Quem matou Eduardo Mendúa? Líder equatoriano é mais uma vítima do petróleo

Indígena da nacionalidade A’i Cofán que defendia seu território contra os abusos da indústria foi covardemente assassinado

Ilustração: Vilmatraca

Ilustração: Vilmatraca

Tradução: João Paulo Pires | 🇪🇸 Versión en español

 

“Toda a história do petróleo está repleta de criminalidade,
corrupção, do cru exercício do poder
e do pior do capitalismo de fronteira.”
Michael J. Watts

Mais um assassinato. E no ritmo que vamos, não será o último. Eduardo Mendúa foi assassinado no dia 26 de fevereiro. Este membro da nacionalidade A’i Cofán, dirigente de Relações Internacionais da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), destacou-se por lutar contra as atividades de extração de petróleo, bem como por defender os Direitos Humanos, os direitos coletivos e os Direitos da Pachamama, ou seja, seu próprio território, onde existem importantes remanescentes de floresta.

Poucos dias antes de seu assassinato, o líder amazônico denunciou e culpou a estatal Petroecuador e o governo do presidente Guillermo Lasso pela violência gerada em sua comunidade, Dureno, localizada na província amazônica de Sucumbíos. Uma região que vive há muitas décadas a violência consequente das atividades petrolíferas e, nos últimos anos, devido à expansão da mineração.

As investigações policiais relacionadas ao assassinato estão em andamento. É urgente que a ou as pessoas que efetuaram os disparos sejam capturadas e punidas; o mesmo vale para cúmplices e ocultadores; e, igualmente, a qualquer outra pessoa ou pessoas que tenham intervindo como atores intelectuais no assassinato de Mendúa. É esperado ainda que este crime não fique impune, como já aconteceu em diversas outras ocasiões, em contextos semelhantes de expansão das atividades extrativistas, como o brutal assassinato de José Tendetza em 2014.1A lista de defensores de seus territórios cresce no Equador. Reconhecendo que é seguramente muito mais longa, aqui recordamos Bosco Wisuma (2009), Freddy Taish (2013), José Tendetza (2014), Andrés Durazno (2021), Nange Yeti (2021).

Alguns precedentes sempre carregados de violência

No território dos A’i Cofán, as pressões do petróleo têm uma longa história. Desde a década de 1960, foram registradas atividades sísmicas, seguidas da perfuração de poços de petróleo ao longo do rio Aguarico. Sem consultar a comunidade, em 1972, o poço de petróleo Dureno 1 foi perfurado no território daquele povo. As atividades petrolíferas avançaram, avassalando com grande força populações e a Natureza. A resistência era complexa. Depois de uma luta árdua e, como sempre, desigual, conseguiram o reconhecimento de seu território e, em 1998, conseguiram fechar alguns poços de petróleo, inclusive o primeiro.

As pressões do petróleo não pararam. No governo de Rafael Correa, em 2014, foi reaberto o poço Dureno 1 e ampliada a plataforma Guanta 12 no território dos A’i Cofán. Nesse regime, tentou-se apaziguar a resistência com uma “cidade do milênio”, em uma ampla estratégia que se intitulou encorajadora da modernização e do progresso, o que, na prática, aprofunda cada vez mais a matriz produtiva baseada na exploração de matérias-primas, o que leva à destruição de mais e mais territórios.

O regime de Lenín Moreno continuou o caminho traçado pelo antecessor e patrocinador. E o atual presidente Guillermo Lasso iniciou seu mandato oferecendo-se para dobrar a taxa de extração de petróleo bruto, chegando a afirmar solenemente que “vamos explorar até a última gota de petróleo”. Lasso, com alguns decretos quase no início de seu governo, tratou de acelerar o extrativismo, tanto do petróleo quanto da mineração.

