Lanchas passam, camarões desaparecem: o turismo que engole territórios ancestrais em Belém

Turismo predatório e mudanças climáticas ameaçam modo de vida de comunidade quilombola no Pará

O quilombo Guajará Miri, localizado à menos de 50km de BElém, já vive os primeiros sinais das mudanças climáticas. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude. Arte: Alice Palmeira e Isabela Leite / Amazônia Latitude.
O quilombo Guajará Miri, localizado à menos de 50km de BElém, já vive os primeiros sinais das mudanças climáticas. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude. Arte: Alice Palmeira e Isabela Leite / Amazônia Latitude.
O quilombo Guajará Miri, localizado à menos de 50km de BElém, já vive os primeiros sinais das mudanças climáticas. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude. Arte: Alice Palmeira e Isabela Leite / Amazônia Latitude.

O quilombo Guajará Miri, localizado à menos de 50km de Belém, já vive os primeiros sinais das mudanças climáticas. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude. Arte: Alice Palmeira e Isabela Leite / Amazônia Latitude.

No Quilombo de Guajará Miri, no município do Acará, o movimento das águas não é mais o mesmo. O que antes era símbolo de vida e fartura, agora carrega medo. O camarão e o açaí desapareceram. O que era abundante, está cada vez mais caro e escasso. E as casas, construídas com a sabedoria ancestral, hoje alagam com marés que desafiam qualquer cálculo tradicional.

Localizado a apenas 30 minutos de Belém, o Quilombo vive o que muitos chamam de “os primeiros sinais das mudanças climáticas”, mas por lá a realidade é bem mais grave.

Centro Cultural do quilombo Guajará-Miri. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude.

Centro Cultural do Quilombo Guajará Miri. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude.

Guajará Miri fica a 48 km da capital paraense, uma viagem de duas horas de carro. De barco, a distância reduz. Mas o tempo que separa a comunidade quilombola do centro da capital parece ser muito maior. No Quilombo, a crise climática já é uma realidade. 

O local guarda tradições que atravessam gerações: o açaí com farinha é consumido em todas as refeições, do café da manhã ao jantar. A pesca e a caça ajudam a manter a subsistência. É um modo de vida que respeita o tempo da natureza. A maior parte das famílias vive do extrativismo. 

Segundo a comunidade quilombola, o açaí representa cerca de 70% da renda local. Mas com a onda de calor e as queimadas incontroláveis que atingiram a Amazônia em 2024, mais da metade dos açaizais do Quilombo foram destruídos. “O que levou cinco anos para crescer, a gente perdeu em um verão só. E o pior é que pode acontecer de novo este ano”, lembra Valdiney Teles, turismólogo e membro do Quilombo.

No verão de 2024, o quilombo perdeu mais da metade da sua produção de açaí com as queimadas. Foto: Joelson Cunha / Arquivo pessoal.

No verão de 2024, o Auilombo perdeu mais da metade da sua produção de açaí com as queimadas. Foto: Joelson Cunha / Arquivo pessoal.

Segundo o MapBiomas, a Amazônia foi um dos biomas mais afetados do Brasil com as grandes queimadas de 2024. Foram mais de 17,9 milhões de hectares destruídos, o que representa 58% de toda a área queimada no país. É o mais alto índice registrado nos últimos seis anos. A maior floresta do planeta também sofre com o calor extremo. Dados do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) apontam que, em julho de 2024, a Amazônia registrou um aumento de temperatura 98% maior que no mesmo período do ano anterior. 

A sequência de ineditismos climáticos passou como uma onda devastadora no Quilombo de Guajará Miri. O açaí, que é gourmetizado em grandes capitais do país, principalmente na Região Sudeste, passou a fazer falta na refeição da comunidade tradicional.

“Aqui, as pessoas consomem açaí todos os dias. Faz parte do nosso modo de vida. E se a pessoa não tiver no seu quintal, vai ter que comprar. E agora, que estamos no período da entressafra, o açaí mais barato tá custando mais de 25 reais o litro. Como uma família de cinco a seis pessoas, que sobrevive do extrativismo, vai se manter? Não tem como”, alerta Valdisney.

O colapso ambiental na Região das Ilhas de Belém

Além da escassez do açaí, o desaparecimento do camarão também inquieta os moradores. Antes abundante nos igarapés que cortam a região, o crustáceo praticamente desapareceu nos últimos meses. A causa, segundo os moradores, não é mistério: o turismo predatório da Ilha do Combu.

A menos de 15 minutos de lancha de Belém, o Combu virou ponto turístico da elite da capital. Restaurantes flutuantes e marinas privadas se espalham pelo território. Lanchas e motos aquáticas circulam pelas nascentes dos igarapés em alta velocidade. Na Ilha, o limite de velocidade permitido varia entre 5 e 10 Nós Náuticos. No entanto, não é difícil encontrar embarcações em alta velocidade.

