Amazônia: do paraíso perdido à primavera silenciosa
Qual futuro se reserva à maior floresta tropical do mundo para as próximas décadas, a considerar as políticas ambientais que vêm sendo desenhadas pelo atual governo brasileiro, sob os fuzis e tratores do seu ministro do meio ambiente Ricardo Salles?
1 – Amazônia como “casa comum” e o pensamento ambiental
Talvez essa seja uma entre tantas perguntas inquietantes feitas por aqueles que olham para o Brasil, neste final de segunda década do século. Pergunta que não vem por acaso. A Amazônia, terra mais nova do planeta, como a viu Djalma Batista, não escapa das políticas do governo, ainda que no discurso, e nem do olhar exógeno, quando se tem a consciência de que o mundo também depende dela para manter seu equilíbrio e sua sobrevivência. Também porque se sabe que nela está a maior reserva de água doce submersa capaz de abastecer o planeta por quase três séculos. E não só. Há, na Amazônia – ainda que seja clichê lembrar – toda uma biodiversidade ainda por ser revelada, todo um acervo cultural para ser catalogado, além de costumes e crenças tão poucos vistos até mesmo pelos brasileiros e amazônicos. E, sem exagerar na ingenuidade ou na fantasia, o remédio para a cura dos muitos males que acometem o mundo pode estar escondido no entre matas e rios do território que fora confundido com o Eldorado, terra onde os homens se banhavam num lago de ouro.
Para a pergunta com que iniciamos este texto não nos parece aqui caber uma resposta de prontidão. Nosso intento é outro, o qual nos cambiará para uma breve reflexão – devido ao formato do veículo de publicação – justamente sobre a nossa interrogação inicial, um tanto ousada que não se esgota num texto de poucas páginas. Queremos refletir sobre a Amazônia no contexto da problemática ambiental e das políticas do atual governo, sobre a preservação(?) da floresta e as liberações dos agrotóxicos, estes que aparecem tão pouco nos palcos de debates. Quase duzentos deles, para ser preciso, 197, já foram liberados somente nos cinco primeiros meses de 2019, o que, sabemos, não direciona para um futuro esperançoso e promissor, quando nos lembramos dos males que o uso de agrotóxicos pode causar ao planeta, diretamente na vida das pessoas, dos animais, das plantas. Uma violência lenta, recorrendo aqui ao conceito de Rob Nixon, começa a ser travada nos espaços entre os rios e matas, acometendo o homem de todas as idades, e não escapa o homem amazônico de toda sorte de males, dessa violência que não é vista como violência, não é capturada pelas lentes dos grandes meios sem a atenção devida. Uma violência que mata e não escolhe o inimigo, pois nela está o próprio inimigo que nos contamina. Uma violência que destrói matas, extermina animais, contamina o ar e as águas e provoca desníveis ambientais irreparáveis, como se tem visto nas mudanças climáticas.
Das tantas adjetivações imaginadas que já foram dadas à Amazônia – “Hileia”, “Inferno Verde”, “Paraíso perdido”, “Terra imatura”, no fito de Alfredo Ladislau, ou “Pulmão do mundo” – esta última cambia para uma realidade que assusta. Precisamos saber que o pulmão do mundo está doente, envenenado, não só pela fumaça das queimadas ou pelo mercúrio dos garimpos clandestinos, como os muitos que despejam resíduos nas cabeceiras do rio Tapajós – que contamina águas, peixes e praias e o homem – mas principalmente pelos venenos que são espalhados aos quilos todos os dias nos clarões abertos nas matas para a expansão do agronegócio, no filão das plantações de soja, como as que se veem em Santarém e Itaituba, na região Oeste do Estado do Pará. Além disso, o desmatamento acelerado não parece ter freio, pois cresce ano após ano sem que as autoridades tomem a consciência e assumam o compromisso honesto para tentar reduzi-lo o mais rápido possível, quando o que se percebe são discursos apenas e pouca resposta efetiva.