A pressão aumentou no território da comunidade A’i Cofán. Em 2022, a petroleira estatal tentou perfurar 30 poços no território com três plataformas. Diante disso, Eduardo Mendúa e parte da comunidade resistiram fortemente, e chegaram a entrar com uma ação judicial contra a estatal. Partiram do princípio da autodeterminação dos povos, exigindo ao menos uma consulta prévia, livre e informada. Em janeiro de 2023, a empresa tentou entrar mais uma vez com a ajuda da força pública, pois estava determinada a continuar com a construção da rodovia. A Petroecuador tentou dividir a comunidade, distribuindo U$ 300 mil para pessoas que são a favor da extração do petróleo. Grande parte da comunidade permaneceu na resistência e, como resultado, houve vários confrontos sangrentos, e até mortes.

Além disso, em 2023, Lasso também ordenou a militarização das áreas onde são realizados projetos extrativistas, estabelecendo Áreas Reservadas de Segurança. Dessa forma, as Forças Armadas voltariam a intervir, garantindo a operação e os interesses das mineradoras transnacionais. Com diversas disposições, são violados os direitos das comunidades indígenas estabelecidos na Constituição da República do Equador. Igualmente, o Estado atropela as normas internacionais sobre os Direitos dos Povos Indígenas, como a Declaração das Nações Unidas de 2007 (da qual o Equador é signatário), que proíbe atividades militares em terras ou territórios de povos indígenas.

O fato é que simultaneamente em várias regiões as violentas pressões se estenderam para impor sobretudo a mineração. Poucas horas antes do crime que nos ultrajou e agora nos motiva, no dia 26 de fevereiro, militares e policiais, juntamente com guardas particulares de duas mineradoras, invadiram brutalmente a freguesia de Gualel, na província de Loja, com o objetivo de entrar no morro Guagrahuma, na Cordilheira de Fierro Urco. As populações camponesas e o povo Saraguro foram atacados. Eles defendiam o pântano considerado como a Estrela Hídrica do Sul, já que esta região abastece de água quatro províncias: Azuay, El Oro, Loja e Zamora Chinchipe.

É importante destacar que Eduardo Mendúa foi categórico em seu compromisso de defender o território de sua comunidade. Poucas horas antes de ser vítima das balas assassinas, ele escreveu em sua conta no Facebook:

…vamos continuar mais firmes e fortes do que nunca, não vamos ceder nem uma polegada do nosso território para que os estrangeiros do petróleo possam destruir os seres espirituais e as pessoas invisíveis da nossa selva, rios, lagoas, lugares sagrados, riachos, remédios, nossas paineiras.
Eduardo Mendúa

Nesse ambiente complexo, com um governo voltado para interesses extrativistas, o líder indígena foi assassinado.2De resto, a situação política nacional é complicada. Um governo desacreditado e massivamente derrotado nas urnas de 5 de fevereiro, tanto no referendo quanto nas eleições para escolher as autoridades dos governos autônomos descentralizados. Uma sociedade assolada pela crise econômica e uma crescente insegurança recentemente desencadeada sobretudo pelo crime organizado. Com um ambiente em que se vislumbram grandes protestos populares como os vividos em junho de 2022 ou outubro de 2019.

O assassino, um velho conhecido

Para além das conclusões no campo da justiça criminal, precisamos aceitar que quem mata as pessoas que defendem seus territórios, especialmente líderes como Eduardo Mendúa, é conhecido e tem nome.

Basta rever uma história cujo princípio se perde nas dobras dos séculos. Desde as origens da Colônia, essas terras Abya-Yala estiveram ligadas ao mercado mundial. Desde então, as estruturas e práticas das atuais economias primário-exportadoras vêm tomando forma. A partir de então, aos países ricos em recursos naturais foi imposto um papel passivo e submisso na divisão internacional do trabalho, atrelado às demandas do capitalismo metropolitano. Esta realidade não mudou.

Os países da Nossa América, com sociedades empobrecidas, mas obcecados pelo projeto delirante do “desenvolvimento”, continuam extraindo e exportando matérias-primas. No meio ambiente, mantêm-se os dogmas fundadores do mercado livre, que nos condenam a recorrer repetidamente à velha crença de aproveitar as “vantagens comparativas” oferecidas pela Natureza, que devem ser aproveitadas. Para sustentar esta mensagem falaciosa, repete-se incansavelmente como uma litania profética: a imperiosa necessidade de aproveitar as riquezas naturais, para não continuar a ser pobre sentado em sacos de ouro… O resultado não poderia ser outro: esta lógica de funcionamento das economias extrativistas provoca uma série de patologias, que compõem a “maldição da abundância”.

