Fotogaleria: A “cracolândia” de Belém cresce ao lado do cartão postal da cidade
A cerca de 250 metros da Prefeitura, a população em situação de rua sobrevive entre drogas, lixo e urubus enquanto a COP30 se aproxima

Invisíveis à prefeitura, pessoas em situação de rua vivem entre drogas, peixes e urubus. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
A Praça Dom Pedro II é a mais antiga de Belém. Construída em 1772, era chamada de Largo do Palácio por ficar em frente ao Palácio Antônio Lemos, hoje sede da Prefeitura e do Museu de Arte de Belém. Originalmente, a praça ligava os dois primeiros núcleos da cidade e foi palco de marcos históricos, como a plantação das primeiras árvores que deram à capital o apelido de “cidade das mangueiras”.
Hoje, a mesma praça revela um contraste profundo. Ela, que antes abrigava mangueiras e conectava partes da capital, se tornou abrigo para pessoas em situação de rua e liga a sede do poder municipal à “cracolândia” belenense, formada na Praça do Relógio, ao lado do Ver-o-Peso.
A 250 metros da Prefeitura, pessoas invisibilizadas enfrentam condições extremas: convivem com lixo, ratos, urubus, peixes descartados e fortes odores vindos do mercado. Dormem sobre o concreto quente ou entre barracas improvisadas, sem proteção, sem privacidade e sem dignidade. A ausência de políticas públicas bem estruturadas transforma seu cotidiano em uma sucessão de violações: ferimentos não tratados, doenças respiratórias agravadas, fome e sede, abandono psicológico e abuso de álcool e drogas.
O crescimento dessa população é alarmante. Segundo o Observatório Brasileiro de Políticas Públicas para Pessoas em Situação de Rua, o número de moradores de rua em Belém aumentou cerca de 500% nos últimos oito anos. Em 2013, havia pouco mais de 370 pessoas nessas condições; em 2021, o número saltou para uma média de 2.500 a 3.000, uma escalada que revela a incapacidade das políticas municipais em lidar com a vulnerabilidade extrema. A Fundação Papa João XXIII (Funpapa) contabilizou 822 moradores em 2016, evidenciando que, mesmo antes do salto mais recente, o problema já estava longe de ser administrado adequadamente.
Para tentar enfrentar parte dessa vulnerabilidade, o programa Consultório na Rua, gerido pela Prefeitura de Belém, atua em pontos como Ver-o-Peso, Praça da República e Magalhães Barata. Com uma equipe de 18 profissionais, incluindo médicos, enfermeiros, psicólogos e técnicos de enfermagem, o serviço realiza atendimentos a cerca de 125 pessoas por ação, oferecendo cuidados básicos de saúde, acompanhamento psicológico e encaminhamentos quando necessário. Apesar da importância desses atendimentos, a iniciativa é insuficiente diante do crescimento exponencial da população em situação de rua. A medida atende apenas parte da demanda emergencial e não resolve as causas estruturais do problema, como a falta de políticas públicas consistentes de moradia, assistência social e saúde mental.
A lógica de exclusão se confirma nas ações do poder público, como mostrou a operação de remoção na travessa Quintino Bocaiúva, em junho de 2025. Sem aviso prévio, sem diálogo e sem alternativas de acolhimento, pessoas em situação de rua tiveram seus pertences retirados à força e foram deslocadas para locais sem infraestrutura, enfrentando expulsão, invisibilização e trauma. A ação, promovida pela Secretaria Municipal de Zeladoria e Conservação Urbana (Sezel) com apoio da Guarda Municipal e da Polícia Militar (PM), foi condenada pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA) como higienismo social, por contrariar a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal na ADPF 976, que proíbe remoções forçadas e recolhimento de bens de quem vive nas ruas. Os promotores alertam, ainda, para indícios de que a prefeitura pretende tornar essas operações uma prática constante, evidenciando a tentativa de lidar com um problema estrutural por meio de ações simplistas e repressivas, em vez de políticas públicas efetivas que garantam direitos fundamentais.