A luta contra os agrotóxicos, contra o desmatamento e em defesa do meio ambiente não é e não pode ser uma bandeira, como parece estar claro para muitos, apenas dos ambientalistas ou daqueles que veem o meio ambiente além da extensão da sua casa, além da fauna e flora ou do visível, além do humano e do inumano. Ela deve ser uma luta de percepção, de atenção, de cuidados; mais do que ver e ouvir, perceber e sentir – mesmo em meio aos simulacros e simulações – as transformações que vêm ocorrendo no ambiente que nos circunda, e com elas nada de tão agradável e seguro que nos possa confortar. Essa luta deve ser uma luta de todos nós os que habitamos o planeta que parece estar chegando ao seu estresse máximo e caminha para o seu fim. Essa luta exige que nos vejamos parte da teia da vida, e entendamos que os problemas ambientais não são fatos isolados, são sistêmicos, estão interligados, são interdependentes, interferem no equilíbrio do planeta, e de tal modo no futuro da humanidade. Portanto, não é um problema deste ou daquele lugar, desta ou daquela região, do país rico ou do país pobre. É um problema da humanidade, do planeta, da nossa casa comum, como bem descreve Jorge Mario Bergoglio, o pontífice da Igreja católica, Papa Francisco, na sua Carta Encíclica Laudato Si.
Para Francisco, a contínua aceleração das mudanças na humanidade e no planeta junta-se, hoje, à intensificação dos ritmos de vida e trabalho e, embora a mudança faça parte da dinâmica dos sistemas complexos, a velocidade que hoje lhe impõem as ações humanas contrasta com a lentidão natural da evolução biológica. Todas as transformações, no ver do pontífice, exigem maior sensibilidade com o meio ambiente e o cuidado com o planeta. Por isso, urge tornar uma consciência dolorosa em sofrimento pessoal o que vem acontecendo no planeta e assim reconhecer a contribuição que cada um de nós pode dar. As causas dos problemas ambientais, destaca o Francisco, são tantos e suas consequências, infinitas, muitas delas invisíveis – das diversas formas de poluição adensadas à cultura do descarte de toneladas de lixos não biodegradáveis, que tornam o planeta um verdadeiro depósito de lixo com que já nos acostumamos – acometem a saúde de milhões de pessoas, principalmente aquelas de países pobres, países do sul global – cujos pobres são os seres mais ameaçados da natureza, no ver de Leonardo Boff – onde o saneamento básico é precário e onde os grandes poluentes e poluidores tendem a ocupar espaço e deles aproximar os riscos de morte, permitindo em relevo o que Rob Nixon chama de “ambientalismo dos pobres” e Joan Martínez Alier adjetiva “ecologismo dos pobres”, cujos rastros demandam, inevitavelmente, tomada de consciência de nossos estilos de vida, de produção, de consumo e de descarte daquilo que já é fabricado com prazo de validade no vencimento. Uma mudança de consciência e de estilos de vida evitará a perda de elementos importantes da biodiversidade, pois demanda um olhar para além do imediato, para além dos gestos que cambiam para o ganho econômico rápido e fácil, que negligenciam os problemas ambientais e caminham no fluxo do desenvolvimento sem planejamento e sem a necessária consciência ambiental.
Ao pensar na relação homem e meio ambiente sob manto da consciência ambiental, Fritjof Capra nos convida aos trilhos de um novo paradigma, com uma visão holística, que desfaz a ideia do universo como um sistema mecânico composto de blocos, compartimentado, em que homem está acima da natureza; natureza e homem caminham separados, independentes, e cuja vida em sociedade traduz-se numa luta competitiva pela existência. O novo paradigma, para Capra, concebe o mundo com um todo integrado, e não como uma coleção de partes dissociadas, no trato do que o físico chama de percepção ecológica profunda, que reconhece a interdependência fundamental de todos os fenômenos, e de tal modo tem o senso de que, enquanto indivíduos, estamos encaixados nos processos cíclicos da natureza. Para Capra, o viés ecológico afasta-se do holístico – embora de certo modo sejam complementares –, na medida em que adentra os pormenores das observações, buscando as explicações e as razões da existência das coisas, no trato do que se considera ecologia profunda.
As ideias de Capra sobre o novo paradigma encontram eco no pensamento de Edgar Morin, para quem a compartimentação gera crises do conhecimento e a incapacidade de se articularem os saberes, resultado de um ensino que privilegiou a fragmentação, a especialização, e por consequência a ideia de que homem e natureza são independentes, fio do pensamento cartesiano, segundo Capra, para quem a mente foi separada do corpo e, posteriormente, o homem foi dividido em grande número de compartimentos isolados, de acordo com as atividades que exerce, seu talento, seus sentimentos e suas crenças, e o ambiente natural, nesse mesmo pensamento, é tratado como partes separadas, exploradas por diferentes grupos de interesses. Essa fragmentação, tanto para Morin quanto e principalmente para Capra, pode ser encarada como a razão das crises sociais, ecológicas e culturais.
