Quando o pincel vira protesto

À margem da COP 30, a juventude periférica de Belém transforma muros em trincheiras contra a injustiça climática

O papel revolucionário da arte na educação é ser disseminadora de conhecimento e mobilizadora de emoções. Foto: Coletivo Pororoka.
O papel revolucionário da arte na educação é ser disseminadora de conhecimento e mobilizadora de emoções. Foto: Coletivo Pororoka.
O papel revolucionário da arte na educação é ser disseminadora de conhecimento e mobilizadora de emoções. Foto: Coletivo Pororoka.

O papel revolucionário da arte na educação é ser disseminadora de conhecimento e mobilizadora de emoções. Foto: Coletivo Pororoka.

Anderson Oliveira chegou em Belém há 9 anos. Natural da zona sul de São Paulo (SP), ele mora na Amazônia há mais tempo do que viveu na sua terra natal e já se considera um belenense de coração. O jovem e sua família dividem uma pequena casa no cruzamento da Avenida Alcindo Cacela com a Passagem Umariz, no bairro da Cremação. O asfalto é mal cuidado e o esgoto escorre a céu aberto.

Na cidade que apresenta um dos maiores índices pluviométricos do país, o tempo fechado é quase um prelúdio dos desafios que se aproximam. Basta uma chuva rápida para que a rua vire um rio e invada as casas. Para chegar até a escola, onde cursa o 2° ano do Ensino Médio, Anderson precisa enfrentar o aguaceiro em uma caminhada que não faz sozinho.

Segundo o Painel do Clima da ONU, as populações que vivem em periferias são as que menos contribuem para a crise ambiental do planeta. Ao mesmo tempo, são as que mais sentem os impactos das mudanças climáticas. Também são as que menos têm voz nas decisões globais. Agora essas pessoas querem falar. E estão encontrando, na arte, um caminho para isso.

Onde antes havia rabiscos, hoje as imagens pulsam como artérias. Foto: Coletivo Pororoka.

Onde antes havia rabiscos, hoje as imagens pulsam como artérias. Foto: Coletivo Pororoka.

No mês de maio, os muros da Escola Estadual Amilcar Alves Tupiassu ganharam outra vida. Onde antes havia rabiscos, hoje as imagens pulsam como artérias. O Projeto Circuito de Vivências Artivistas pelo Clima, idealizado pelo Coletivo Pororoka, chegou à instituição de ensino para provocar não apenas reflexão, mas mobilização. Por meio de oficinas, rodas de conversa e ações de muralismo, o Projeto propôs que os próprios estudantes pudessem contar, com tintas e palavras, o que significa viver sob o peso das mudanças climáticas nas margens esquecidas da capital.

Os muros da Escola Estadual Amilcar Alves Tupiassu antes do projeto. Foto: Google Maps / Reprodução.

Os muros da Escola Estadual Amilcar Alves Tupiassu antes do projeto. Foto: Google Maps / Reprodução.

Ao final dos encontros, um memorial visual comunitário tomou forma na fachada da Escola. Cada traço do mural condensava os aprendizados, dores e urgências reveladas durante a experiência. Para muitos, foi a primeira vez segurando um pincel. Para todos, foi a primeira vez vendo sua realidade ocupar um espaço público com poder de voz.

“A arte é um canal de comunicação muito potente e, por vezes, subestimado. Por meio dela, você aprende a ler o mundo e a desenvolver senso crítico, além de estimular a resolução de problemas usando a criatividade. Como a arte é uma catalisadora de conexões, o objetivo é que esse aprendizado seja internalizado. Ao final temos uma obra de arte engajada, afetuosa, disseminadora de conhecimento e mobilizadora de emoções. Esse é o papel revolucionário da arte e da educação”, disse a Lenu, artivista e membro do Coletivo Pororoka.

Na escola, ninguém ficou indiferente. A professora de artes, Rosilene Picanço, observou com orgulho o engajamento dos alunos. Para ela, a escolha do muro como suporte artístico não foi aleatória: é também um gesto pedagógico radical. O muro, que sempre separou, virou ponte. A escola, que sempre ensinou por dentro, passou a ensinar também por fora. A rua virou sala de aula.

“Nós somos uma escola. Se eles estão aprendendo, então é aqui que eles vão repassar para as outras pessoas as coisas boas. Nada mais simbólico do que fazer o muralismo na frente da escola. É uma forma de ensinar não só quem está dentro, mas também quem passa aqui fora”, conta a professora.

