Eliete Oliveira.

A precariedade das vias é descrita com clareza pela dona de casa, que vive na Ilha há mais de 30 anos. Enquanto ela equilibra as sacolas para não sujar ainda mais os pés, do outro lado da Ilha o cenário é contrastante: guindastes, caminhões e tratores erguem a nova promessa de progresso.

O Terminal Portuário de Outeiro já tem um histórico contraditório. A obra, que começou a ser construída na década de 1980 para o transporte de fertilizantes pela empresa de adubos químicos SOTAVE – Amazônia Química e Mineral S/A, não foi concluída e ficou abandonada por anos até a sua desapropriação. Agora, o porto se prepara para atrair visitantes de todo o mundo, simbolizando modernidade e desenvolvimento. 

O impacto já é sentido no cotidiano. Caminhões pesados circulam diariamente, danificando ruas que, há décadas, esperam por manutenção. Moradores observam que o investimento milionário é direcionado para quem vem de fora, enquanto a própria comunidade continua sem acesso a infraestrutura mínima de qualidade. A ironia é cruel. O lugar que receberá líderes mundiais para discutir justiça climática é o mesmo território que nega justiça social.

Caminhões pesados circulam diariamente, danificando ruas que, há décadas, esperam por manutenção. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Caminhões pesados circulam diariamente, danificando ruas que, há décadas, esperam por manutenção. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Cultura Ribeirinha sob cerco

Na ilha, o rio Guajará-Açú sempre foi fonte de renda. É nele que os barqueiros sustentam famílias e que os pescadores alimentam bairros inteiros. Agora, o mesmo rio será rota de transatlânticos. O que vem com eles não é só turismo: é risco de apagamento. 

“O dito desenvolvimento e progresso não considera a cultura ribeirinha, a forma como organizamos nossa vida a partir do rio e da pesca. A população está em luto simbólico, assustada com o que será do nosso território depois das obras”, relata Samily Maré, pedagoga e ativista local.

População de Outeiro tem cultura ribeirinha ameaçada pela obra do Terminal Portuário de Outeiro. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

População de Outeiro tem cultura ribeirinha ameaçada pela obra do Terminal Portuário de Outeiro. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A construção do porto para receber transatlânticos representa uma ameaça ao modo de vida ribeirinho que resiste há gerações. Onde antes as canoas de madeira cortavam as águas, agora surge um espaço para embarcações de luxo.

Mais do que um projeto de infraestrutura, a obra mexe com o modo de vida de quem aprendeu a organizar a vida a partir das tábuas de marés. O tempo do rio, a pesca como sustento e identidade: tudo isso pode desaparecer diante da pressão imobiliária e turística que acompanha empreendimentos desse porte. 

A lama, o asfalto e a ameaça invisível

Mesmo em ano de COP30, quando Belém será palco de debates internacionais sobre mudanças climáticas, a realidade da Ilha de Outeiro mostra uma contradição escancarada: a comunidade já apresenta soluções concretas para os problemas que enfrenta diariamente, mas o poder público insiste em fechar os olhos. Enquanto milhões são investidos para preparar o Porto da Sotave, ruas e espaços públicos da ilha permanecem em estado de abandono.

Os moradores, que vivem entre poças, lama e ruas esburacadas, não esperam mais apenas promessas: eles se organizam, inventam soluções, e propõem alternativas que respeitam o solo, as águas e a própria vida da ilha. A pavimentação asfáltica tradicional, com resíduo de petróleo, é descartada por eles não apenas por questões técnicas, mas também por consciência ambiental. O asfalto tradicional impermeabiliza o solo, aumenta alagamentos e polui lençois freáticos e nascentes. 

A comunidade de Outeiro não está apenas criticando as soluções tradicionais; ela apresenta alternativas legais e viáveis. O Projeto de Lei de Pavimentação Ecológica, proposto pela vereadora Vivi Reis (PSOL), em fevereiro de 2025, prevê que obras públicas municipais adotem modelos de pavimentação que reduzam a impermeabilização do solo, favorecendo a drenagem natural das águas pluviais e minimizando os efeitos das ilhas de calor. 

Projeto de Lei de Pavimentação Ecológica, proposto pela vereadora Vivi Reis (PSOL). Fonte: Câmara Municipal de Belém.

Projeto de Lei de Pavimentação Ecológica, proposto pela vereadora Vivi Reis (PSOL). Fonte: Câmara Municipal de Belém.

Alinhada à Lei Orgânica do Município, a iniciativa reforça a responsabilidade da prefeitura na preservação do meio ambiente e da biodiversidade, incentivando práticas que mantêm o equilíbrio ecológico e promovem adaptação às mudanças climáticas. Para os moradores, essa proposta não é apenas técnica: é um caminho concreto para melhorar a qualidade de vida, proteger os ecossistemas e valorizar a participação da comunidade nas decisões sobre o território, em contraste com obras que ignoram totalmente as necessidades locais.