Em vista disso, no ver de Morin, a emergência de um novo espírito científico – para Capra um novo paradigma – se faz necessária para acrescentar a renovação do espírito da cultura das humanidades e, nesse contexto, a conjugação dos mais diversos saberes, que não comportam apenas o ponto de vista das ciências humanas e das reflexões da filosofia, mas também das ciências naturais renovadas, entre elas a Cosmologia, a Ecologia e as outras ciências da Terra. Ainda, de acordo com Morin, a ideia de olhar a Terra para além da terra, em busca de outros lugares no cosmo, foi desacelerando à medida que o homem passou a sentir a necessidade de expandir suas fronteiras, tratar novos comércios e mais tarde despertado para a consciência dos problemas ambientais, o que o obrigou a olhar da terra para a Terra, expulsando titãs, gigantes, deuses ou outros seres fabulosos para conhecer os outros animais, vegetais e os próprios humanos, em busca de soluções para os problemas que carecem de soluções sem paliativos.
Além disso, o senso de que o homem não é o ser superior na teia da vida o faz olhar para o seu redor e buscar integrar-se aos demais seres da biosfera, afastando a ideia que fora adensada com Bacon, Descartes, Buffon, Marx, que o acercaram da potência de ser superior à natureza e capaz de dominar o universo, reconhecendo-se como ser biológico, também psíquico e cultural. Com Rousseau, nos passos do Romantismo, o homem retorna à Natureza-Mãe, e fiam-se os inúmeros registros de louvores à natureza, à terra, às paisagens, aos animais, ao meio ambiente, isto é, volta-se em busca de sua identidade na biosfera, acercando-se de certezas e incertezas. Entretanto, é a partir do final da primeira metade do século XX que a consciência sobre o meio ambiente torna-se proeminente, tanto nos espaços acadêmicos e científicos quanto nas quadras poéticas, nos romances, nos filmes, nas diversas artes de fazer, onde havia espaço para pensar o meio ambiente, principalmente pelo viés dos estudos culturais e da Ecocrítica enquanto campos de estudos interdisciplinares que acolhem os estudos da natureza para além da filosofia. E foi justamente esse pensamento do olhar o todo e não a parte, de sentir-se no todo, que nos faz pensarmos também no espaço em que nos inserimos, a Amazônia, como um todo no contexto da Nação, não como uma ilha a ser puxada no reboque dos discursos.
2 – a primavera silenciosa e as trilhas da incerteza
No início do século XX, em 1905, Euclides da Cunha chegava à Amazônia em missão brasileira para dirimir conflitos de fronteiras com o Peru. A região vivia o auge da borracha, no período em que as duas capitais, Belém e Manaus, ostentavam a pujança que o ouro negro lhes permitia, tanto em condições financeiras quanto nos espaços culturais, o que não só dava projeção nacional e internacional para as duas cidades como também atraía milhares de pessoas de todas as paragens em busca de emprego e riqueza, principalmente gente do Nordeste, terra arrasada pela seca e pelo desemprego, que viam na Amazônia oportunidades de uma vida melhor e para projeção de profissionais das mais diversas áreas fazerem carreira, tais como advogados e médicos. Os teatros Amazonas e da Paz indicavam o poder do que a borracha era capaz, com suas apresentações internacionais da melhor qualidade que as elites da borracha almejavam.
Ao chegar à Amazônia, na porta de entrada Belém, por onde passavam todos aqueles que tinham como intento conhecer de perto e por dentro a região, àquela altura a menos povoada do Brasil, Euclides da Cunha depara-se com uma realidade de uma região diferente daquela sobre da qual ouvira falar e sobre a qual muito escreveu, sem conhecê-la de perto, na sua inteireza. Assusta-o o volume do rio Amazonas, imaginado a partir das leituras dos relatos dos viajantes, ao rio real, e os cenários de uma natureza estável, que, ao olhar exógeno, com o de da Cunha, pareciam surpreendentes e de tal modo assustadores. Para Euclides da Cunha, havia dois Amazonas e duas Amazônias: das narrativas e da realidade.
