‘Ao Pôr do Sol’: pensando uma releitura para música brega paraense

Ensaio apresenta um arranjo inédito para a canção 'clássica' do brega paraense da década de 1980 'Ao Pôr do Sol'

Pôr do sol na Estação das Docas, em Belém-PA, com a logo do Pensando a Amazônia pela Música ao lado
Pôr do sol na Estação das Docas, em Belém-PA. Foto: Arnoldo Riker via Flicker
Pôr do sol na Estação das Docas, em Belém-PA, com a logo do Pensando a Amazônia pela Música ao lado

Pôr do sol na Estação das Docas, em Belém-PA. Foto: Arnoldo Riker/ Flicker

RESUMO:

A Amazônia se caracteriza por uma diversidade no fazer musical, não sendo incomum que muitas das canções mais populares no século XX, na região paraense, recebam outras roupagens nos dias atuais em contextos culturais locais. Nesse sentido, este ensaio apresenta um arranjo inédito para a canção “clássica” do brega paraense da década de 1980: Ao Pôr do Sol, de autoria de Firmo Cardoso e Dino Souza. O objetivo deste ensaio é reler uma das mais emblemáticas melodias no contexto dessa região em consonância com objetivos da composição original e o brega paraense. Nosso esforço, dentro das limitações de instrumentação, se deu em elaborar uma sequência sistemática das linhas melódicas e harmônicas, transmitindo o romantismo que consideramos perpassar a letra da canção. Para tanto, foi realizada a montagem de um grupo instrumental de sopro e cordas, de acordo com o que nos era disponível em relação ao material e os objetivos do próprio arranjo. Concluímos que o fazer musical de arranjar canções “clássicas” regionais reforça a música como uma importante característica cultural de uma região, assumindo, portanto, que ela não é estática. Nessa perspectiva, espera-se que o estudo se torne um artigo científico mais completo, e seja ampliado para outras canções do contexto cultural regional paraense; assim, despertando o interesse de outros arranjadores em se apropriar das influências de seus contextos e de seu tempo para reafirmar suas identidades musicais.

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Contextualizando

Considerada um “clássico” da música popular paraense, Ao Pôr do Sol é uma canção composta na década de 1980, no contexto amazônico. Sua versão mais popular — a saber gravada em brega — tornou-se um hino no que diz respeito ao embalo dos romances de muitas gerações na região e consolidou-se como uma das mais importantes canções do Pará (também com projeção nacional), sendo eleita, por meio de voto popular em 2016, como a música que representou a comemoração dos 400 anos de história da cidade de Belém.

Longe de objetivar uma reflexão mais aprofundada no debate acerca do que pode ser considerado arranjo ou não na música popular neste trabalho, utilizamos a concepção dicionarizada1DICIONÁRIO ELETRÔNICO HOUAISS DA LÍNGUA PORTUGUESA, 2001 para o português. A palavra arranjo refere-se à composição musical feita a partir de uma obra preexistente, geralmente adaptando-a para diferentes instrumentos, vozes ou estilos musicais; técnica de reorganizar uma composição musical, especialmente uma peça escrita, para ser tocada ou cantada por um conjunto ou artista diferente, ou para se adequar a um determinado contexto ou gênero musical.

A definição no Houaiss, complementada com orquestração, abrange muitos casos da relação entre composição e arranjo na música popular brasileira. Compositores, geralmente cantautores, criam canções acompanhadas originalmente por um instrumento harmônico, como violão, piano ou acordeão. Essas canções servem como base para os arranjos (De Menezes Bastos, 2013). Destaca-se a escassez de literatura específica sobre música popular, especialmente a brasileira, embora o arranjo seja um elemento fundamental nesse contexto musical (Aragão, 2001; De Menezes Bastos, 2013; De Siqueira Tiné, 2019).

A escolha da canção Ao Pôr do Sol para este trabalho deu-se a partir de um repertório construído pela turma do ano de 2022 do curso de Licenciatura Plena em Música da Universidade do Estado do Pará (UEPA), em Bragança-PA, para apresentações didáticas que contemplavam músicas que passeavam entre a Música Popular Brasileira (MPB) e a música regional paraense (a saber, o carimbó, o brega, entre outros).

A primeira versão do arranjo que estamos apresentando, escrita para um grupo disposto em bateria e percussão, baixo, guitarra, teclado, trompetes, trombone, saxofones tenor e alto e voz, fez parte de uma série de concertos abertos à comunidade, tanto acadêmica quanto não acadêmica, no decorrer do ano de 2023 no Teatro Liceu da Música-UEPA.

Entretanto, o arranjo se assemelhava aos aspectos constitutivos apenas à versão popularizada no estilo brega paraense. Com o objetivo de explorar outras perspectivas musicais da Amazônia por meio dessa canção, consideramos diferentes abordagens para o arranjo. A concepção do arranjo foi guiada pela ideia de utilizar uma orquestração com poucos instrumentos, excluindo percussão e harmonia. Para manter as características rítmicas do gênero, optamos por utilizar instrumentos melódicos. O arranjo foi composto para duas flautas transversal em dó, dois clarinetes em si bemol, dois saxofones alto, dois saxofones tenor, dois trombones, uma tuba e dois violinos. Esses instrumentos desempenham papeis harmônicos, rítmicos e solísticos ao longo da música.

