Jotabê Medeiros

Escritor e repórter, trabalhou como jornalista na Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, Veja SP e CartaCapital. Participou de diversas coletâneas e publicou vários livros, entre eles, Raul Seixas – Não diga que a canção está perdida (2019), finalista do Prêmio Jabuti.

 

Resenha ‘Madnaus’: Susy in the Sky with Diamonds

‘Madnaus’, livro de estreia na prosa da amazonense Susy Freitas, mostra a faceta urbana freak e pop da vida no Norte do País, vista a partir de visões lisérgicas

Madnaus, Suzy Freitas
Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
Madnaus, Suzy Freitas

Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude

Há um híbrido de referências que vai das séries de TV mais disseminadas, como Breaking Bad, a elementos de cosmogonia indígena e rebotalhos dos idiomas da floresta (subitamente, um personagem fala uma frase em Nheengatu, ou Tupi Moderno, como por exemplo “Aywá pituna”, que significa “logo a noite vem”).

Em Madnaus (Editora Reformatório), vertiginoso livro de contos, estreia na prosa da escritora amazonense Susy Freitas, o Amazonas (e o Norte do País, por extensão) surge com uma nova geografia social e humana, não mais comportando a fantasia de ser um mundo isolado das influências contemporâneas. Ao contrário: inseminado irreversivelmente por essas. Escrevendo a partir de um laboratório de LSD na esquina do Negro com o Solimões (como salienta o escritor Ronaldo Bressane), Susy Freitas reivindica, em sua literatura, uma nova cosmologia urbana a ser compreendida para além da mística da floresta.

O neologismo Madnaus já denuncia uma Manaus freak, destrambelhada. “Madnaus: aqui fazemos as coisas diferentes”, ela escreve. “Porque Madnaus sempre foi sobre não pensar no dia seguinte”. Dessas definições, sobressaem dois conceitos: existe uma sensibilidade única na pessoa que vive na fronteira entre dois mundos, e há uma urgência em viver as experiências que surgem antes da iminente desaparição.

Madnaus é um livro que funciona como se fosse uma playlist das modernas sonoridades que forjam a alma da juventude do Norte do País. Não é exagero: a música é um elemento fundamental da narrativa. Nick, the Stripper, título que nomeia uma das histórias, é também o nome de uma canção do grupo pós-punk australiano The Birthday Party, uma música de 1981. A personagem expressa um sentimento que se escora na música que embala o pole dancing, He hit me (and it felt like a kiss), de Carole King e The Crystals, regravada magistralmente pela viúva de Kurt Cobain, Courtney Love, e sua banda riot girl Hole.

A condição humana em uma selva de ruínas é descrita magistralmente nas histórias, em visões por vezes pós-apocalípticas, tarantinianas. “Divide a vista entre o celular e a indígena de madeixas ruivas de pouco mais de 14 anos em seu colo. Ela rói a tampa de uma Bic, que também faz vezes de pirulito”. As contradições da metrópole encaixada na maior floresta tropical do mundo espoucam em forma de literatura.

O ar irrespirável de Manaus (que, em 2023, chegou a ter a pior qualidade de ar entre todas as cidades do mundo), fruto do despejo de poluentes no ar da cidade, vira uma literatura arfante, claustrofóbica. “Julia levanta da cama e topa com o mindinho na quina da cômoda. O dedo lateja, mas seu corpo é incapaz de qualquer grande reação. É sempre assim quando a fumaça passa de 800 no aplicativo que informa a qualidade do ar. Só pela tontura, ela sabe que o dia começou mais ou menos por aí. Os principais efeitos da inalação contínua de fumaça são olhos secos, garganta irritada, falta de ar, dores de cabeça e confusão mental — ao sentir algum desses sintomas, procure atendimento médico, diz o letreiro branco na tela pela enésima vez, assim, só com vírgulas, ao iniciar o aplicativo”.