O homem, no olhar de Euclides da Cunha, parecia um intruso, que chegou antes da hora e do tempo, e tentava se achar nos vieses dos rios que se fundem, alargam-se e não se moldam ao ritmo do homem; o contrário, como bem poetizou Leandro Tocantins, é ele quem comanda a vida. Esse homem é, tantos deles, o mesmo que Euclides vira e descreve no seu Os Sertões. O Homem que fugiu da seca, do desemprego, da fome e nas matas se embrenhava em busca do ouro que escorria das seringueiras e prometia fartura e riqueza. Fala deles em “Judas-Asvero”, “Brasileiros” e “Os caucheiros”, e em tantas outras narrativas com que prestou sua homenagem à região que tão pouco conhecia de perto, a não ser das suas leituras dos livros. A flora, diz ele, “ostenta a mesma imperfeita grandeza” e numa observação mais atenta, tem-se “a sensação angustiosa de um recuo às mais remotas idades’.
A Amazônia, de mais de um século, vista por Euclides da Cunha, era o que ele considerava “paraíso perdido” ou um território “à margem da história”, a espera dos olhares perspicazes, dotados de talentos verdadeiros e da faculdade de perceber, de um só lance, as circunstâncias particulares e sensíveis que lhes explicam as influências passadas e presentes, como decretou Péricles Moraes. Há um século, os discursos falavam de uma Amazônia que se escondia, ou que se fazia um labirinto de mistérios, mas de riqueza e luxo, esse paraíso perdido querendo ser encontrado, da foz do Amazonas aos seringais do Acre. Se ela se escondia em si mesma, achavam-na os que buscavam conhecê-la, e encantavam-se com o que viam. Muitos nem voltavam para os seus lugares de origem. Ficavam nela, apaixonavam-se por ela, como fizera Kurt Nimuendaju.
No final da segunda década do século XXI, entre discursos e promessas, a Amazônia destoa daquela vista por Euclides da Cunha, ainda que continue na margem da história. Já não há mais a riqueza da borracha, daquela época há ruínas, alguns casarões malconservados que ainda resistem ao tempo em Belém e Manaus, ou perfazem o que Foot Hardman inclui como poética das ruínas, pelo signo do atraso, ainda do isolamento e até mesmo da solidão. A Amazônia, que percorreu mais de um século após a passagem de Euclides da Cunha, olha o passado e tenta mirar o futuro, um futuro incerto, camuflado nas fumaças que saem das florestas e dos gatilhos dos jatos que derramam veneno por toda parte. E essa a certeza não se esconde somente no fio da fumaça das queimadas e nas nuvens envenenadas pelos agrotóxicos que chovem sobre as plantações de soja, ela esconde-se também nas feridas abertas pelas madeireiras, nas valas das dragas e tratores dos garimpos clandestinos e de mineradoras legais, que sugam minérios e deixam para trás os clarões abertos com buracos de resíduos tóxicos. A luta dos povos da Amazônia é uma luta pela preservação e contra a morte. Contra a morte da floresta, dos rios, dos animais, também contra a sua morte anunciada. É uma luta pela sobrevivência, de resistência.
O título do texto que retomo neste subtópico é uma referência à obra seminal da bióloga estadunidense Rachel Carson (1907-1964), Primavera Silenciosa, publicada no início da década de 60 do século XX, dois anos antes da morte da escritora. Carson escreveu e levou seu livro ao conhecimento do público americano numa época em que os organoclorados eram largamente utilizados em plantações dos Estados Unidos, com o apoio das indústrias químicas dos agrotóxicos, que mantinham forte lobby naquele país: “Em sua pressa por lucros e controle de mercados, os cientistas da indústria nem sempre priorizavam a saúde do público ou o futuro do meio ambiente”. Enfrentando o poder dos que defendiam o uso dos agrotóxicos nas lavouras para proteger de pragas, Carson alerta sobre os riscos que o homem, os animais e as plantas no seu ambiente corriam com o uso desenfreado de pesticidas tóxicas, principalmente o DDT. Segundo ela, os processos celulares das plantas eram afetados e, quando em contato com os organismos de animais, ingeridos como alimento, provocavam deformações e mesmo a morte dos pequenos animais, colocando em risco a vida humana.
