Relatos de viagem europeus como obstrução de narrativas amazônicas

Storytelling

Narrativas fazem parte da história das culturas, inspirando e motivando seus membros a transmitir suas tradições para outras gerações. A tradição oral, através da qual são transmitidas essas narrativas (storytelling), contém mais benesses do que se é capaz de compreender. Quando uma cultura dominante subjuga a cosmovisão de outra nação, , identidades são modificadas e apagadas dos registros históricos. Para combater esse genocídio cultural (etnocídio), essas narrativas devem ser usadas no combate ao imperialismo cultural eurocêntrico que, numa imposição hegemônica, vem eliminando identidades da existência. Nas palavras de Edward Said, “histórias também se tornam o método que povos colonizados utilizam para assegurar suas próprias identidades e a existência de sua própria história”.

Para melhor compreender o impacto das narrativas, valho-me da contribuição de Toni Morrison em Beloved. Esse livro debate os caminhos pelos quais a “rememoração” inicia um processo de cura para afro-americanos que passaram por experiências traumáticas de extrema desumanização durante os anos de escravidão nos Estados Unidos. O termo, cunhado por Morrison, define o reencontro desses povos com o passado, em espaços físicos ou mentais. Em Beloved, a rememoração toma a forma de lugares e objetos que se pode visitar e que continuarão existindo na memória das pessoas que vivenciaram experiências relacionadas a esses lugares e objetos. “Rememoração” simboliza uma manifestação física daquilo que foi destruído ou perdido, especialmente devido à hegemonia da cultura ocidental. Esse conceito de revisitar o passado pode ser aplicado a grupos colonizados também em outras regiões. Neste artigo, falo sobre como os povos indígenas da Amazônia combateram a cultura ocidental dominante, através da manipulação de estereótipos seus.

No ensaio “Cultura e Imperialismo” (Culture and Imperialism), Edward Said fala sobre como as narrativas são as formas pelas quais as nações reforçam suas culturas para si mesmas e comunicam ideias para (e sobre) outras culturas. Seu ponto central é que, quando uma cultura imperialista controla quais histórias serão contadas, as percepções sobre outras culturas e grupos minoritários são adaptados e modificados para se alinhar com o que ela escolhe. Deste modo, faz-se necessário compreender como as colonizações espanhola e portuguesa moldaram as percepções sobre a Amazônia, criando a ideia do “outro”, através dos escritos de narrativas de viagem” dos colonizadores.

Em seu ensaio “Olhos Imperialistas” (Imperial Eyes), Marie Louise Pratt nota que as narrativas e metáforas que surgiram desses relatos de viagem criaram uma imagem do “outro” em oposição aos próprios europeus. De forma semelhante a Pratt, no ensaio “Invenção da Amazônia”, Neide Gondim detalha o impacto da Revolução Científica na percepção de perspectivas globais e de viagem. Especificamente, o livro discute como a imagem da Amazônia foi criada através do “Imaginário Europeu”. Por meio da análise dessa literatura de viagem, Gondim descreve como os europeus espelharam ideais de terras desconhecidas com recursos e riquezas que os fariam mais ricos do que nunca. Com algum conhecimento dos recursos naturais ali existentes e do trabalho colonizado, eles decidem viajar para a Amazônia.

Através do desenvolvimento dessas preconcepções, começa a formação daquilo que se entende por “Amazônia”, uma floresta tropical biodiversa, que provê novos recursos de flora e fauna. Algumas imagens e essencialismos associados aos trópicos são também conhecidos por “tropicalidades”, termo originalmente cunhado pelo sociólogo brasileiro, Gilberto Freyre. De acordo com Susanna Hecht, tropicalidades “giram em torno de sistemas de pensamento, onde ideias de natureza, natureza humana, história, cultura e civilização são usados na criação de imagens, instituições, ciências e discursos, que moldaram e continuam a moldar as lógicas de empresas coloniais, desenvolvimento moderno e mesmo as estratégias ambientais de hoje”. Os caminhos pelos quais os europeus, como Wallace ou Bates, representaram a Amazônia em seus escritos reforçaram essas associações culturais que provinham de suas próprias percepções.

Representação de Henry Walter Bates na Amazônia. Fonte: WikiMedia.