Susy Freitas também retoma, em sua ficção, o fio de uma quase abandonada tradição: a da literatura pop. Enquanto quase toda a literatura contemporânea brasileira se volta para a emergência das lutas afirmativas e para o estabelecimento de um lugar de fala, de correção de rumos, a autora está em busca, primeiramente, de inventariar as linguagens de seu tempo. Enquanto isso, a condição feminina é o sustentáculo de toda a narrativa, a oposição entre as sensibilidades masculina e feminina. “Porque não interessa a um homem saber o que é uma mulher, e sim de que forma o é. Essa é a diferença”.

“Intelectuais mendicantes, trisais em crise e magnatas que insistiam em trazer suas ovelhas elétricas de casa, o que era terminantemente proibido”. As citações da cultura pop se encaixam harmoniosamente, como aqui, nessa descrição que repõe em cena as ovelhas elétricas do livro Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas?, o conto de Philip K. Dick que originou o clássico Blade Runner – O Caçador de Androides, de Ridley Scott.

As histórias não estão necessariamente em busca de situações mirabolantes, mas em peneirar visões fulgurantes do ordinário. Uma delas parte da ideia de um censo sem método de gatos de rua, alcançando a saga de uma felina chamada Liza Minelli e seu romance trágico com outro gato da vizinhança chamado Van Damme. Em outra, a autora espelha-se no martírio do filho de serralheiro viciado em drogas que furta o que pode da vizinhança para poder comprar seu bagulho.

Interessante também que os contornos dos personagens surgem conforme as situações vão evoluindo, sem ladainhas psicologizantes. Susy, que tem três livros de poesia publicados, Véu sem voz (editora Bartlebee), Alerta, Selvagem (editora Patuá, vencedor do Prêmio Literário Cidade de Manaus) e Carrego meus furos comigo (editora Urutau), imprime em sua prosa a manufatura das palavras com zelo poético, o interesse maior pelo ritmo e pelo som. “O som das águas começava a arder, e o grito das crianças tinha gosto de abacate”. A autora é uma das editoras da Revista Torquato, publicação amazonense que destaca literatura e artes visuais. O conto que abre o livro, White Tears, foi publicado em 2023, na revista literária Cândido, do Paraná.

O sarcasmo também ajuda a posicionar o próprio lugar da escritora em sua epopeia pelo desconjuntado cenário literário nacional. Isso está finamente manifestado no último texto, Manual do verdadeiro artista, relato hilariante do confronto da autora impaciente com o poeta alternativo de rua vendendo de mesa em mesa de bar poemas grampeados por R$5. “A maioria dos homens lê com o pau”, ela resmunga, ao ser exposto o muro que a divide da visão protomercantilista que o ambulante expressa da arte.

Politizada, mas não ao ponto da canonização por excesso de virtuosidade, Susy Freitas não se esquiva de reencenar as perversões humanas, de dar voz às personagens decaídas e privadas de consciência. É esse o ambiente do texto que dá título ao livro, Madnaus, que narra uma overdose de uma garota com um plug anal lisérgico chamado Manipulator. “A maioria das pessoas já estava em avançado estado de cópula ou algum tipo de decomposição”.

O clima de sci-fi pós-apocalíptico, a distopia do Estado regrando o inconsciente — por meio de uma inefável Agência Nacional de Projeção Astral — é contraposto ao impulso de redenção, mais forte e definitivo. “Com esse movimento, Lindie conseguia admirar os braços elegantes de Patti, cobertos por tatuagens iguais às suas, e a dignidade de sua velhice, o que a tornavam mais bonita do que se fosse jovem”.

É uma leitura que às vezes desconcerta pela familiaridade entre distintos “hemisférios” culturais, e isso menos pelos personagens e mais pela ambiência, sempre precisa e musical. “As escaminhas de pacu acumulando do lado da vassoura de piaçava antes de serem levadas de volta pro rio pelo vento”. A construção visual que Susy põe em cena enquanto burila sua literatura se materializa para o leitor na cadência da leitura, tão inebriante quanto nocauteante.

Livro: Madnaus
Autora: Susy Freitas
Editora: Editora Reformatório
Ano: 2024

 

Texto e produção: Jotabê Medeiros
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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