Existem vários mitos que sustentam tamanha aberração. Um deles surge na urgência de obter renda destas atividades extrativistas – seja o petróleo ou a mineração – para alcançar o “desenvolvimento” e, diga-se de passagem, financiar políticas sociais. O caráter limitado do argumento fica evidente ao constatarmos que nem mesmo as receitas angariadas com a tributação de ditas atividades – muito limitadas, cabe notar – têm sustentado adequada e suficientemente essas políticas que, aliás, muitas vezes caminham ao som de práticas clientelistas: exemplo disto deles é o uso de royalties antecipados para “lubrificar” a aceitação de atividades mineradoras nas comunidades afetadas, algo que acontece em quase todos os países da região, independentemente da ideologia dos governos.3Este mecanismo foi inclusive recomendado por Rafael Correa ao então presidente neoliberal colombiano Juan Manuel Santos, que agradeceu publicamente ao progressista presidente equatoriano por esta medida que serve para quebrar a resistência das comunidades.

O saldo deste conhecido modus operandi é visível. Economias, Estados e até empresários rentistas, desde que se organizem em torno da renda da Natureza. Sociedades clientelistas e profundamente desiguais e injustas, perversamente atreladas ao controle dos recursos obtidos com tais rendas. Aparelhos produtivos caracterizados por sua heterogeneidade estrutural, sustentada por exportações primárias. Instituições incapazes de controlar essas atividades econômicas primário-exportadoras nas quais, além disso, prevalecem diversas formas de evasão fiscal, que coexistem com múltiplos mecanismos de subsídios às empresas petrolíferas e mineradoras. Sistemas políticos atormentados pela corrupção e pelo autoritarismo.

Tudo isso como parte de um modelo de exploração que se alimenta de sufocar a vida de seres humanos e não humanos para manter a roda cumulativa do capital. Atualmente, a pilhagem causada por este sistema é exacerbada de forma incontrolável com a crescente magnitude da demanda internacional por recursos naturais. Naturalmente, é fácil entender como esse modelo predatório se alimenta de múltiplas formas de violência.

Falamos sobre extrativismo. Uma modalidade de acumulação que exige atualizações de violências físicas, simbólicas e psicológicas contra comunidades e ecossistemas para viabilizar dezenas de megaprojetos. Violências que não são simples consequências da atividade mineradora ou petroleira (ou, ainda, agroexportadora). São formas de violências que se configuram como condição necessária para iniciar e sustentar essas atividades extrativistas, que acabam desestruturando comunidades humanas e desarticulando comunidades naturais.

Assim, estes processos de espólio, ou seja, de apropriação violenta da riqueza, vinculados a esquemas de acumulação expandida do capital, dão lugar à desterritorialização, que leva à morte muitas culturas. Desaparece a perspectiva vital de estar dentro, de viver em harmonia com a Natureza e em comunidade, à medida em que prevalece a visão do estar fora, enquanto a mercantilização da Natureza e da própria vida humana se acelera. Com o discurso da modernização e as práticas extrativistas, os metabolismos da vida são atropelados.

Por estas razões não podemos focar a atenção exclusivamente no crime em si. Precisamos identificar categoricamente o causador sistêmico de tanta morte: o extrativismo.

As múltiplas faces da violência extrativista

A ação violenta das atividades extrativistas é múltipla. A criminalização, o assédio, a perseguição, a repressão e o assassinato de opositores aos projetos de mineração e petróleo são o “pão de cada dia”. São muitos e diversos os mecanismos de controle territorial mobilizados por empresas extrativistas com o apoio e liderança dos Estados, por meio, por exemplo, de compras irregulares e abusivas de terras, desalojamentos respaldados pela força pública e com a cumplicidade da justiça.

