“Nós vamos ter que pensar outro processo civilizatório”

problema ambiental
Em entrevista, sociólogo da UFAM fala sobre o processo de desenvolvimento econômico, conflitos socioambientais e a crise da razão no estado do Amazonas

No ar, o segundo Latitude Podcast! Programa no qual debates os processos históricos, socioculturais e políticos da região amazônica, buscando examinar o desenvolvimento de uma violência lenta sobre seus territórios.

Nesse programa conversamos com Antonio Carlos Witkoski, Dr. em Sociologia pela Universidade federal do Ceará e professor titular do Departamento de Ciências Sociais da UFAM, onde atua em diversos programas de Pós-Graduação. O professor desenvolve pesquisas na área da Sociologia, Sociologia Rural e Sociologia Ambiental dentro dos seguintes temas: desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento, etnoconhecimento, adaptabilidade à várzea amazônica, labor, trabalho, política, entre outros. Além disso, fez parte da Sociedade Brasileira de Sociologia entre o período de 2007 e 2009, e também é autor de oito livros, sendo “Território e territorialidade na Amazônia: formas de sociabilidades e participação política”, publicado pela editora Valer em 2014, sua obra mais recente.

Na entrevista, realizada em Tabatinga-AM, durante o Seminário Internacional de Ecologia Política, Witkoski falou a respeito da formação social dos ribeirinhos; da conciliação entre povos tradicionais e sociedade ocidental; e também sobre a crise de civilização pela qual passa a humanidade.

Formação histórica do ribeirinho

Especialista em questões relativas à adaptabilidade dos povos amazônicos à regiões de várzea,  O sociólogo afirma que o contato a chegada dos portugueses à Amazônia produziu o fenômeno que chama de “fricção interétnica”, um choque entre a racionalidade eurocêntrica colonial com a racionalidade ali instalada. O professor ainda aponta para o fato de que esse contato só foi possível através dos rios, portanto (obviamente) os primeiros habitantes da Amazônia a entrar em contato com o colonizador foram os ameríndios de várzea.  A invasão européia acabou provocando um contexto de conflitos e inserções culturais.  Mas como bem sabemos, esse contato não foi de forma alguma pacífico.

“Uma racionalidade de projeto colonizador que tem o arcabuz na mão direita e o crucifixo na mão esquerda, e eles entram triturando os ameríndios de várzea. E eu diria que, nesse processo, a cruz se faz mais importante do que o arcabuz. Porque a cruz tem a ver com a dominação do poder simbólico, ideológico. E o arcabuz tem a ver com o poder físico e com o poder material. Você pode aniquilar o outro, matar o outro. Mas com a religião você doméstica as subjetividades humanas dos ameríndios das várzeas”, afirma o sociólogo.

Os conflitos socioambientais originados do projeto de colonização (na região amazônica) fomentaram diversas situações e até mesmo sujeitos – caso dos ribeirinhos, caboclo fruto de relações sexuais entre portugueses e ameríndios de várzea. Mas a relação entre as partes foi além do sexo e da simples subordinação dos ameríndios em questão. Segundo o professor, partindo da necessidade de domar a cultura local através da religião, essa relação pode ser dividida em três situações: aqueles que se dobraram e colaboraram com o projeto colonial; aqueles que apresentaram resistência e entraram em confronto com o projeto colonial; e aqueles que fugiram para terras secas, ainda fora de alcance naquele momento do processo civilizatório. Dessa forma, o ribeirinho se mostra como um produto tanto biológico quanto cultural desse encontro de civilizações através de um complexo processo histórico.

“Mas algo que fica muito claro nesse encontro é que os ameríndios das várzeas já tinham uma maneira de manejar os recursos naturais e de viver de uma maneira muito própria dos ribeirinhos. Os ribeirinhos não são ameríndios, mas eles herdaram (do ponto de vista cultural) muitos dos hábitos que essa população ameríndia tinha nesse momento do contato”.

Os hábitos em questão podem ser traduzidos em práticas como os experimentos de manejo do pirarucu feito em reservas de desenvolvimento sustentável. Essa espécie, ameaçada pela pesca predatória, só pode ser comercializada com o selo de unidades de conservação, pois  não se reproduz até os cinco anos de idade – essa medida foi adotada para preservar a espécie da pesca indiscriminada, que preda qualquer espécime, independente de sua idade ou densidade demográfica.