Primavera Silenciosa, numa linguagem poética, mas acercada de um arcabouço documental científico – com informações que já eram do conhecimento da comunidade científica americana, mas sem chegar ao conhecimento da maioria da população – em que fazia advertências claras contra o uso indiscriminado de venenos, colocou em evidência o perigo dos pesticidas e provocou um amplo debate na sociedade civil e no Congresso americano sobre o uso de produtos químicos nas plantações, suas consequências no meio ambiente e os riscos à saúde humana. Nos últimos dias de sua vida, Carson argumentava que os agrotóxicos não só mataram insetos, mas também entraram na cadeia alimentar e ameaçaram as populações de pássaros e peixes e poderiam, eventualmente, adoecer as pessoas. Diante de um comitê do Congresso americano, ela argumenta: “Nossos atos desatentos e destrutivos entram nos vastos ciclos da Terra e, com o tempo, retornam para trazer perigo para nós mesmos”. Esse era um problema, que provinha de muitas fontes “resíduos radioativos de reatores, laboratórios e hospitais, respingos de explosões nucleares, resíduos domésticos de cidades e vilas; resíduos químicos de fábricas, detergentes de casas e indústrias”. No ver de Carson, isso deveria ser resolvido com urgência e no seu tempo – tempo em que ela e os congressistas viviam.
É à obra de Carson que se credita o marco do movimento ambientalista moderno, de uma escritora ativista mesmo antes de o termo ativismo ambiental entrar em cena e também mesmo que ela não tenha decidido ser uma ativista no sentido como hoje o conhecemos; de uma mulher da ciência, estudiosa da vida marinha, numa época em que a ciência se fazia totalmente masculina. Foi acusada pelos da indústria química dos agrotóxicos de alarmista, vista como uma mulher histérica que tinha um apego excessivamente romântico à natureza.
A leitura de Euclides da Cunha e das ideias de Rachel Carson nos faz olharmos firmes para o presente, tendo em vista a situação que a Amazônia brasileira vive. Se Euclides pensava a região como um espaço a ser desenvolvido, que pudesse sair da margem e de certo modo experimentasse o progresso que o Sudeste e o Sul já viviam, Carson, com o seu Primavera Silenciosa, leva-nos a pensar justamente sobre as consequências do progresso, se a busca desse progresso, do desenvolvimento, não estiver sob os cuidados do planejamento e da proteção ambiental, pois a Amazônia, muito mais do que um espaço a ser desenvolvido, a ser explorado, como muitos planejam, é um espaço a ser cuidado e protegido.
Os projetos que insinuam para a Amazônia brasileira contemplam, no conjunto da obra do atual governo, mais destruição do que preservação. Mais retrocessos do que avanços para o meio ambiente. A redução do número de cadeiras no Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), órgão responsável pela formulação das políticas governamentais relativas ao uso dos recursos naturais e a conservação ambiental, de quase 100 para 22, com apenas 4 para a sociedade civil, já indica um passo de retrocesso. Os novos projetos incluem – se assim se concretizarem – barragem no rio Trombetas, uma ponte sobre o rio Amazonas e uma extensão da BR-163 até o Suriname. Esses três projetos, de certo modo, provocarão impactos ambientais nas áreas onde forem executados. Há a ameaça da liberação da caça de animais silvestres, a alteração na demarcação de terras indígenas, o fim das reservas legais e a revisão das unidades de conservação – grande parte delas na Amazônia – sob a alegação de que foram criadas sem critérios técnicos, e agora algumas delas correm até mesmo o risco de serem extintas, se não houver qualquer mobilização da sociedade.
Além disso, a extinção de secretarias vinculadas ao Ministério do Meio Ambiente dá a dimensão dos problemas que poderão aumentar e outros deixados sem resolver, principalmente na Amazônia, com um espaço continental. Pelo menos três secretarias deixam de existir: Secretaria de Mudanças do Clima, Secretaria de Extrativismo e Desenvolvimento Rural Sustentável e Secretaria de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental. As secretarias e órgãos ligados ao meio ambiente foram entregues para representantes do agronegócio, caso do Serviço Florestal Brasileiro, responsável pela ampliação da cobertura florestal no país. O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), foram enfraquecidos na sua autonomia, já que não podem realizar qualquer atividade de fiscalização – e com isso tem-se visto a sua redução. No caso do Ibama o órgão tem avisado onde e quando haverá fiscalizações – sem antes consultar o Ministério do Meio Ambiente. Mas talvez o desconfortável é o discurso que aponta as áreas de proteção ambiental ou as reservas florestais como inúteis e, por isso, devem ser reduzidas para dar espaço ao agronegócio, o setor que tem grande lobby no atual governo e recebe apoio da ministra da agricultura, representante da bancada dos ruralistas no Congresso e dos que defendem a liberação desenfreada dos agrotóxicos e do fim das fiscalizações ambientais, o que de certo modo já contribui para o aumento do desmatamento, o qual, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), nos cinco primeiros meses de 2019 aumentou 34% em relação a 2018, com uma área de floresta derrubada de 739km².
