O Espírito da Amazônia versus O Espírito do Capitalismo

Spirit of the Amazon
Indigenous warriors protest with their borduna war clubs and bows and arrows in front of the Congress building during a demonstration in Brasilia, Brazil by the Xicrin, Kayapo and Pataxo tribes, 10th November 2015. Photo © Sue Cunningham, [email protected]
Por que falamos sobre o Espírito da Amazônia?
Porque hoje ele está em guerra com o Espírito do capitalismo.

Embora muitos defensores da Amazônia tenham sofrido e continuem sofrendo violência e morte, esta não se trata de uma guerra de armas e exércitos. A Amazônia está sendo atacada por forças terrestres em todas as suas frentes – agricultura, extração mineral, exploração madeireira e projetos de infraestrutura – todos exemplos de extrativismo predatório e pilhagem de recursos naturais.

Trata-se de uma guerra cultural e filosófica entre dois sistemas contraditórios e irreconciliáveis. Cada um com suas próprias estruturas sociais, intelectuais e – por que não haveria de ser – econômicas.

Esses dois sistemas são tão fundamentalmente diferentes que é difícil para nós, enraizados e formados no sistema capitalista, imaginar como seria crescer e funcionar num outro sistema, construído na base da comunidade e do compartilhamento, e não do individualismo e da propriedade.

Os elementos básicos da cultura “ocidental” estão tão arraigados em nós, que apreciar a aparência do mundo em que habitamos através da perspectiva indígena é um enorme desafio intelectual. Por conta disso, começarmos a considerar mudar a nossa vida para que esta seja mais parecida com a deles é, infelizmente, inimaginável.

Desde o dia em que nascemos, a experiência social faz com que absorvamos o ambiente cultural que nos rodeia. Como indivíduos, as necessidades egoístas são a nossa prioridade imediata. Desde muito cedo, em nossos berços, começamos a acumular riquezas: um brinquedo, um cobertor, uma mamadeira… o próprio berço. Então, entramos no mundo do dinheiro. Nossos avós nos dão algumas moedas para gastar na confeitaria e, logo, nossas mães ou pais nos mandam comprar coisas nas lojas, como seus agentes no mundo do comércio.

Assim, nossa acumulação de valores sociais e culturais contribui para a composição, imperceptível, dos fundamentos sobre os quais nossa compreensão do mundo é moldada, até que não possamos mais perceber que esses fundamentos, uma construção, são a nossa base cultural. Somos cativos de nossas próprias experiências de vida. Não podemos reconhecer, e muito menos remover, os preconceitos por trás das coisas que tomamos como certas : a educação é boa, todos devem ser capazes de ler e escrever, todos os seres humanos merecem e exigem um nível básico de renda, nossa saúde é dependente de agentes externos, na forma de médicos e fabricantes de medicamentos farmacêuticos, tudo e todo pedaço de terra pertence a alguém.

Para ter sucesso, precisamos competir com os outros, porque ele depende da nossa capacidade de obter vantagem sobre os outros membros da sociedade nos quesitos financeiro, status, autoridade ou poder. Nosso sucesso é medido pelo que acumulamos e quanto poder temos, em termos materiais, estruturais sociais e empregatícios. Valorizamos muito mais os bens materiais que os sociais; preferimos ter uma casa agradável e confortável a fazer parte de uma comunidade de apoio mútuo. Desconfiamos dos nossos vizinhos e brigamos com familiares por herança e disparidade de riquezas. Cada vez mais, vivemos isolados, conectados apenas superficialmente com nossos amigos e familiares, cuja distância física frequentemente facilita ou conduz a nossa divergência social. Compartilhamos pouco e acumulamos muito. As pessoas ricas acumulam mais do que jamais poderiam usar, mas são levados, por uma falta perversa de razão, a acumular ainda mais, em uma espiral viciosa, que leva ao desperdício e à destruição, bem como não consegue garantir felicidade nem satisfação.

Como se difere o bebê indígena? Cercado pelo amor, é cuidado por todos os membros de sua comunidade. Cresce sem a necessidade de um cobertor, pois obtém todo o calor e conforto de que precisa do colo de sua mãe. Quanto aos brinquedos, não precisa possuí-los, pois tudo aquilo que ele pode brincar, para desenvolver a sua compreensão do mundo, está ao seu redor, numa enorme diversidade. Aprende rapidamente como se deve interagir com os espíritos, porque eles estão presentes em todos os lugares e em todos os momentos, na terra, no céu, nas rochas, nas plantas e animais, na água e no ar. Um dia de sucesso é aquele em que os espíritos estão em equilíbrio, pois não haverá fome, inquietação, discordância com outros seres humanos, animais ou quaisquer componentes do mundo. O dia terminará com satisfação e sem necessidade, exatamente como começou. E isso será suficiente. Ser é suficiente. Ser parte da comunidade, contribuir, receber, participar e ser valorizado, em igual medida, é suficiente.

A reação de vocês às minhas palavras provavelmente será “isso deve ser maravilhoso, , mas não é o mundo real; nunca poderíamos alcançá-lo, porque precisamos de coisas, casas, carros, ônibus e trens, assim como precisamos de aprendizado, universidades, hospitais e teatros”.

A questão é que nós não precisamos dessas coisas. Estamos acostumados a elas, é verdade. Até o ponto de não cogitarmos desistir delas, uma vez que representam nossos valores culturais. Essas coisas são o nosso mundo.

