‘Tuyabaé cuaá’, uma obra limite na poesia cantada amazônica e brasileira

Walter Freitas nos apresenta uma Amazônia a partir de uma recriação do falar de algumas regiões paraenses

Tuyabaé cuaá e Walter Freitas
Foto: Reprodução/YouTube. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.
Tuyabaé cuaá e Walter Freitas

Foto: Reprodução/YouTube. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude.

RESUMO:

  • O texto destaca Walter Freitas como um dos compositores-poetas mais radicais da arte contemporânea brasileira, especialmente por meio de seu álbum “Tuyabaé cuaá” e seu segundo disco “Car’nauba a’ et’o-gûatá”;
  • Freitas cria uma obra-limite na moderna canção brasileira, partindo da tradição da canção amazônica, mas estabelecendo cortes radicais, tanto musicalmente quanto literariamente;
  • O artigo analisa a influência de escritores como Guimarães Rosa e Dalcídio Jurandir na obra de Freitas, destacando sua técnica de apropriação parafrásica para atualizar a tradição da poesia cantada brasileira, tornando sua obra um gesto de ruptura e reinvenção.

***

Quem conhece a obra de Walter Freitas? A resposta é certamente uma das mais injustas na arte contemporânea brasileira. No entanto, basta “Tuyabaé cuaá”, seu único CD lançado, para incluí-lo entre os mais radicais — senão o mais radical — de nossos compositores-poetas. É a partir da indagação do poeta Edson Coelho que este texto busca passear por esse álbum 37 anos após seu lançamento e cuja tradução seria a sabedoria dos antigos pajés, que este ano ganha uma reedição em vinil. E alguns meses após compositor lançar seu segundo disco, “Car’nauba a’ et’o-gûatá”.

Trata-se de uma obra-limite no campo da moderna canção brasileira, partindo de uma tradição instituída da moderna canção amazônica, ou paraense, mas estabelecendo aí um corte radical. Meu enfoque será mais literário, porque é a minha seara. Apesar do autor afirmar que seu trabalho tem o centro na música, discordo, pois sua experiência poética cantada utiliza recursos de vanguarda para literatura modernista, como será visto.

Walter Freitas nos apresenta uma Amazônia a partir de uma recriação do falar de algumas regiões paraenses, se aproximando do que fez Guimarães Rosa em “Grande Sertão: Veredas”, mas com o diferencial de que no livro de Rosa, estamos em um texto em prosa escrita, em que o leitor pode dar seu o ritmo de leitura e fazer retornos, enquanto que Walter trabalha mensagens mais metafóricas e com um canto que explora extensão vocal humana, para além da tradição da MPB desde a bossa-nova, que busca uma voz mais próxima da coloquialidade, o que torna o texto bem mais complexo de ser compreendido.

Em termos da rítmica, ele também se diferencia da MPB, pois não faz a apropriação ou estilização de ritmos populares, como muitas vezes é acontece na tradição da moderna tradição, criando uma musicalidade diferenciada e inusual. A presença de dois grandes poetas nesse disco e a própria trajetória de W. Freitas como romancista e dramaturgo denuncia uma grande ligação com a palavra literária.

Ao lado de uma música que escapa à simples estilização das composições das camadas populares e que ao mesmo tempo se apresenta como uma criação de vanguarda, temos narrativas que são carregadas dos recursos da poesia lírica, como aliterações, metáforas, imagens míticas surreais, paronomásias, repetições, dentre outras, que tornam a compreensão da narrativa não tão transparente, como seria comum às canções de um modo geral. Mas voltado à questão sobre a interação entre letra e música na canção aqui estudada, é interessante observar que a submissão da letra à música não se limita apenas o seu encaixe na melodia, pois a própria palavra interage com a música como uma espécie de instrumento, chegando a se tornar aquilo que Schafer denomina de objeto sonoro1 SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. 1991, p 177., em que a qualidade sonora da palavra é explorada musicalmente. Performativamente, a mistura de timbres e o uso da técnica vocal falsete, criam uma atmosfera sonora que parece incorporar a mistura de componentes culturais e de sintagmas e os lança aos ouvidos de forma ousada e inesperada. Para Marlise Borges, o uso de falsete desqualifica a canção a fazer parte do grupo da música popular, pois segundo a mesma, a “impostação da voz popular não se presta a essa região” (BORGES, 2010).

