Um conto sobre a preservação da floresta e sua gente, por Sandra Godinho

Montagem: Fabricio Vinhas

Montagem: Fabrício Vinhas

Autora de “A secura dos ossos”, um romance entre os espíritos da floresta Yanomami finalista do prêmio Leya de 2022, a escritora Sandra Godinho escreveu um novo conto dedicado à maior floresta tropical do mundo. “A (Im)provável Amazônia”, que a revista Amazônia Latitude publica agora, narra, em um cenário distópico, um futuro pós-destruição onde os protagonistas são os urubus, os responsáveis pela última etapa da limpeza terrena. A escritora atribui o texto a duas fontes.

“Nesses últimos tempos, a minha preocupação tem sido com a preservação do meio ambiente, os povos originários e seus saberes. Coincidentemente, recebi um exemplar de um escritor amazonense, ‘Noturno após o mar’, de Alencar e Silva (1930), que tinha um dos contos que me remeteu a essa temática, apesar de ser um livro publicado no século passado”, descreveu a autora. “Então, resolvi homenagear o autor, a região e, ao mesmo tempo, resgatar a temática, aparentemente já em voga desde o século XX”.

Em outubro, a escritora foi entrevistada no LatitudeCast. Ouça o episódio completo:

 

(Im)provável Amazônia 
Sandra Godinho

 

Após os desmatamentos, o fogo que dominou a terra com garras douradas, o calor que assolava o planeta, a escassez das nascentes e a contaminação dos poucos igarapés por mercúrio, tinha chegado a vez dos urubus. Não era assunto novo, Alencar e Silva já tinha reparado e escrito sobre esses eficientes colaboradores da limpeza pública em seu livro[1], alegando que tinham se perdido da raça. Somente isso explicava a negação das aves de rapina em debicar os restos. Os urubus, que sempre farejaram o ar para achar carniça, tinham entrado em greve nas cidades de Nova Iorque e Los Angeles, a ponto de as autoridades americanas, desesperadas, se interessarem em importar os nossos, amazonenses, ao preço de 70 dólares cada.

Ninguém deu bola, nem entendeu o motivo pelo qual esses vorazes servidores da humanidade tinham recusado tamanha fartura e prestígio. Os empresários viram nisso o fim do mundo e lamentaram o tanto que deixariam de vender e consumir, lastimaram os negócios abortados tão precocemente. Os crentes apontavam os evidentes sinais do apocalipse e se consternaram pela vida de muitas rezas e omissões à proteção da natureza e dos povos originários, os únicos a preservar as florestas por sua compreensão do sagrado, seus corpos e almas pereciam por antecipação. Os pessimistas, cansados de ser gente e ver a tristeza nascida em cada pingo, chama ou rosto, lamentavam-se. Os otimistas se puseram a beber, as almas bêbadas querendo partir em paz.

A humanidade, desumanizada, ficou sem entender a importância de preservar. Sem entender que o presente dia era a culminância de um passado, sem entender que também podia ser a semente de outro futuro, um mais coletivo e reciclável. Sem entender que uma vida inteira podia caber dentro de um tronco, que árvores podiam plantar arco-íris aos nossos pés. Um novo futuro, mas ficaram sem entender.

 Só tinham mãos de cheirar a terra e a fumaça que se alastrava pelos continentes e, assim, enevoados e cegos, se movimentam pelas sombras, cansados do calor e do sol. Ninguém entendeu que os urubus, última etapa da limpeza humana, também eram responsáveis pela transformação de uma vida em outra. Se se recusavam a debicar as carcaças era porque já sentiam os microplásticos nos organismos, contaminando a carne, então se postavam pairando no céu, em greve de fome, mantendo a morte à espera, mas com total senso de controle. Postavam-se assim, em espera estóica, aguardando até que a luz se fizesse e acendesse em cada ser humano a compreensão de que a luta não era só de deles, mas de todos, pelo pão nosso de cada dia.

[1] Referência ao livro “Noturno após o mar”, sobre o conto “O caso dos urubus”. O livro, um exemplar raro, foi dado a mim por Rita de Alencar Clark, sua filha. Alencar e Silva foi um dos fundadores da Academia Amazonense de Letras.

Biografia da autora: Nascida em 1960 em São Paulo, Sandra Godinho é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos. É membro número 78 da Academia Internacional de Literatura Brasileira (AILB). Publicou em 2016 “O poder da fé”, e, em 2017, “Olho a olho com a Medusa”. Em 2018 foram “Orelha lavada, infância roubada”, pelo qual recebeu  Menção Honrosa no 60º Prêmio Literário Casa de Las Américas (2019). “O verso do reverso” (2019) ganhou o Prêmio Regional de Melhor Livro de Contos da Cidade de Manaus. Em 2019 publicou “Terra da Promissão” e, em 2020, “As Três Faces da Sombra”. Seu romance “Tocaia do Norte” (2020) venceu o Prêmio Cidade de Manaus 2020 e foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2021. No mesmo ano lançou os romances “Sonho negro” e “A morte é a promessa de algum fim”, com este vencendo o Prêmio Cidade de Manaus 2021, e também o Prêmio Focus Brasil NY/AILB 2022. Em 2022 publicou “Estranha entre nós”. Tem ainda dois romances finalistas do Prêmio Leya de 2021 e 2022, “Memórias de uma mulher morta” (inédito) e “A Secura dos ossos”, lançado também em 2022 pela Editora Patuá e finalista do Leya do mesmo ano.
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