Somado a isso, Pratt também disseca o atual impacto desses relatos de viagem analisando como metáforas e narrativas escritas influenciam nossos pensamentos e percepções do mundo hoje, abarcando a visão dos colonizadores em comparação com a dos colonizados. Pratt assinala que, ao final do do século XVIII, “a exploração científica viria a se tornar um foco de intenso interesse público e uma fonte de algum dos mais poderosos aparatos ideativos e ideológicos pelos quais os cidadãos europeus se associam a outras partes do mundo”. Assim, percebe-se que aos escritos de narrativas de viagem e de ciências naturais provaram ser os catalisadores para um movimento centrado em torno da “consciência planetária”. A importância atribuída à história europeia, como já dito, se deve pelo fato das narrativas serem controladas pelos colonizadores, que eram os que decidiam quais histórias seriam recordadas e quais seriam apagadas. O termo autoetnografia, cunhado por Pratt, refere-se à habilidade de povos colonizados de definir suas próprias histórias e culturas. A sua utilização permite desconstruir as metáforas estabelecidas nos escritos de narrativas de viagem, bem como reconhecer os símbolos construídos para manipular a percepção sobre a Amazônia.

Um dos mais renomados exploradores do final do século XVIII foi La Condamine, cujos escritos, como “Breves Narrativas de Viagem pelo Interior da América do Sul” (Brief Narrative of Travels trhough the interior of South America, 1745), circularam por toda a Espanha e o restante da Europa. Esse texto é, por excelência, um exemplo do eurocentrismo na construção do “outro” no imaginário ocidental. “Breve Narrativa” inclui detalhes sobre a geografia, flora, fauna e os perigos associados à região. La Condamine também especula sobre a localização de uma das metáforas mais famosas sobre a Amazônia, a cidade de El Dorado. A lenda de El Dorado simboliza o sonho europeu de riqueza e comodidade. A promessa de tesouros desconhecidos motivou gerações de exploradores e seus impactos permanecem visíveis até hoje. Mesmo que El Dorado nunca tenha sido encontrada e o mito tenha ficado para trás, a essência da metáfora permanece verdadeira na exploração contemporânea da Amazônia. Portanto, a fim de quebrar essas preconcepções sobre o território, é necessário difundir, em escala global, os textos e narrativas produzidos pela própria população amazônica.

Um dos autores consagrados da região é Milton Hatoum. Seus romances subvertem imagens e percepções da Amazônia, através de meticulosas descrições de memórias e representações da natureza. Suas histórias oferecem uma lente perspicaz, possibilitando analisar a história do Brasil e a sua luta em se definir como uma nação singular, especialmente ao considerar sua relação com a Amazônia. No livro Órfãos do Eldorado cada personagem representa variadas versões de autorrepresentações brasileiras passadas e contemporâneas, gradualmente desenvolvidas e reveladas. Na história, o autor personifica a Amazônia em duas mulheres que se relacionam com o personagem principal, que é também narrador. Em contraste, Florita e Dinaura são os dois lados de uma Amazônia oprimida: a primeira, explorada e esquecida; a segunda, encantada e misteriosa. Hatoum dá a sua versão sobre um Brasil que tenta reconciliar (e controlar) sua relação com uma Amazônia. Como descrito ensaio de Rogers, “[Hatoum] expõe a tentativa e falha do governo brasileiro em criar uma El Dorado moderna.”

A fim de mergulhar na conexão entre Arminto e essas duas mulheres, Dinaura e Florita, algumas implicações da novela precisam ser explicadas e discutidas. Como sugere o título, a novela representa a vida dos órfãos criados pela morte da metáfora e da lenda de El Dorado. Essa morte simbólica toma sua forma no livro com o naufrágio do cargueiro alemão “Eldorado”, cuja destruição arruína a empresa de Arminto, fazendo com que perca todo seu dinheiro – um ponto de virada no progresso trama. “Eu vi o Eldorado há centenas de jardas do palácio branco, e então pensei que minha vida dependia desse cargueiro operando na Amazônia.” Antes da colisão do navio, Arminto começa sua relação com Dinaura. No entanto, após a única ocasião na qual tiveram relações sexuais, Arminto decide que quer “mais” de Dinaura e não pode evitar fantasiar sobre o casamento e sua vida ao lado dela.