Eu era ainda um jovem aspirante a pesquisador e estava tentando entender mais a fundo o trabalho poético cantado de Freitas. Da longa conversa que tivemos, uma resposta eu não esqueço. Foi quando eu perguntei quais seriam as suas influências literárias. Ele pacientemente me respondeu que havia duas principais: Guimarães Rosa e Dalcídio Jurandir. O diálogo com aquilo que Candido chamou de transfiguração regionalista rosiana (CANDIDO, 1989, p. 206) era algo que eu já havia notado pela recriação do falar amazônico em termos poéticos, mas a influência de Dalcídio Jurandir, de quem eu havia lido à época apenas “Chove nos campos de cachoeira”, não me parecia clara, a não ser pelo motivo amazônico das letras.

Envergonhado por não ter percebido a referência ao trabalho do autor marajoara nas letras, afora as temáticas amazônicas, e sem querer incomodar demais o artista, fiquei com a aquela resposta atravessada em mim por muito tempo. Mais de dez anos depois, eu faria meu doutorado estudando a obra “Belém do Grão-Pará” (1960), de Dalcídio Jurandir, o que me fez querer ler todo o Ciclo do Extremo Norte. Foi então que aquela resposta de Walter Freitas ficou clara, pois percebi ser aquele álbum um trabalho de literatura cantada contemporânea, em que há o uso da técnica da apropriação.

Apropriação parafrásica em Walter Freitas

Após ler todo o Ciclo do Extremo Norte, percebi que Walter Freitas havia também colocado várias passagens e imagens poéticas do ciclo dalcidiano em suas composições, fazendo algo que o próprio Dalcídio Jurandir já havia utilizado, o recurso da apropriação, quando colou uma passagem do conto “O voluntário” no romance “Primeira Manhã”2A primeira pesquisadora a perceber a presença do texto inglesiano em Dalcídio Jurandir por meio da apropriação parodística foi Marli Furtado, em seu artigo “Abguar Bastos e Dalcídio Jurandir: Vozes modernas na Amazônia Brasileira”, em que a pesquisadora mostra a colagem de uma passagem do conto “O voluntário” no romance dalcidiano “Primeira Manhã” (1967). Revista Brasileira de Literatura Comparada. Nº 25, 2014., mas para fins paródicos e questionadores da identidade amazônica. Walter Freitas vai também trabalhar com a apropriação, mas com fins parafrásicos.

A técnica utilizada pelo músico e escritor se enquadra naquilo que Affonso Romano de Sant’Anna chamou de “apropriação parafrásica” (1991, p. 54), tendo sido antes utilizada na literatura brasileira por Jorge de Lima, em seu “A Invenção de Orfeu”. Segundo Sant’Anna, “ao contrário da apropriação parodística, que inverte o significado ideológico e estético do texto, a apropriação parafrásica prolonga o texto anterior no texto atual” (SANT’ANNA, 1991, p. 56). É possível perceber, portanto, que o recurso utilizado liga o trabalho de Freitas ao texto dalcidiano. Vejamos alguns exemplos de apropriação parafrásica nas composições do “Tuyabaé Cuaá”.

Na composição “Janataíra” temos o verso “não, mãe do rio, não vai embora com as tuas águas, com as tuas águas”. Este verso, na verdade, é parte do romance dalcidiano “Ponte do Galo” (1971) (JURANDIR, 1971, p. 56). Nas linhas dos parágrafos do romancista transformadas em verso cantado, já há o risco da modernidade sobre os rios da Amazônia, ainda mais agora em tempos de crise climática. Vemos, portanto, que a preocupação com a transformação da Amazônia em ruína já estava presente no primeiro modernismo paraense por meio da obra de Dalcídio Jurandir. Outra apropriação parafrásica do mesmo romance está na canção “Fruta Rachada”. A expressão “mas se asserene, se asserene”, na referida canção, e o próprio título dialogam com esta passagem em que está o protagonista Alfredo tem um encontro,

Num repente a boca-de-abio larga-se, lhe acena, adeus, correu nem bem sumiu voltou com a saia em cima, como uma bandeja, cheia de maracujás. Os dentes de fora rosto dela aquele beiço gomudo, os dentes falando mais que as palavras, a face de quem agora mesmo apanhou sol, e suada num se dar tão mansinho que ao sobressaltado ia acudindo: mas se asserene se asserene. Que se asserenaram, ela, calada, lhe abria o maracujá lhe dando na boca. (JURANDIR, 1971, p. 71).