A combinação perversa do poder combinado transnacional-estatal, com o apoio dos meios de comunicação de massa e até de alguns centros acadêmicos, marginaliza e até ataca violentamente aqueles que se opõem ou simplesmente questionam essas atividades. Assim, com esse acúmulo de violências, é possível garantir o controle sobre os territórios, que são esvaziados de essência de vida, enquanto se enraíza na sociedade uma visão extrativista que parece impossível de ser mudada e até mesmo criticada.

Muitas vezes, a violência é disfarçada em ações que pretendem buscar o bem-estar das comunidades. Para conseguir o apoio da comunidade, as empresas extrativistas buscam aliados, como aconteceu no caso da comunidade A’i Cofán. Com várias ações pró-desenvolvimento, o Estado e as empresas extrativistas causam profundas divisões. Há grupos que aceitam esses benefícios em termos de acesso ao emprego, melhoria de estradas e construções de escolas ou postos médicos em troca de abrir as portas para o extrativismo. Outros grupos seguem firmes em sua defesa do território, exigindo que o Estado – não as empresas – cumpra sua obrigação de atender suas demandas. Isso cria diferenças e tensões. São frequentes os confrontos sangrentos entre os mesmos membros da comunidade, até mesmo entre familiares. E é assim que, de fora, se inocula o vírus da ganância, que acaba desfazendo as comunidades.

Então, uma vez que as empresas extrativistas são instaladas, a violência se multiplica de várias formas. Como exemplo de uma lista muito longa de abusos e violações, mencionemos os problemas causados ​​pela chegada de trabalhadores de fora (principalmente homens jovens). Esta nova população, composta por técnicos e trabalhadores estrangeiros, que constituem enclaves nos territórios, aumentando drasticamente o custo de vida das comunidades (alimentação, aluguel, valor dos imóveis, serviços básicos). Os consequentes desequilíbrios nas áreas de exploração repercutem até mesmo nas regiões vizinhas, gerando novos conflitos sociais. Por não terem vínculos sociais ou culturais com o restante da comunidade, os novos moradores podem causar graves problemas sociais, dos quais mulheres e crianças são as primeiras vítimas. Aí florescem a prostituição, a o vício em drogas, o alcoolismo, a delinquência, a insegurança, a criminalidade, os feminicídios, incluindo a exploração sexual e o tráfico de seres humanos. Como consequência destes processos, há uma redefinição dos papéis de gênero, a masculinização dos espaços e a re-patriarcalização das comunidades. Nestes processos de terror, a militarização dos territórios desempenha um papel determinante.

No Equador petrolífero, práticas nocivas à Natureza e à vida de seus habitantes amazônicos começaram há mais de 50 anos, com o consórcio Texaco Gulf. Informações suficientes, com dados ambientais de validade irrefutável, demonstram a contaminação ambiental na área das concessões. Os ecossistemas infectados com hidrocarbonetos e outros contaminantes relacionados com as operações petrolíferas são inúmeros. Os solos das estações e poços contêm resíduos de petróleo e metais em concentrações muitas vezes superiores aos padrões internacionais. As águas subterrâneas sob as fossas de rejeitos estão contaminadas acima dos padrões máximos, e isso sem contar rios, pântanos e lagoas. Observações diretas no território confirmam como a vida de plantas e animais é impactada por tanta destruição e envenenamento. O barulho ensurdecedor e a queima do gás associado completam esse cenário de múltiplas destruições. Muitas empresas também têm operado com práticas e políticas ambientais inadequadas para a conservação do ecossistema, utilizando poucos ou nenhum controle ambiental.

Podemos recordar em particular que no caso da Texaco Gulf, além dos danos ambientais que causou, pesa também nos danos sociais e culturais causados ​​aos povos indígenas Siona, Secoya, Cofán, Kichwa e Waorani, além dos danos aos colonos branco-mestiços. E não podemos esquecer ainda da extinção de povos indígenas como os Tetetes e os Sansahuari, cujos nomes, ironicamente, são chamados de duas jazidas de petróleo na mesma área onde antes viviam.