Visitantes, muitas vezes embriagados ou sem habilitação, já causaram acidentes com ribeirinhos. Foto: Reprodução / Redes Sociais.

Visitantes, muitas vezes embriagados ou sem habilitação, já causaram acidentes com ribeirinhos. Foto: Reprodução / Redes Sociais.

Acidentes com embarcações de ribeirinhos já foram registrados por conta do desrespeito de lanchas particulares. Segundo a comunidade quilombola, não são casos isolados. Na maioria das vezes, as colisões acontecem por conta de manobras arriscadas feitas por turistas alcoolizados, ou mesmo sem habilitação. Apesar do número de casos, não há qualquer tipo de fiscalização do poder público. Enquanto isso, os camarões, sensíveis às vibrações e ao barulho, simplesmente desapareceram. 

“Em maio, foi realizado o festival do camarão em uma comunidade na Ilha do Combu. Os organizadores tiveram que comprar camarão de cativeiro porque o camarão nativo sumiu. Eles tiveram que comprar para uma tradição não morrer. As comunidades ribeirinhas não estão conseguindo camarão nem para o próprio sustento”, alerta Valdinei Perez.

A poluição é outro problema que preocupa. Dados da Agência Nacional de Águas (ANA) apontam que cerca de 55% dos municípios da Amazônia Legal não têm coleta e tratamento de esgoto adequados, e grande parte do escoamento irregular atinge diretamente os rios que abastecem comunidades ribeirinhas e quilombolas.

“A gente mora relativamente perto da capital, mas paga um preço alto. Tudo o que a cidade joga fora, chega aqui. E não é só água suja, é lixo mesmo. Nossos igarapés estão adoecendo”, denuncia Joelson Cunha, produtor rural e pescador.

Os efeitos das mudanças climáticas na comunidade não são abstratos, podem ser vistos a olho nu. Com o aumento da temperatura da água e o despejo de nutrientes causam um fenômeno chamado eutrofização, que favorece o crescimento de algas e reduz o oxigênio, essencial para a manutenção da vida de ecossistemas dos rios, principalmente dos peixes e camarões.

“Nós já tivemos verões fortes no passado, mas não fomos tão castigados como os últimos que passaram. Os rios e igarapés são nossas fontes de sustento. Hoje, nós estamos encontrando limo nos rios, algo que não acontecia anos atrás“, alertou Joelson Cunha.

Os camarões, que eram fontes de sustento das comunidades locais, estão desaparecendo. Foto: Joelson Cunha / Arquivo pessoal.

Os camarões, que eram fontes de sustento das comunidades locais, estão desaparecendo. Foto: Joelson Cunha / Arquivo pessoal.

O alerta sobre o futuro das comunidades tradicionais também vem das águas. O Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) mostra que o derretimento das geleiras e a expansão térmica do oceano têm gerado uma elevação do nível do mar, que pode chegar a 3,3m por ano, gerando impactos significativos, especialmente em áreas de várzea e manguezais.

“A casa do meu tio, que é na Ilha do Combu, já sente os impactos da subida das marés. Ele pegou a maré alta, mediu o nível máximo, e construiu a casa dele dois metros acima dessa medida. Hoje, dez anos depois, a casa dele vai pro fundo. Isso significa que em uma década o nível da maré subiu mais de dois metros. Se continuar assim, daqui a algum tempo as nossas ilhas vão sumir”, comenta Valdiney Teles.

Em resposta à denúncia, enviada após a publicação deste texto, a Marinha do Brasil informou fiscaliza o tráfego aquaviário diariamente.  Enquanto que as equipes de inspetores navais da Capitania dos Portos fiscalizam embarcações nas vias fluviais no entorno da cidade de Belém, incluindo a Ilha do Combu. Eles afirmam que “as ações abrangem a verificação de documentos da embarcação e da tripulação, instrumentos de navegação, equipamentos de segurança, salvatagem e condições de navegabilidade. Em caso de irregularidades, são adotadas medidas como notificações, autuações e, quando necessário, a apreensão da embarcação ou sua retirada de tráfego.” A Marinha também ressaltou a importância da comunidade coibir e denunciar práticas irregulares para aumentar a efetividade da fiscalização.

Por se tratar de uma Área de Proteção Ambiental (APA), a responsabilidade pela gestão e preservação da Ilha é do Instituto de Desenvolvimento Florestal do Pará (Ideflor-bio). Em nota recebida após o fechamento desta matéria, o Instituto esclareceu “que não há proibição legal específica para o uso de tijolo e concreto nas construções localizadas na Área de Proteção Ambiental (APA) da Ilha do Combu. O Plano de Manejo da unidade, atualmente em fase final de elaboração, prevê a criação de um código de conduta com diretrizes para preservar a arquitetura tradicional e o modo de vida das comunidades locais. Sobre a chamada “prainha do Combu”, o Instituto destaca que a área não está inserida dentro dos limites da Unidade de Conservação.”