Quando a apropriação não se dá pelo texto em si, se dá pelas imagens. A primeira imagem dalcidiana encontrada nas composições de “Tuyabaé Cuaá”, e que chamou minha atenção sobre o diálogo da obra de Walter Freitas com o texto do romancista marajoara, foi “Igaçaba”, que me esclareceu sobre a relação do título da canção com o início do texto, “cuia leva a vela/acha o nosso mor’to”. O trecho faz remissão a uma passagem do romance “Marajó” (1947),

As velhas aconselharam a vela de cera dentro de uma cuia que flutuou no rio. Onde parasse, ali estava o corpo do afogado. As montarias vêm e vão com a noite caindo. […] Uma hora depois, acima do caranãzal, Ramiro sente um peso na tarrafa, quer saltar n’água, mergulhar. […] — Tás doido, Ramiro. Olha piranha. […] A montaria avança, Ramiro joga a tarrafa, outras tarrafas se espalham no rio e Orminda ouve o xoá! da lúgubre tarrafeação, sentada com outras mulheres na beira (JURANDIR, p. 2008, 328).

No referido romance, Gaçaba ou Igaçaba é um vaqueiro que cai no rio e é devorado pelas piranhas, sendo utilizada a vela na cuia como recurso para encontrar o morto. Mais tarde, descobriria que Walter Freitas, que também é dramaturgo e ator, havia adaptado o romance para o teatro. Na canção, ele se vale desse motivo das pessoas que desaparecem no fundo dos rios para criar a sua narrativa cantada, tendo como protagonista o encantado Urutá. Percebe-se, portanto, que a apropriação parafrásica se dá juntamente com uma intensificação das imagens poéticas amazônicas dalcidianas.

Entretanto, é importante observar também que, apesar de sua obra estar embebida do universo amazônico, não há em Walter Freitas uma idealização ou uma romantização da região, idealização essa tão cara aos que querem vendê-la como o grande paraíso exótico a ser visitado e explorado.

Na sua obra, vemos que a Amazônia não é um universo homogêneo, mas sim um mundo feito de vários mundos cheios de conflitos, que se foram inserindo aqui a partir da inserção da Amazônia na moderna ordem capitalista, e que ela possui uma história própria, fazendo, inclusive, referência à colonização da província do Grão-Pará pelo Brasil, como afirma Márcio Souza, e o esquecimento dessa história de luta, “ouro dös cabanos deste-um meu Pará/ trago ‘scondidito im meä concha arambá/ três guer’ras tudas contra este-um Brasil/ buca dë abiu, buca dë abiu/, boca de abiu/ boca de abiu”. A expressão boca de abio remete a liga da fruta que faz os lábios ficarem como que colados, remetendo, portanto, ao silêncio, em relação à Cabanagem.

É possível afirmar que no álbum ora estudado, diferentemente do que aconteceu com a passagem do texto literário do papel para o canto, desde de Vinícius de Moraes, a literatura cantada de Walter Freitas não significou uma transparência comunicacional coloquial. Assim, seu trabalho poético e linguístico juntamente com seus parceiros, faz com que, diferentemente da poesia cantada em geral na MPB, o ouvinte tenha que lançar mão do libreto explicativo do encarte, o que torna sua obra híbrida, pois sua fruição se torna auditiva, mas também de leitura escrita.