O propósito deste pequeno estudo e do arranjo consiste na releitura de uma das melodias mais emblemáticas no contexto da região paraense, mantendo-se os objetivos da composição original mesclados com o brega, sua versão mais popular. Nosso empenho, embora sujeito à instrumentação escolhida, concentrou-se em desenvolver uma sequência sistemática das linhas melódicas e harmônicas com intuito de transmitir o romantismo que permeia a letra e a melodia da canção, buscando capturar sua essência e proporcionar uma nova perspectiva aos ouvintes e instrumentistas.

Da bossa ao brega

Podemos observar como a modernização da Amazônia, impulsionada pelo processo de globalização intensificado após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), frente aos contextos culturais locais, fomentou a música popular paraense na década de 1950, que passa a ser marcada por influências afro-latino-caribenhas e por outras que chegavam de todos os lugares do mundo; isto é, foi nesse ensejo que se acarretaram novos desdobramentos para a arte produzida no Pará (Caraveo e Chada, 2018).

Nesta direção, se corrobora a construção de uma identidade cultural a partir da música popular paraense do século XX (Da Costa, 2016), quando diversos artistas da região, de gerações distintas, passam a gravar releituras da canção do brega Ao Pôr do Sol, por exemplo, Lia Sophia em seu álbum Amor Amor no ano de 2014; Fafá de Belém em Do Tamanho Certo para o Meu Sorriso no ano de 2015; entre outros. Nesse ensejo, no arranjo apresentamos uma nova instrumentação para a canção, ressaltando elementos da música original, como as dissonâncias da Bossa Nova e as influências rítmicas do brega paraense. A letra está assim disposta:

Ao Pôr do Sol eu vou te dizer
Que o nosso Amor não pode morrer
Quando as estrelas no céu despontarem
Vão dizer que a lua eu fiz para você
E então eu serei, amor, o sereno
E o luar será você
Ardente de paixão que raia no meu coração
(Firmo Cardoso e Dino Souza)

A canção Ao Pôr do Sol, assim como conta Firmo Cardoso (2021) em entrevista ao programa de TV É do Pará, foi composta no município de Mosqueiro, na Praia de Carananduba, em parceria com seu amigo Dino Souza. O objetivo da canção era celebrar todas as formas de amor entre duas pessoas por meio de melodias suaves em uma base de Bossa Nova. Interpretamos que a letra da canção evoca uma atmosfera romântica ao utilizar a metáfora do pôr do sol que pode simbolizar reflexão ou transição. Com o uso de frases que remetem a uma promessa de amor eterno, se contrasta com a brevidade do entardecer, reforçada por uma personificação da natureza, ao retratar as estrelas e a lua representadas como sujeitos que expressam sentimentos compartilhados com os humanos. O refrão traz uma metáfora do amor também personificado entre o “sereno” e o “luar” que estão “ardentes de paixão”. Desse modo, nota-se que a fusão entre o eu lírico e seu amor é perpetuada em uma união íntima, enquanto a imagem da paixão ardente reflete a intensidade do sentimento.

Atravessando gerações, essa canção paraense foi amplamente divulgada em todo o país pela marcante voz do cantor Teddy Max (1953-2008) que gravou uma versão sugerida para seu primeiro álbum, por Aurino Quirino Gonçalves, o mestre Pinduca, que enxergou a possibilidade de somar a letra e a melodia românticas aos ritmos festivos característicos da região Norte, referindo-se ao brega, no ano de 1987 (Figura 1) (Pinduca, 2021; Max, S/D). Cabe refletir. Sua letra já foi interpretada em diversos idiomas estrangeiros, incluindo inglês, francês e japonês.

Captura de vídeo de reportagem

Ao Pôr do Sol presente na contracapa do álbum Teddy Max: as melhores, em 1987. Fonte: Portal G1 PA, 2021. Captura de vídeo de reportagem

Relendo Ao Pôr do Sol

Para a concepção de nosso arranjo, mantivemos a estrutura da música gravada em brega, que consiste em três partes: A-B-C. A primeira parte (A) corresponde à primeira parte da estrofe da canção, no tom inicial de Dó Maior. A segunda parte (B) é onde ocorre a modulação para Mi Bemol Maior, correspondente à segunda parte que compõe a estrofe. E a parte C é o refrão, que retorna à tonalidade inicial da música.

Esquema de modulação entre as partes A-B-C na canção “Ao Pôr do Sol". À esquerda, tonalidade inicial em dó Maior (primeiro compasso). No centro, primeira modulação para a tonalidade de mi bemol Maior (vigésimo sexto compasso). À direita, segunda modulação que retorna ao tom inicial, dó Maior (trigésimo quarto compasso).