A professora de artes, Rosilene Picanço, observou com orgulho o engajamento dos alunos. Foto: Coletivo Pororoka.

A professora de artes, Rosilene Picanço, observou com orgulho o engajamento dos alunos. Foto: Coletivo Pororoka.

Rosilene lembra que os alunos já discutiam mudanças climáticas nas aulas. Mas algo mudou quando colocaram a mão na tinta. A consciência, antes abstrata, ganhou forma. Foi nesse momento que a teoria virou experiência. A escola deixou de ser apenas um prédio: virou lugar de fala. “Eles estavam mais ou menos inteirados, porque a escola já trata o tema. Mas na hora de colocar o muralismo em prática, eles tinham certeza do que queriam. Até aquilo que você já sabe, fica mais fácil quando vira imagem”, observa.

O professor de filosofia, Thiago Martins, acredita que as experiências que acontecem fora da sala têm o poder de iluminar o que está dentro dela. Quando os alunos pintaram os muros da escola, pintaram também novos significados para o que é aprender. “Esses projetos são muito importantes porque eles tiram os alunos da sala de aula. Eles passam a se engajar muito mais. Aqui, eles conjugam a teoria, de todas as disciplinas, com a prática. Eles são extremamente talentosos, mas não conseguem desafogar esse potencial. Projetos como esse são importantes por isso: por unir arte, ciência, teoria e prática”, conta o professor.

Entre os talentos revelados está Kaylane Ribeiro, de 17 anos, nascida e criada no bairro da Cremação. Ela tem um sonho: ser perita forense. Para isso, sabe que precisa passar pelo vestibular, pela universidade, pelo sistema que, muitas vezes, fecha portas para quem vem de onde ela vem. Mas sabe também que existe um outro tipo de formação, mais urgente, mais visceral, que está sendo feita ali, diante dos olhos de todos, no corpo da escola, na borda da cidade.

O projeto oferece oficinas, rodas de conversa e ações de muralismo para os alunos. Foto: Coletivo Pororoka.

O projeto oferece oficinas, rodas de conversa e ações de muralismo para os alunos. Foto: Coletivo Pororoka.

“A gente aprende muito mais aqui do que dentro de sala de aula. O projeto é mais específico, mais direto. Além das pinturas expressarem os nossos sofrimentos, como os alagamentos, elas servem como um aviso para o Poder Público e para a comunidade. Eles precisam escutar, principalmente as nossas vozes. Levar as nossas ideias para que possam, de alguma forma, melhorar a vida de todos”, afirma a estudante.

Para a arte-educadora Lenu, escutar é um ato político. Em um momento em que o mundo inteiro volta os olhos para a Amazônia (com a COP30 marcada para acontecer em Belém) há um paradoxo cruel em curso: todos falam da floresta, mas quase ninguém escuta quem vive nela. A arte, neste contexto, é uma forma de gritar quando os microfones estão nas mãos de outros atores sociais.

“A Amazônia está na boca do mundo, mas parece que não há interesse em explicar para a população o que é a COP, o que são as mudanças climáticas e de que forma essas decisões que serão tomadas aqui afetam o cotidiano de quem vive na Amazônia. Por isso a gente sempre usa a arte e a comunicação como uma linguagem de ativismo”, conta a artivista.

Na ausência de escuta institucional, o Coletivo Pororoka propôs outra escuta: sensível, coletiva e radical. E dessa escuta nasceu o mural. Uma instalação artística que não pede passagem, ocupa.

‘’Muita gente aqui em Belém não tem acesso a esse conhecimento. E o projeto é uma forma de compartilhar para todas as pessoas que não sabem o que está acontecendo com a Amazônia e com o mundo, principalmente as pessoas mais velhas. É uma forma de compartilhar essa arte para todos”, conta o estudante Anderson Oliveira.

Na ausência de escuta institucional, o Coletivo Pororoka propôs outra escuta: sensível, coletiva e radical. Foto: Coletivo Pororoka.

Na ausência de escuta institucional, o Coletivo Pororoka propôs outra escuta: sensível, coletiva e radical. Foto: Coletivo Pororoka.

Na periferia da cidade que será palco da COP30 não é o alto escalão que discute o clima.

São adolescentes que sentem no corpo o que os discursos diplomáticos muitas vezes ignoram. Eles pintam para lembrar ao mundo que as mudanças climáticas não são futuro, são agora. E que as soluções talvez não venham dos gabinetes climatizados, mas das palafitas, dos territórios ancestrais e das margens dos rios.

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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