Tanta destruição sequer pode ser mensurada. Os impactos causados ​​por derramamentos, contaminação de pântanos, queima de gás, desmatamento, perda de biodiversidade e morte de animais silvestres e domésticos são verdadeiramente inquantificáveis. Não fosse suficiente, devemos lembrar dos materiais usados ​​que causaram a salinização dos rios. Impossíveis de calcular são as doenças (como o câncer) e até o trabalho mal remunerado. Na esfera psicossocial, os impactos são brutais: estupros por parte de operadores das petroleiras contra mulheres adultas e menores de idade mestiças e indígenas, abortos espontâneos, discriminação e racismo, além de deslocamentos forçados, impacto cultural nocivo e quebra da coesão social. Aliás, todo esse cenário sombrio tem como atores todas as empresas petrolíferas, sejam elas privadas ou estatais, sempre em aberto conluio com o Estado.

No Equador mineiro, apesar de esta ser uma atividade recente, como era de se esperar, as violências crescem rapidamente. Com enormes operações policiais e militares, o governo Correa impôs a mineração na Cordilheira do Condor e no Vale de Intag.4Recordemos a erradicação do Bairro de San Marcos em Tundayme com a destruição em 2014 de sua igreja e escola e os despejos forçados e violentos em 2015; bem como a violenta ação de despejo, repressão e criminalização ocorrida em 2016 e 2017 em Nankintz e Tsuntusim. A desapropriação de territórios, a repressão às comunidades que resistem e a criminalização daqueles que tentam manter seus territórios livres de mineração estão na ordem do dia desde então. Aqui, também, o extrativismo ocorre sem consulta ambiental, com base em uma violação sistemática da Constituição e da lei, tanto que toda atividade minerária considerada legal seria ilegal.

As violações dos direitos das comunidades e de seus territórios se expandem como círculos concêntricos por todo o país: em Imbabura, além de Intag, existe o caso de Buenos Aires; em Esmeraldas há várias áreas afetadas; Rio Blanco em Azuay; Fierro Urcu em Loja; Curipamba em Bolívar; Chocó Andino no Distrito Metropolitano de Quito, para citar apenas alguns lugares. O garimpo de ouro atualmente destrói as florestas amazônicas nos rios Punino, Yutzupino, no território Shuar Arutam, no Parque Nacional Podocarpus e na Reserva Florestal Cuenca Alta do Rio Nangaritza: o desmatamento causado até agora por essa mineração de ouro nestes cinco territórios é equivalente a 1.660 hectares, algo equivalente a 2.325 campos de futebol.

Neste quadro complexo, é inegável a cumplicidade do Estado e de algumas empresas “formais” com a mineração ilegal que estende os tentáculos por todo o país, mesmo ligado a organizações criminosas. Enquanto isso, as autoridades não respeitam nem fazem cumprir a Constituição e as leis, bem como a vontade popular que se manifesta principalmente contra a mineração, como aconteceu com as consultas jurídicas populares dos cantões de Girón (2019) e Cuenca (2021), na província de Azuay.

Mas há outras formas de violência que são aparentemente menos dramáticas. Referimo-nos às arremetidas simbólicas, aquelas que estão encapsuladas nas mensagens dos meios de comunicação de massa e que são divulgadas por especialistas defensores do extrativismo, que não se cansam em insistir nos supostos benefícios dessas atividades apresentadas como essenciais para alcançar o “desenvolvimento”. Para sustentar essas reivindicações, em um exercício de extremo cinismo, eles não têm escrúpulos em dizer inclusive que seriam atividades “sustentáveis”.

O que é extremamente perverso é que tudo isto é feito com base no “interesse nacional”; uma questão que, no caso dos governos progressistas, se cristaliza ao levantar a bandeira do nacionalismo com ação redobrada das empresas estatais, cuja atuação essencialmente não difere da dos consórcios transnacionais. Não apenas isso, os entes estatais frequentemente fazem o papel de armas de cerco para quebrar os entraves legais e as próprias resistências comunitárias que podem frear a expansão extrativista.5Um caso digno de nota é o da Intag, cuja comunidade resistiu unida às pressões da mineração estrangeira por décadas até 2012, com a chegada da estatal (papel) Empresa Nacional Minera ENAMI EP com a estatal chilena CODELCO apoiada por centenas de policiais, em governo de Correa, foi possível enfraquecer a resistência da comunidade. A esse respeito, leia o texto que o autor destas linhas escreveu com uma das referências históricas dessas lutas: Carlos Zorrilla (2021): “CODELCO: Subimperialismo mineiro chileno…”.