O nosso mundo, entretanto, é construído em uma mentira, com base na falsa suposição de que é possível continuar assim

Vivemos em um esquema de pirâmide, que, inevitavelmente, entrará em colapso. Por uma razão lógica, não é possível crescer indefinidamente, muito embora tenha sido perversamente criado um mecanismo que depende do crescimento contínuo para seu funcionamento adequado.

Em janeiro, na aldeia Piaraçu, Terra Indígena Capoto Jarina, no rio Xingu, meu professor e amigo, Cacique Raoni, falou sobre a ganância que é a base da nossa cultura. A ganância é um anátema aos valores indígenas, a antítese do fundamento comunitário da sua cultura. Entretanto, está começando a infectar os povos indígenas do Xingu, que, há quinhentos anos, conseguiram evitar a subjugação e desenvolveram contato com sociedade brasileira, mantendo seus valores tradicionais e estruturas sociais. Somente agora, no século XXI, a dependência crescente do dinheiro corre o risco de enfraquecer as normas culturais que resistiram ao teste do tempo, muito antes da chegada de Orellana e Cabral. Esta é a maior ameaça à integridade das comunidades indígenas.

Cacique Raoni está ciente desse perigo e afirma que é preciso resistir. Embora possa ser impossível deixar de lado a nossa bagagem cultural, devemos, pelo menos, garantir que as comunidades indígenas consigam manter a sua integridade. Essa garantia que pesam muito menos sobre os recursos deste mundo do que a integridade do nosso modo de viver e pode, no devido tempo, ser de grande valor ao redirecionar o nosso modelo defeituoso para outro de maior sustentabilidade, podendo até ser crucial para a sobrevivência da humanidade.

Se o homem industrial continuar com os “negócios de sempre”, que incluem excesso de consumo, desigualdade de recursos e dinheiro, ganância desenfreada, uso indiscriminado dos recursos naturais da Terra, como os combustíveis fósseis, e a eliminação descuidada de resíduos, estaremos a caminho de um desastre. Todavia, se pudermos reconhecer a tempo que este caminho leva a um inevitável esgotamento de recursos, então poderemos atrasar o tempo em que alcançaremos esse limite e, talvez, até chegar ao ponto da sustentabilidade, que poderia garantir um futuro justo e confortável para seis, dez ou vinte gerações.

Isso exige o que hoje é considerada uma reengenharia inimaginável das estruturas sociais, financeiras e comerciais do mundo convencional. A população global tem que se estabilizar e cair, a riqueza ostensiva deve se tornar ofensiva e inaceitável, e não aspiracional como é hoje, a desigualdade precisa diminuir e temos que começar a cuidar melhor dos recursos da Terra, reconhecendo a sua finitude. Precisamos reciclar e reutilizar tudo o que fabricamos, bem como eliminar completamente o desperdício, transformando nossos padrões de consumo em um ciclo fechado de uso, reutilização e reciclagem. A reciclagem deve ser projetada e incorporada em todos os produtos e estruturas e com itens sendo projetados para utilizar uma quantidade mínima de recursos, durar o máximo possível e ser consertável, a antítese exata das prioridades corporativas de hoje.Outro passo urgente a ser dado é a descarbonização rápida de nossa produção de energia. O circuito fechado como objetivo final, ainda hoje, é impensável, um sonho impossível. No entanto, se queremos sobreviver, inevitavelmente isso deverá se tornar a norma. Quanto mais cedo chegarmos a esse ponto, menor será a dor. As gerações futuras olharão para o nosso tempo como a Era do Desperdício e irão questionar por que demoramos tanto para mudar esse nosso jeito de ser.

Os povos indígenas e suas lideranças, como o Cacique Raoni, podem e devem ser nossos professores neste processo. Devemos reconhecer e valorizar a sabedoria do modo de vida indígena e encontrar maneiras de adaptar a nossa forma de existir, adotando muitos dos seus valores. Dessa forma, poderemos reter muitos benefícios das práticas ​​que a humanidade tem desenvolvido nos últimos milênios. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso defini-las em uma estrutura que reconheça os danos que causamos ao nosso mundo e a finitude dos recursos naturais. Devemos nos tornar guardiões deste planeta, em vez de parasitas, aprendendo a compartilhar seus abundantes recursos com outras pessoas e, especialmente, com as gerações futuras, em vez de sermos egoístas, gananciosos e avarentos.

As pessoas não vão mudar da noite para o dia, mas precisamos começar a caminhar na direção certa. Basta aceitarmos que devemos ser aprendizes, enquanto os povos indígenas, que hoje deixam suas casas para tentar nos ensinar, os guias e mentores neste processo. A ganância não é uma característica inerente à humanidade, é um comportamento culturalmente aprendido. Precisamos olhar para este hábito de forma crítica, para nos livrarmos dele e fazer deste mundo mais do que um lugar melhor, mas o único possível para sobreviver.

Este texto foi publicado originalmente em inglês. Você pode conferir a versão original clicando aqui.

 

 

Patrick Cunningham é autor do livro “Spirit of the Amazon: The Indigenous Tribes of the Xingu“, publicado pela editora Papadakis em outubro de 2019.
Imagem em destaque – os guerreiros Kayapó são hábeis em usar o poder de sua imagem, desafiando as câmeras diante do icônico edifício do Congresso em Brasília, após uma reunião com os senadores. Foto: Sue & Patrick Cunningham.
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