Dados do estudo “The uncertain future of protected lands and waters”, que buscou informações sobre áreas protegidas em diversos países, entre eles os Estados Unidos e países que compreendem a Amazônia, incluindo o Brasil, num período compreendido entre 1971 a 2017, destacam que o Brasil e os Estados Unidos são os países que mais alteraram ou mudaram totalmente a sua legislação ambiental. No caso do Brasil em sentido inverso e prejudicial ao meio ambiente. Do total de 115 alterações feitas pelos países que compreendem a Amazônia, 66 ocorreram no Brasil, perfazendo 61% do total. Os estudos indicam que essas alterações afetaram 18 milhões de hectares da Amazônia; desses, 11 milhões são restritos ao território brasileiro, resultado da redução de áreas protegidas. Em outros casos, a ampliação de áreas desprotegidas ocorreu para autorizar barragens e a construção de hidrelétricas, como ocorreu na região do Tapajós.
Há outros riscos iminentes que afetam diretamente a Amazônia, como o afrouxamento das fiscalizações em áreas de desmatamento e a não punição do envolvidos, além do risco de conflitos entre madeireiros, agricultores e indígenas. Há também o risco do fim do Fundo Amazônia, do qual a Alemanha e a Noruega são os maiores contribuintes, somando 95% do que é depositado, e cujo dinheiro é investido em mais de 100 projetos, e com objetivos, entre outros, “i. gestão de florestas públicas e áreas protegidas; iv. atividades econômicas desenvolvidas a partir do uso sustentável da vegetação; vii. recuperação de áreas desmatadas”.
3 – Amazônia para além dos discursos
Se o pensamento se volta para a Amazônia quando o discurso é a biodiversidade, no conjunto das florestas, águas, povos indígenas, culturas e mitos, carreando o afeto sobre a consciência ecológica principalmente, para além do imaginário, demanda-se a ela a importância que o seu tamanho territorial ocupa no planeta. É certo também que o mundo se liga à Amazônia mais pelas questões ecológicas do que pela sua extensão territorial, e talvez esse olhar exógeno tenha dado mais atenção aos problemas que inflamam o “pulmão do mundo” do que o próprio olhar endógeno, que parece alheio, quando vez por outra reclama para si a complacência. A propósito, a relação da Amazônia com o Brasil é conflituosa e de subalternidade política. Ficou por um século entre a dúvida portuguesa e espanhola, sob os acordos do Tratado de Tordesilhas firmado mesmo antes de ser passível de contrato como Nova Andaluzia e Lusitânia, pedaço de uma totalidade que não era vazia, tinha fisionomia própria e culturas diferentes, território onde os limites eram os modos de ser e de estar em Natureza, com diversidades e complexidades de organização e de laços societários. Até a independência era um pedaço a parte do Brasil, e mesmo com a República tinham-na como um almoxarifado, um território de saque, de retirada de suas riquezas, de comercialização daquilo que ela suportasse no centro da Nação. Esteve nas conversas de troca quando o café fracassou. É Brasil, mas tomam-na como se ainda estivesse a ser anexada em definitivo a ele, pois demanda de projetos, de interligações, de propostas que atendam às suas peculiaridades espaciais e populacionais. Entra nos discursos políticos apenas sem que deles algo definitivamente prático seja visto.
Dos discursos alçados pela navegação, do imaginário aos tratos econômicos e políticos, a Amazônia, como defende Ana Pizarro, é uma região cujo traço mais geral é o de ter sido construída por um pensamento externo a ela, e pensada, em nível internacional, através de imagens transmitidas pelo ideário ocidental europeu; ou, como nos faz ver Neide Gondim, é o resultado de uma construção, da invenção também externa a partir da Índia. Talvez por isso finda-se a ela a objetividade da sua inteireza, quando o que lhe cabe são as boas intenções, dos discursos da preservação, até mesmo da salvação do planeta. Se, para Euclides da Cunha, ela era um paraíso perdido; para outros, um inferno verde, um século depois, mesmo sendo devastada pelos senhores do agronegócio e contaminada pela fumaça dos agrotóxicos – cujos cheiros e consequências Carson previra e conhecia tão bem – e pela lama dos garimpos clandestinos, ela se mostra e fala, pelos rios, pelas matas, pelos seus povos. Ela mudou sua fisionomia, ou transformaram-na no signo da modernidade. Os discursos dos que a têm como moeda de troca é que continuam os mesmos.