Mesmo após a condenação pelo MPPA, as autoridades belenenses repetem a mesma ação. O padrão voltou em 9 de outubro de 2025, quando a Polícia Civil, em conjunto com o Grupamento Fluvial (GFLU), a Secretaria Municipal de Segurança e a Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), deflagrou a Operação Relógio, integrada à chamada “Operação Acolher”.
Segundo o Governo Estadual, a operação dupla cumpriu mandados de prisão contra suspeitos de tráfico e, simultaneamente, promoveu ações de acolhimento. Equipes de saúde e assistência social estiveram presentes na Praça Dom Pedro II, Praça do Relógio e Praça Felipe Patroni, oferecendo atendimentos humanizados, informações sobre vagas em abrigos e encaminhamentos para tratamento de dependência química. O secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Ualame Machado, destacou que os alvos não eram as pessoas em situação de rua, mas fornecedores de drogas, e que a ação buscou equilibrar repressão ao crime e acolhimento social.
Enquanto isso, a Polícia Militar e a Guarda Municipal teriam realizado abordagens preventivas, reforçando a segurança e garantindo a ordem pública. Recentemente, 61 agentes da PM e da Guarda Municipal participaram de capacitação em atendimento humanizado à população em situação de rua, reforçando o caráter social e preventivo das operações. A Polícia Civil informou que a ação segue em andamento, buscando identificar outros envolvidos no tráfico sem confundir segurança com criminalização da vulnerabilidade.
Por outro lado, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado do Pará, a Defensoria Pública da União (DPU) e a Defensoria Pública do Estado (DPE/PA) têm a mesma interpretação de antes.
Para essas instituições, os vídeos da ação na Praça do Relógio indicam indícios de remoção forçada de pessoas em situação de rua, ocorrendo sob o risco de “limpeza social” às vésperas do Círio de Nazaré e da COP30. Em ação civil pública protocolada em 10 de outubro, os órgãos pedem a suspensão imediata de recolhimentos compulsórios, a realização de diagnóstico socioterritorial e a ampliação de vagas em abrigos.
O MPF ressalta que, apesar da alegação de oferta de assistência social, a estrutura existente é insuficiente: em julho de 2025, Belém contava com apenas 40 vagas em abrigos para mais de 2 mil pessoas vivendo nas ruas. O órgão alerta que, sem políticas preventivas estruturadas, grandes eventos como a COP30 acabam intensificando práticas de deslocamento das populações vulneráveis de áreas centrais, sob a aparência de zeladoria urbana. A ação civil pública enfatiza que domicílios improvisados devem ser equiparados à moradia, e que a retirada compulsória sem garantias adequadas de acolhimento constitui violação de direitos fundamentais.
Procuramos a Prefeitura de Belém e o Governo do Pará para esclarecer, em especial, para onde as pessoas atendidas durante a operação de 09 de outubro foram encaminhadas, mas não obtivemos respostas até o fechamento desta galeria. No dia 14 de outubro também visitamos o local da operação e, apesar da diminuição da população em situação de rua na Praça do Relógio, já havia sinais de retorno à situação anterior.
Esses episódios refletem um dilema recorrente em Belém: como conciliar segurança, repressão ao crime e assistência social em um contexto de vulnerabilidade crescente. Entre a Praça Dom Pedro II e a Praça do Relógio, a cidade enfrenta o desafio de garantir que segurança pública e direitos humanos caminhem lado a lado, sem que o avanço de grandes eventos sobreponha-se às necessidades das pessoas em situação de rua.
Com a COP30 se aproximando, Belém caminha para repetir esse ciclo. Prédios públicos serão limpos, fachadas repaginadas, ruas varridas de lixo e de pessoas. Quem vive à margem será empurrado para fora da vista, para os bairros mais pobres, para locais onde nada se vê e quase nada se ouve.
Esta fotogaleria, com imagens de Oswaldo Forte registradas nos dias 02 e 10 de setembro, tira a capa de invisibilidade dessas pessoas diante do poder público e denuncia o abandono a um local que deveria concentrar as principais decisões políticas da cidade.