O processo de manejo feito em unidades de conservação acabou por se replicar em outras comunidades. Para a racionalidade econômica que dita o ritmo da vida na sociedade ocidental, o pirarucu é medido pelo seu valor de mercado. Já para os ribeirinhos, que possuem uma relação mais próxima com  meio ambiente, a preservação da biodiversidade está diretamente ligada à manutenção de sua própria vida.

“A racionalidade econômica não está preocupada com isso, mas a racionalidade ribeirinha está, porque ela trabalha com a dimensão do tempo ecológico, […]em que entender o tempo de produção da natureza é absolutamente importante para você fazer um bom usufruto dos bens que a natureza fornece a você. Então essa mentalidade, essa cosmologia, essa visão está muito presente nas populações ribeirinhas”, constata Witkoski.

Na mesma linha de pensamento em que trabalha Enrique Leff, o sociólogo defende que a atual crise ambiental pela qual passamos é na verdade uma crise no seio do modelo de civilização ocidental.

“Então esse processo civilizatório. Uma das discussões que nós fazemos […]é que a natureza da crise ambiental no mundo não é uma crise do ambiente, é uma crise da civilização e da racionalidade que está por trás desse processo civilizatório. Então se a gente não questionar a natureza dessa racionalidade que tem a ver com o advento do racionalismo moderno e da forma que esse racionalismo foi se desenvolvendo, que tem a ver com um conjunto bem diverso de filósofos que fizeram a fundação do racionalismo moderno”.

Conciliação entre as racionalidades (provisório)

A Amazônia esteve inserida na dinâmica econômica global em diversos momentos da história. Notadamente, os períodos de maior fluxo econômico e migratório foram os dois ciclos da borracha – ambos seguidos de depressão econômica no Estado após seu encerramento. Durante a ditadura militar (1964-1985), o governo implementou a Zona Franca de Manaus, pólo industrial criado para promover o desenvolvimento da região em termos econômicos e urbanos.  Segundo Antônio Carlos Witkoski, nesse período, o projeto de expansão capitalista percebeu uma farta oferta de mão-de-obra barata e desorganizada espalhada pelo Amazonas, no entanto, detentora de grande destreza manual. Começava ali a formação da atual cidade de Manaus, um grande centro urbano que, por conta da Zona Franca, atraía migrantes de todo o Estado.

Porém, a intenção do governo de levar o desenvolvimento ao estado do Amazonas não contava com um plano sólido – o projeto urbano-industrial contava com distritos agropecuários, que nunca saíram do papel, a não ser pelo município de Rio Preto da Eva. Isso acentuou a concentração populacional na cidade de Manaus e proporcionou as condições necessárias para um crescimento urbano completamente desordenado, deixando de lado populações tradicionais e o meio rural – padrão que se repete em tantas outras metrópoles brasileiras.

“Então como isso não foi criado em outros municípios, o desenvolvimento rural no estado do Amazonas sempre foi deixado a sua própria sorte. Foi criado em  certo momento o Zona Franca Verde, e isso aconteceu em algumas áreas, mas foi uma iniciativa que aconteceu e “desaconteceu” quase que imediatamente. Então o que eu estou dizendo aqui tem a ver com a questão de um projeto de desenvolvimento nacional. Eu acho que Brasil precisa de um projeto de desenvolvimento nacional e a crítica vai até o governo do PT, antes do governo do PT… Porque as demandas que nós temos foram se acumulando historicamente”, afirma o professor Witkoski.

O plano de desenvolvimento nacional segue a racionalidade da globalização, que por sua vez propõe a mesma forma de desenvolvimento para todas as regiões do mundo. Essa lógica, pautada no consumo como parâmetro de qualidade de vida, prega o individualismo e desconsidera a diversidade humana e natural, aplicando um modelo de civilização homogêneo, alheio à tradição, aos biomas e demais particularidades de cada região. 