Fonte: Autores, 2024

Inicialmente, foi elaborado um breve prelúdio para introduzir a música, no qual quase todos os instrumentos utilizados na orquestração são incorporados. Ao final do prelúdio, foi inserida uma transição que evoca uma virada comumente encontrada no estilo brega. No entanto, optou-se por utilizar instrumentos melódicos para essa transição. Ela começa com as flautas, passa para os saxofones alto e termina nos saxofones tenor, preparando o terreno para a introdução da música gravada em brega.

Figura 3: Trecho final do prelúdio que irá dar encaminhamento à introdução, o trecho simula uma virada percussiva com alternância de instrumentos melódicos

Fonte: Autores, 2024

Na segunda frase da introdução, os instrumentos, que anteriormente estavam unidos em uníssono, se separam em vozes distintas. Os trombones iniciam um ostinato que busca imitar o papel desempenhado pela caixa da bateria na versão original da música (Figura 4). Esse ostinato é mantido durante boa parte do arranjo, proporcionando uma continuidade e familiaridade com a sonoridade original.

Figura 4: Disposição rítmica feita pelos trombones para acompanhamento do decorrer do arranjo.

Fonte: Autores, 2024

Finalizada a introdução, a parte A da primeira estrofe é solada pelo violino – com acompanhamento harmônico dos saxofones – e a tuba desempenha o papel do contrabaixo elétrico, função que mantém ao longo de todo o arranjo. Quando ocorre a modulação para o trecho B, a melodia é assumida pelo primeiro trombone até o início do refrão, onde o solo passa para os saxofones. Na reexposição do refrão, a melodia principal é conduzida pelas flautas, enquanto os saxofones começam a executar um ostinato que remete ao dedilhado da guitarra no brega (Figura 5). Esse ostinato, assim como o dos trombones, permanecerá por boa parte do arranjo. Ao finalizar o refrão e retornar à introdução, os saxofones e os trombones continuam executando seus respectivos ostinatos, e desta vez, a introdução é conduzida pelas flautas e violinos.

Figura 5: Disposição rítmica feita pelos saxofones para acompanhamento do refrão.

Fonte: Autores, 2024

Na repetição do trecho A, a melodia é feita por um dueto de clarinetes, enquanto todos os outros instrumentos oferecem apoio rítmico e harmônico. Quando se modula para o trecho B, o papel solista é ocupado pelo primeiro sax tenor até o início do refrão onde a melodia inicialmente fica a cargo de todos os saxofones e posteriormente, as vozes se repartem com o primeiro alto, ficando com a melodia principal. Já na reexposição do refrão, o solo fica novamente a cargo das flautas até a finalização do refrão, com os violinos e flautas fazendo a melodia na reexposição da introdução que também é a finalização da música. No final da segunda frase da finalização a sequência harmônica é alterada, onde se substitui o terceiro acorde da sequência resultando em um caráter diferente da introdução e proporcionando um final onde os violinos e flautas caminham para o agudo, finalizando, assim, a música.

Considerações finais

Na contemporaneidade cultural que vivemos, uma característica relevante observável é a globalização e a desterritorialização de alguns valores culturais. O consumo de música pela grande massa, exprime potenciais possibilidades de manifestações culturais-identitárias por meio dos sons. Isso significa que, atualmente, as fronteiras geográficas não limitam mais a circulação e a mistura de diferentes expressões culturais, resultando em uma multiplicidade de influências em constante interação. Os processos de ressignificação musical, por não se revelarem de forma contínua, permitem que os estilos e a cultura fluam pelas margens, sempre deixando espaço para novas significações indeterminadas, como um ciclo (De Souza, 2009).

O brega, no entanto, em muitos casos, diferentemente da Bossa Nova, não se baseia apenas nas características intrínsecas da música em si, mas sim na interpretação de quem a executa (De Souza, 2009). Mesmo carregado de estigmas sociais por ter como características culturais das regiões e classes sociais marginalizadas (De Souza, 2009), é inevitável reconhecer o que brega como um gênero musical fez à Ao Pôr do Sol na Amazônia paraense.

Nesse sentido, buscamos com este trabalho, evidenciar a canção romântica Ao Pôr do Sol composta por Firmo Cardoso e Dino Souza com influências da Bossa Nova na década de 1980, que, em síntese, Teddy Max, com sua marcante voz, a popularizou em 1987 para além das fronteiras paraenses. A fusão entre a letra romântica e as melodias festivas do brega, sugerida por Pinduca, deu à canção uma dimensão multigeracional e multicultural. E por fim, nosso arranjo passeia por estas concepções, criando novas possibilidades de apreciação de uma das mais “clássicas” canções do brega paraense.

Referências

Rafael Leite da Silva é músico e graduando em Licenciatura em Música na Universidade do Estado do Pará (UEPA).

Antonio Marcos Araújo Guimarães é bacharel em Ciências Sociais e mestrando em Antropologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), músico e graduando em Licenciatura em Música na UEPA.

Gabriel Leite da Silva é músico e graduando em Licenciatura em Música na UEPA.

 

Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Arte: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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