Sobre o desaparecimento dos camarões, o órgão informou que “o Ideflor-Bio acompanha a situação e considera o aumento da salinidade da água — possivelmente relacionado às mudanças climáticas — como um dos fatores que podem estar impactando a fauna local. Novos procedimentos de monitoramento estão em desenvolvimento em conjunto com o Conselho Gestor da APA.”

A solução que vem da arte e da floresta

Em meio às incertezas do futuro e os reflexos de uma exploração devastadora na ilha vizinha, uma resposta começa a brotar do próprio Quilombo: o turismo de base comunitária. Em vez de um turismo que invade e destrói, a comunidade de Guajará Miri propõe um modelo que convida o visitante a viver com ela, não sobre ela.

“O turismo comunitário é um trabalho em conjunto. Trabalham-se todas as experiências de base comunitárias, as experiências da comunidade, os modos de fazer, o preparo, o patrimônio material e cultural vivido a partir da comunidade. A pessoa que participa desse tipo de turismo quer viver justamente a experiência do morador: como ele bate o açaí, desde o preparo até a colheita. É esse ‘saber fazer’ da comunidade que é o mais importante nesse tipo de experiência”, explica o turismólogo Natan Rodrigues.

O projeto, que ainda está em fase de elaboração, conta com o apoio do Grupo de Pesquisa “Cartografia da Vulnerabilidade Socioambiental das comunidades ribeirinhas: planejamento e organização para o turismo comunitário na RMB”, desenvolvido pelo Curso de Turismo da Universidade Federal do Pará (UFPA).

A princípio, a iniciativa aposta em pequenos grupos, guias locais, atividades culturais e alimentação tradicional. Uma roda de conversa foi realizada para ouvir as principais demandas dos moradores e, a partir delas, chegar em um rascunho para o texto do projeto. Mas, para que a ideia avance de forma positiva, é necessária a colaboração de boa parte dos moradores locais.

“A gente está tentando implantar o turismo de base comunitária justamente porque nós precisamos mostrar a nossa cultura, as nossas tradições e o que nós temos a oferecer. A gente quer fazer tudo isso de forma que não venha nos prejudicar, como já aconteceu no passado. Antigamente, o turismo aqui era predatório: os turistas chegavam, comiam, aproveitavam as nossas terras e iam embora sem deixar nada de contrapartida pra gente, apenas danos ambientais. E nós não queremos que isso volte a acontecer”, explica a agricultora Janete Galiza.

As atividades fazem parte do 4º ciclo de atividades do projeto “Circuito de Vivências Artivistas pelo Clima”, realizado pelo Coletivo Pororoka. Durante três dias, os artivistas – como se denominam – mergulharam nas histórias e vivências do Quilombo, por meio de contação de histórias, rodas de cultura e oficinas artísticas.

“A gente parte do princípio de que eles já estão no centro do debate, mas muitas vezes não são escutados. eles são invisibilizados e silenciados pelo poder público ou então não se veem como protagonistas dessa luta. Então, a gente entende que para o enfrentamento das mudanças climáticas é necessário fortalecer e apoiar as comunidades tradicionais”, explica a artivista Lenu, do Coletivo Pororoka.

Por meio de contação de histórias, os artivistas mergulham nas vivências do quilombo. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude.

Por meio de contação de histórias, os artivistas mergulham nas vivências do Quilombo. Foto: Elielson Almeida / Amazônia Latitude.

Ao final das ações, um livro foi elaborado em parceria com a comunidade, uma forma de manter viva na memória um modo de vida ameaçado pelos extremos climáticos. “As comunidades tradicionais estão na linha de frente pela defesa climática há séculos, eles são os protagonistas dessa luta e desse projeto, e justamente por isso devem se ver como tal. O artivismo entra como forte aliado nessa luta, sendo um dispositivo de formação, mobilização, fortalecimento comunicacional, cultural e comunitário”, pondera Lenu.

Como tantas outras comunidades tradicionais da Amazônia, o Quilombo Guajará Miri está entre os que menos contribuem para a crise climática, mas são os primeiros e mais duramente atingidos por ela. Mas eles resistem, pois não há plano B. “Nós somos parte da floresta. Se ela morrer, a gente morre junto porque nós dependemos dela para tudo. Ela é a nossa vida”, defende Valdisney.

 

Atualizado em 11 de junho de 2025.

Texto: Elielson Almeida
Revisão e edição: Juliana Carvalho
Montagem da página: Alice Palmeira
Direção: Marcos Colón

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