Na concepção de Witkoski, esse modelo homogêneo de sociedade é falho no próprio conceito. Ao desconsiderar as particularidades dos biomas, além de promover a degradação dos mesmos, acaba por fracassar em seu propósito ideal, pois acentua a desigualdade social através do acúmulo de bens nas mãos de poucos, gerando uma vasta gama de conflitos socioambientais, o que torna um modelo homogêneo inviável. 

Para ele, uma saída pode ser o desenvolvimento de políticas em torno de Eco Regiões, conceito que prega uma forma de crescimento que considera as particularidades de cada bioma sem agredir o meio ambiente – o que para muitos não passa de utopia.

“Eu estou pensando no campo da utopia, mas é isso que está posto pra gente. Ou a gente faz isso ou a soja vencerá a floresta tropical e provavelmente a gente vai para as “cucuias” […]Nós vamos ter que pensar outro processo civilizatório. E, nesse outro processo, essa noção de Eco Região é extremamente  importante, porque você tem que promover o que a o Enrique Leff chama de ecodesenvolvimento. Cada Eco Região você terá uma perspectiva de ecodesenvolvimento, o que você vai desenvolver naquela região em função do potencial dos recursos naturais, do solo, das populações que ali estão…. você tem que considerar o bioma como um todo, tanto a dimensão natural do bioma quando a cultural do bioma. E fazer isso é extremamente difícil. Nós temos certos paradigmas na nossa cabeça que são eles que informam o que é desenvolvimento e o que não é”. 

À beira do abismo

Ao final da entrevista, Antônio Carlos Witkoski se mostra preocupado com os rumos da espécie humana. Para ele, pela primeira vez na história, a humanidade se encontra de fato na beira do abismo – apesar da opinião de incrédulos, a racionalidade econômica tem dado provas constantes do esgotamento dos recursos naturais e, consequentemente, dos meios de sobrevivência para todas as espécies.

“A maioria das pessoas não se dá conta que nós estamos vivendo um momento de esgotamento da razão […]E para reinventar essa razão, a gente vai ter que articular com outras que tem outras epistemologias. Os indígenas tem outra cosmologia, uma outra epistemologia. Se você falar isso na academia, você é colocado no paredão. Mas é outra epistemologia. Porque tem a ver com a concepção de natureza, trabalho, política, sobrenatural…. Tem a ver com a compreensão do mundo”, afirma o sociólogo.

Um ponto importante nesse processo é o encontro das ciências, separadas em categorias de conhecimento específicas. Na visão de Witkoski, a formação do cientista “especialista” deixa de contemplar toda a complexidade cultural e natural do planeta – isso faz do cientista um funcionário, destinado a reproduzir uma ciência voltada apenas para a produção de bens de consumo e reprodução de noções colonialistas, observação também respaldada por José Alcimar de Oliveira, professor no Departamento de filosofia da UFAM. 

Para Antônio Carlos Witkoski, é necessário combater a noção reducionista da racionalidade econômica (o individualismo, o consumo e a degradação), e voltar as atenções para epistemologias tradicionais, que possuem uma relação mais estreita com a natureza, independente dos ditames do mercado.

“O camponês que sai da Amazônia, sai da várzea e vai para a cidade de Manaus, a primeira coisa que ele vai precisar é a mercadoria dinheiro. Sem isso ele nao faz nada na cidade, já no campo, faz. Uma das dimensões do nosso abismo é fazer essa articulação e tornar ela um pouco universal. Eu acredito que a gente possa conseguir salvar a Terra, salvar a Gaia e nos salvar”.

 

Você pode conferir a entrevista na íntegra clicando aqui.
Gostou do Latitude Podcast? Escute os programas anteriores para se aprofundar nos debates sobre a floresta mais importante do mundo!

 

Antonio Carlos Witkoski, Dr. em Sociologia pela Universidade federal do Ceará e professor titular do Departamento de Ciências Sociais da UFAM, onde atua em diversos programas de Pós-Graduação. O professor desenvolve pesquisas na área da Sociologia, Sociologia Rural e Sociologia Ambiental dentro dos seguintes temas: desenvolvimento sustentável, ecodesenvolvimento, etnoconhecimento, adaptabilidade à várzea amazônica, labor, trabalho, política, entre outros.

Você pode gostar...

Translate »