A poucos metros do principal cartão postal da cidade, a população em situação de rua luta pela sobrevivência. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Dormir sobre o concreto quente ou no improviso: a falta de moradia digna e políticas de assistência social empurra a população para uma vida sem proteção, privacidade ou dignidade. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Moradia improvisada, dignidade negada. Pessoas em situação de rua dormem sobre o concreto ou no gramado, sem proteção ou privacidade. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A ausência de políticas públicas estruturadas transforma a sobrevivência em uma sucessão de violações, onde a população invisibilizada convive com lixo, ratos e condições desumanas. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O dia a dia de pessoas em situação de rua se desenrola entre o cartão postal da cidade e o abandono. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O cheiro forte dos peixes descartados e o lixo orgânico compõem o cenário. A população em situação de rua, que ali busca refúgio, é obrigada a conviver com restos do mercado. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Invisibilidade: A luta diária pela sobrevivência se manifesta na busca por recursos em meio ao descaso. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O número de moradores de rua em Belém aumentou cerca de 500% nos últimos oito anos, evidenciando uma crise humanitária não resolvida. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

As autoridades buscam reprimir o crime e acolher, mas o Ministério Público alerta: sem vagas suficientes em abrigos, tais ações representam risco de ‘limpeza social’ às vésperas da COP30. Foto: Oswaldo Forte.

A nova “cracolândia” de Belém se forma na Praça do Relógio, há apenas 250 metros da prefeitura municipal. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A ausência de saneamento e políticas de moradia condena a população em situação de rua a enfrentar ferimentos não tratados, doenças agravadas e a dependência de álcool e drogas. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Belém enfrenta o dilema de conciliar segurança e direitos humanos, mas a lógica de exclusão prevalece, empurrando quem vive à margem para fora da vista com a aproximação de grandes eventos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

O abandono psicológico e o abuso de álcool e drogas são consequências diretas da vulnerabilidade extrema nas ruas. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A pessoa em situação de rua confronta com o olhar o poder público e a sociedade. Esta é a rotina de quem foi empurrado para a margem. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A remoção forçada, disfarçada de zeladoria ou ‘acolhimento’, não é solução quando não há para onde ir. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A insalubridade extrema se torna parte do cotidiano. Tirar a capa da invisibilidade dessas pessoas denuncia o abandono. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Um ciclo vicioso. O cais do Ver-o-Peso revela o abismo social entre o cartão-postal e a “cracolândia” de Belém. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

As lonas e barracas improvisadas servem de moradia para quem não tem teto. O MPF ressalta que esses ‘domicílios improvisados devem ser equiparados à moradia’. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Montanhas de lixo e detritos transbordam, revelando a dura realidade do entorno. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A noite revela a vulnerabilidade e a falta de segurança da população em situação de rua. O desafio é conciliar segurança pública com a garantia de direitos humanos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Enquanto autoridades destacam o combate ao tráfico e o acolhimento social, órgãos como MPF e DPU alertam para a remoção forçada de pessoas sob o risco de “limpeza social” às vésperas de grandes eventos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Caminhando para a COP30, Belém repete o ciclo: grandes eventos intensificam práticas de remoção disfarçadas de zeladoria. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

Cinco dias após a Operação Relógio, o retorno. Apesar da diminuição inicial, o local da operação já apresentava sinais de volta à situação anterior. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.

A rotatividade evidencia que, sem políticas públicas consistentes de moradia e assistência social, as ações repressivas e de remoção são ineficazes e violam direitos. Foto: Oswaldo Forte/Amazônia Latitude.
Texto e Montagem da página: Alice Palmeira
Revisão: Juliana Carvalho
Fotografias: Oswaldo Forte
Direção: Marcos Colón