Um exemplo dessas criações poéticas que demanda atenção do ouvinte/leitor, em que se destaca, por exemplo, os neologismos está na canção “Tiã Tiã Tiã”. Ela começa com o verso em língua espanhola “Soy brasileño lindo”. Este verso poderia caracterizar uma contradição, pois o sujeito poético se proclama brasileiro, mas o faz na língua que expressa a cultura da maioria de seus países vizinhos. Nesse sentido, o texto retoma as reflexões de Euclides da Cunha, para quem a Amazônia não estava consolidada em relação à nacionalidade brasileira. Os elementos representativos da cultura latina, caribenha e africana são mostrados por meio de neologismos:

Toco tambor’ / Também toContigo mamBurocô / RumBoleroLero tango e agogô / ChulambaD’Angola conga nagô nagô/ Burundum /…/ Merengando carimBolando eu vou / No catuMaracasCatá xangô / Quë më guar’da a pele d’África a cor’ / Quë më dá Jamayca e eu toco tambor / Badauê (FREITAS; GOMES, 1987).

Outra referência literária modernista amazônica no álbum de Walter Freitas é a canção “Oração da Cabra Preta”, homônima ao título de um poema publicado pelo poeta Bruno de Menezes, no livro “Batuque”, primeira obra poética afro-brasileira modernista. Bruno de Menezes fez o trabalho de colagem da oração praticada por mestre Desidério, pajé ou pai de santo que viveu em Belém no início do século XX, colocando-a em seu poema. Mestre Desidério, pois o mesmo é a personagem do poema “Oração da Cabra Preta”, de Bruno de Menezes, incorporado oito anos depois à segunda edição do livro Batuque. No capítulo “A pagelança”, da obra “País das pedras verdes” (1930), de Raimundo Moraes, o autor afirma sobre o feiticeiro,

Amores mal sucedidos, negócios mal parados, política mal encaminhada, conduzem as victimas até á barraca do feiticeiro installado nos suburbios e arredores das cidades da Planicie. Em Belém havia um certo Desidério, de saudosa memória, que não só predisse o destino de vários cidadãos, mais ou menos chibantes, como receitou infalíveis banhos de cheiro contra a urucubaca de cavalheiros que não acertaram no bicho (MORAIS, 1930, p. 230).

Walter Freitas, por sua vez, musicou a referida oração, que possui um registro muito semelhante feito por Mário de Andrade, inserido no livro deste pesquisador e escritor paulista que trata de músicas de feitiçaria, com diferença de quem em Andrade o texto aparece em prosa (ANDRADE, 1963, p. 124-123).

Vê-se, portanto, que, apesar da experimentação estética que estabelece uma ruptura com o que se entendia até então como MPB enquanto poesia cantada, há um estreito diálogo entre a Literatura modernista amazônica e o trabalho de Walter Freitas, em um processo de atualização da tradição poética cantada. Nesse sentido, a sabedoria dos antigos pajés que está no título do álbum nos proporciona uma leitura polissêmica: pode ser mesmo esse pajé indígena, o que fica evidente pelo não uso da língua portuguesa no título; também pode remeter a essa pajelança existente até hoje nas cidades e vilas amazônicas, como Mestre Desidério; mas também pode se referir a esses primeiros intelectuais modernistas amazônicos, Dalcídio Jurandir e Bruno de Menezes, com os quais Walter Freitas se identifica.

Concluo afirmando que há muitas vozes em cada composição do álbum: pajés, bois-bumbás, pássaros juninos, encantados, guerrilheiros, cabanos, mães d’água, dentre outros. O autor se apropriou de mitos, narrativas orais, romances, poemas, orações, dialetos, além elementos oriundos de África e Caribe, o que torna a escuta dessa obra um desafio. Esses signos foram colhidos e retrabalhados em seus processos criativos que buscaram fugir ao lugar-comum do que se chamou MPB, caracterizando então a obra como um gesto de ruptura e ao mesmo tempo de reinvenção da tradição da poesia cantada brasileira.

Josiclei de Souza Santos é professor pesquisador e extensionista, doutor em Literatura, poeta com três livros lançados, contista com um livro lançado, crítico literário, artista visual, produtor e letrista. Possui graduação, mestrado e doutorado em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Atualmente, é professor doutor da UFPA, tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura brasileira, atuando principalmente na Amazônia, cultura, erotismo, processos identificatórios e interartes.

 

Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

Você pode gostar...

Translate »