Todas essas múltiplas e diversas formas de violências, tanto reais quanto simbólicas, são alimentadas pela intolerância e pelo autoritarismo que acompanham o extrativismo. Como exemplo, podemos recordar as palavras do então presidente Rafael Correa, em 10 de dezembro de 2011, quando afirmou:

Perdemos muito tempo para o desenvolvimento, não temos mais um segundo a perder, (…) quem nos faz perder tempo também são esses demagogos, ‘não à mineração, não ao petróleo’, perdemos tempo discutindo bobagens. Vejam, nos Estados Unidos, se [os ativistas] vêm com essa bobagem, no Japão, eles colocam no hospício.
Rafael Correa

A realidade é diferente, mas não menos contundente e preocupante. Nossas sociedades estão presas no hospício do extrativismo. A única forma de alcançar o “desenvolvimento” passaria – segundo o discurso dominante – pelo crescimento econômico com o qual superaríamos o “subdesenvolvimento” e isto requer volumes crescentes de exportações de recursos naturais para sustentar, sobretudo, os investimentos sociais. Convenhamos, em nossas sociedades, a começar pelos governantes, desenvolveu-se uma espécie de DNA extrativista que limita até mesmo um amplo e sério debate sobre essas questões.

É nossa tarefa sair deste labirinto carregado de tanta loucura e violências.

Para sair do manicômio extrativista

Páginas e páginas de análise seriam necessárias para avaliar em detalhes as múltiplas formas de violências ligadas ao extrativismo. São imensuráveis ​​os profundos impactos sociais e culturais, psicossociais e de saúde pública, bem como os danos à Natureza e até aos aparelhos de produção locais. A violência que atinge o campo da justiça, da democracia, da cultura e da própria economia – além dos territórios diretamente afetados – também não podem ser esquecidas.

Entendamos: os extrativismos e as políticas públicas que os abrigam e fomentam fazem parte de uma espécie de necropolítica destinada a sustentar a civilização da mercadoria e do desperdício, que prospera pisoteando a vida. Compreender essa realidade é necessário. Como também é fundamental aceitar que, para além de algumas diferenças reais e seus discursos aparentemente inconciliáveis, os governos progressistas e neoliberais comungam desta necropolítica.

Logo, se quisermos sair desse manicômio extrativista, é preciso fazer uma análise múltipla e profunda. Todas essas formas de violências devem ser conhecidas, compreendidas e colocadas nos espaços correspondentes para começar a construir saídas alternativas em termos de transições. Os supostos benefícios do extrativismo, que na verdade não passam de falsas promessas sustentadas por uma série de fábulas, devem ser desmantelados.

A saída é frear tanta destruição e construir estratégias para avançar rumo a outros horizontes civilizacionais. Para começar, é hora de fortalecer as lutas de resistência, que ao mesmo tempo são pela reexistência, estimulando a ação comunitária a partir de um tecido cada vez mais amplo de múltiplas solidariedades dentro e fora do país. Da mesma maneira, é necessário influenciar todas as áreas de atuação estratégica, sem minimizar a capacidade de atuação do Estado, muito menos o potencial de atuação internacional. Entendamos que a coevolução entre seres humanos e não humanos torna o pós-extrativismo uma oportunidade incontornável para enfrentar o colapso climático em curso.

Pensemos e construamos todos os mundos possíveis, onde todos os seres humanos vivam com dignidade e em harmonia com a Natureza.

Alberto Acosta é economista equatoriano e profesor universitario. Foi subgerente de comercialização da estatal Petrolera Ecuatoriano (CEPE, 1982-1983). ministro de Minas e Energia (2007), presidente da Assembleia Constituinte (2007-2008) e candidato à Presidência do Equador (2012-2013). É consultor de energia.
Este texto não representa, necessariamente, o posicionamento da Amazônia Latitude.
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