“A pavimentação asfáltica com resíduo de petróleo não é uma opção para a gente, porque além de impermeabilizar o solo, vai poluir. Temos um projeto de lei, o Projeto de Pavimentação Ecológica, que é feito a partir de bloquetes, que permite que o solo continue absorvendo a água, diminuindo alagamentos, poluição dos lençois freáticos e nascentes”, explica Maré, pedagoga e ativista local.

Samily Maré afirma que a obra do Porto de Outeiro ignora o modo de vida da comunidade ribeirinha em nome do progresso. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

Samily Maré afirma que a obra do Porto de Outeiro ignora o modo de vida da comunidade ribeirinha em nome do progresso. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude

A fala de Maré sintetiza a tensão entre o discurso internacional e a prática local: enquanto os holofotes da COP30 iluminam Belém, os conhecimentos, a experiência e as soluções dos moradores seguem à margem das decisões oficiais. A ilha já demonstrou que pode criar alternativas sustentáveis, mas estas seguem ignoradas. 

A revista Amazônia Latitude entrou em contato com a Câmara Municipal de Belém e questionou a demora para colocar o Projeto de Pavimentação Ecológica em votação no plenário da Câmara, mas até o fechamento deste texto não houve retorno.

João do clima: juventude que inspira

No meio desse cenário de abandono e obras milionárias, surge uma voz jovem, firme e articulada. João Victor da Costa da Silva, conhecido como João do Clima, tem apenas 15 anos, mas já acumula experiência suficiente para falar de política ambiental, direitos da comunidade e justiça social com autoridade. O adolescente cresceu em Outeiro, entre ruas enlameadas e igarapés, aprendendo cedo que o território onde se vive molda o futuro.  

João do Clima é promessa entre a juventude consciente e participativa. O conselheiro do UNICEF Brasil é referência em mobilização ambiental na Amazônia. Foto: Oswaldo Forte

João do Clima é promessa entre a juventude consciente e participativa. O conselheiro do UNICEF Brasil é referência em mobilização ambiental na Amazônia. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

João é conselheiro jovem do UNICEF Brasil, participa de fóruns de políticas públicas e é referência em mobilização ambiental na Amazônia. Observa criticamente a obra do Porto da Sotave, não apenas pelos impactos ambientais diretos, mas pelo descaso com a população que habita o território. Para ele, os transatlânticos e a COP30 podem trazer visibilidade internacional, mas a ilha corre o risco de permanecer invisível dentro de suas próprias fronteiras.

“Enquanto se gasta milhões com a reforma de um porto, construindo um novo píer para receber estrangeiros para a participação da Conferência do Clima, as ruas dentro da Ilha de Caratateua não têm pavimentação ecológica. Falta saneamento básico, a saúde é precária. Os cruzeiros vão ser ancorados em um território isolado e esquecido pelo poder público”, denuncia João.

Além de apontar as desigualdades, João se engaja em projetos de conscientização, levando informação ambiental e alternativas sustentáveis para outros jovens da ilha. Para ele, a luta pelo território não é apenas ecológica, mas também cultural e social: é preservar a memória ribeirinha, os modos de vida e a identidade coletiva. Sua voz se destaca, não apenas pela idade, mas pelo conhecimento, pela coragem de falar sobre política e ecossistema, e pela capacidade de articular soluções que os governantes insistem em ignorar.

Ele observa os impactos diretos da obra no ecossistema local, e como a falta de diálogo com a comunidade aumenta os riscos:

“Não sabemos exatamente como os navios vão afetar o ecossistema da ilha. Aqui já tivemos vazamentos de óleo e problemas no solo e na água do rio, e essas situações prejudicam diretamente nossa pesca, nosso sustento e a vida de todos que dependem do rio. Mas o governo não conversou com ninguém da comunidade. Não houve explicação sobre como vão proteger a natureza, nem sobre como vão garantir a segurança e o bem-estar das pessoas daqui. A ida e volta desses cruzeiros vai afetar a logística da ilha, o transporte, a pesca e até o comércio local, mas tudo isso parece invisível para quem decide”, conta o ativista.

João destaca que essas decisões, tomadas sem consulta ou planejamento participativo, colocam em risco o modo de vida ribeirinho. Para ele, o debate ambiental não pode ser separado da justiça social: proteger o ecossistema significa também proteger as pessoas que sempre viveram da água e da cultura local.

De um lado, famílias sem saneamento básico e ruas sem calçamento. Do outro, um investimento de quase R$180 milhões em um terminal. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

De um lado, famílias sem saneamento básico e ruas sem calçamento. Do outro, um investimento de quase R$180 milhões em um terminal. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O futuro que resiste

Apesar de tudo, a comunidade insiste em existir. É na autogestão, na força coletiva, na manutenção improvisada das ruas, que se constrói a resistência. O futuro não é promessa de governo, mas prática de sobrevivência.

Quando os navios chegarem para a COP30, Belém será apresentada ao mundo como vitrine do progresso amazônico. Mas quem vive em Outeiro continuará andando na lama. E talvez seja essa a maior denúncia: o abismo entre o discurso global e a realidade local.

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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