A obsessão e atração sexual de Arminto cumpre seu legado como patriarca da família Cordovil com a tentativa de corromper essa imagem de uma Amazônia “virgem”. Esse desejo pela corrupção simultânea de Dinaura, assim como riqueza e felicidade, influencia diretamente na morte da lenda e do sonho do El Dorado. Na busca por Dinaura enquanto amante dos sonhos se mescla com a ideia do Eldorado, mas reverte a intenção original. Como Roger nota em seu livro, “Mourning El Dorado” (“Lamentando o Eldorado” ou “Cortejo Fúnebre de Eldorado”), “Para europeus e americanos, encontrar riqueza e felicidade ao mesmo tempo permanecia um objetivo elusivo, precisamente por conta da jornada para o enriquecimento individual através da extração de recursos naturais do Novo Mundo, o que frequentemente resultava em mais conflitos do que contentamento.” Em vez de se tornar a representação física para a ideia do El Dorado, o vontade de Arminto de “deflorar” Dinaura coincide com a oportuna destruição do cargueiro Eldorado, tornando a personagem uma manifestação do desejo em uma versão moderna da Amazônia, na qual a metáfora do El Dorado não pode resistir.

A personagem de Dinaura não faz nenhuma outra aparição após o naufrágio do Eldorado. Entretanto, ela se faz presente ao longo de toda a trama sem estar fisicamente presente nela. Essa presença mistifica e desilude a percepção de Arminto sobre Dinaura, especialmente quando ela é paulatinamente acoplada a ideia do mito e da lenda. “Dinaura foi seduzida por um ser encantado… o lugar onde vivia: uma cidade com tanto ouro e luzes que cintilavam… A Cidade Encantada era um lugar lendário, o mesmo sobre o qual ouvi em minha infância.” Seu senso de si se funde inteiramente com a lenda da “Cidade Encantada”, e ela perde qualquer semelhança consigo mesma enquanto indivíduo. Em meio à desilusão, Arminto percebe que a busca por Dinaura e a busca pela “Cidade Encantada” são igualmente sem sentido.

Da mesma forma que Dinaura representa a manifestação de corrupção sexual para Arminto, sua relação é espelhada em Florita, mulher indígena a qual foi dada a tarefa de criar Arminto desde a infância, representando a versão passada da Amazônia, que costumava “criar” a nova versão de brasileiros brancos, que levariam à mesma subjugação e exploração da região. Nesse ser espelhado ou duplicado, Florita e Dinaura se tornam dois lados de uma Amazônia oprimida: a primeira, explorada e esquecida; e a segunda, encantada e misteriosa. Essa versão de um novo Brasil tentando reconciliar (e controlar) sua relação com uma Amazônia indígena permeia toda a novela.

As lendas de El Dorado e da Cidade Encantada são peças críticas para a narrativa. A importância da oralidade em contos tradicionais é bastante enfatizada nesse romance. Ambos, o estilo de escrita e o formato da novela, influenciam diretamente no aspecto narrativo para imitar a tradição oral de mitos e lendas. Em “Órfãos do Eldorado”, o uso da narrativa falada mescla a El Dorado, ocidentalmente idealizada (com mitos e lendas amazônicos) à Cidade Encantada. Ao misturar essas duas histórias, o autor torna a abordar o caminho pelo qual houve a reconciliação forçada entre “Brasil Branco” e Amazônia indígena. Essa novela retrata uma realidade profundamente complexa acoplada à fantasia para mistificar a verdade a respeito da natureza de um Brasil moderno que tenta manipular sua relação corrupta e opressiva com a Amazônia indígena. Com a morte do mito de El Dorado, Hatoum endereça o futuro dos dois grupos enquanto estes navegam territórios novos para solidificar o núcleo da trama ao encerrar com a frase, “Você acredita que passou horas… escutando lendas?”

Narrativas continuam a reforçar nossas crenças e percepções do mundo ao nosso redor. O modo pelo qual desconstruímos noções preconcebidas dos sistemas erguidos em torno de nós deveria proceder através da ressurgência de autênticas histórias advindas de culturas que sociedades colonizadas tentaram apagar. Começando pela era da exploração científica e escritos de narrativas de viagem, ao longo da era da modernidade, e os atuais dias modernos, os grupos em posição de poder no Brasil continuam a explorar e manipular povos amazônicos para seu ganho pessoal. O coletivo geral precisa reconhecer a legitimidade dessas histórias amazônicas e lutar para que essas vozes sejam reconhecidas e escutadas.

 

Este texto foi originalmente escrito em inglês. Você pode conferir a versão original clicando aqui.
Alice Lopes é estudante de graduação na Universidade Estadual da Flórida (Florida State University, FSU).
Traduzido do inglês por Sandro Schutt e revisado por Cecília Pessoa.
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