Resenha: A propósito do filme ‘Pisar Suavemente na Terra’

Samyra Crespo avalia o filme 'Pisar Suavemente na Terra' e reflete sobre sua própria percepção da Amazônia ao longo dos anos

Pepe Manuyama, líder do povo Kukama, do Peru em Pisar Suavemente na Terra
José "Pepe" Manuyama, líder do povo Kukama, do Peru. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
Pepe Manuyama, líder do povo Kukama, do Peru em Pisar Suavemente na Terra

José “Pepe” Manuyama, líder do povo Kukama, no Peru. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude

Embora Pisar Suavemente na Terra já tenha sido lançado há quase dois anos, em circuitos de cinema ambiental e sessões especiais, somente agora irá ter divulgação ampla numa famosa plataforma de streaming. As negociações estão quase finalizadas, informou o diretor, cineasta, ambientalista, e brasileiro residente nos Estados Unidos, Marcos Colón.

Outra informação importante: o filme ganhou o prêmio de Melhor Longa-Metragem no Festival de Cinema do Equador recentemente, na sessão Seamos la voz de la naturaleza.

Vi o filme num link privado. Portanto, nossos amigos e amigas, se ainda não viram, terão que esperar um pouco. Bem pouco. Trailer e “aperitivos” do filme estão disponíveis na internet.

Vamos à obra. Primeiro, com uma breve introdução para tornar claro o lugar de onde falo, deixando bem assinada minha apreciação.

Sou da geração que ouvia o bordão “Amazônia: integrar para não entregar”, que acreditava num “inferno verde” e que assistiu nas telas Aguirre, a Cólera dos Deuses, épico do cineasta alemão Werner Herzog.

Como toda cria da cidade, nunca tinha posto meus pés naquelas terras, e sim, considerava os indígenas vestígios pré-históricos que os sertanistas e a Funai tentavam cuidar, como a gente cuida de crianças.

Óbvio que como ativista ambientalista, fui mudando essa percepção, e não tão rápido quanto se pode pensar.

Fui à Amazônia pela primeira vez nos anos 90 e já com quase 40 anos. Fui com um grupo de jornalistas e ativistas conhecer a forma “sustentável” com que a Petrobrás tinha construído um gasoduto no meio da floresta. Nosso ponto de vista era o de ter uma opinião sobre o empreendimento. Hospedada num hotel chique, cercada de uma porção da floresta domesticada.

Nunca me recuperei da primeira vez que vi — do alto de um avião — a massa verde vegetal, pequena diante da magnitude da bacia: um planeta de água.

E esse fascínio pela água me levou à viagem por conta própria, com amigos, pelos rios Arapiús e Tapajós alguns anos depois, conhecendo as populações ribeirinhas e visitando os igarapés. Expedição de barco fretado, dormindo em redes, cruzando com “voadoras” e canoas num mundaréu de água. Vagamos por dez dias até terminar aquela saga em Alter do Chão.

Na terceira vez, fui à trabalho a Juruti, no oeste do Pará, no âmbito de um projeto da Alcoa chamado Juruti Sustentável. A Alcoa estava implantando ali uma planta de mineração de bauxita. Contei essa experiência em meu livro lançado em 2021 Conta quem Viveu, Escreve quem se Atreve.

Crianças brincam em barco na Amazônia

Crianças brincam em barco na Amazônia. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude

Em todas as vezes que fui à Amazônia, não tive contato com as aldeias indígenas. Elas sempre me pareceram míticas, ilhas de solidão voluntária, no meio da floresta imensa.

A ideia de pensarmos os indígenas brasileiros como “povos da floresta“, “povos originários” e, mais recentemente, “nossos ancestrais” ou “guardiões da floresta” é relativamente recente — e pula de um saber antropológico para o ativismo ambiental, a partir dos anos 80: com as políticas de demarcação das terras indígenas, no arco político do Brasil democrático da era Lula.

O Instituto Sócio Ambiental (ISA), com Beto Ricardo, João Paulo Capobianco e outros ativistas incansáveis, colocaram a causa indígena no mapa do mainstream ambiental.

Essa introdução um pouco longa é absolutamente necessária para explicar o impacto que o filme me causou, especialmente o depoimento da cacique Katia Aãntikatêgê, contando o episódio de expulsão de seu povo das terras que lhes pertenciam, na construção da barragem de Tucuruí. É de cortar o coração.

Katia Aãntikatêgê, contando o episódio de expulsão de seu povo em Pisar Suavemente na Terra

Katia Aãntikatêgê contando o episódio da expulsão de seu povo. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude

Resumindo, Pisar Suavemente na Terra oferece ao espectador três planos para entender a problemática da Amazônia.

Deixarei o plano do título — Krenak na veia — para o final.

O primeiro plano é a proposta, bem sucedida, de mostrar não só a Amazônia brasileira, mas compará-la, em termos dos problemas e impactos negativos, com a porção peruana: o drama real da Pan-Amazônia.

As palafitas, o trânsito caótico, a pobreza explícita, o ambiente insalubre de Iquitos é dramaticamente semelhante ao que se vê em Marabá, Santarém e outras cidades com periferia ribeirinha no Norte do país.

O progresso prometido pelos empreendimentos de mineração e petróleo, pelas barragens e linhas de transmissão, rasgou a floresta, expulsou os donos da terra e os transformou em mendigos, povos deslocados. Homens e mulheres degradados por promessas que não se cumpriram, por injustiças que marcam profundamente as novas gerações. E empurram novas lideranças.

O segundo plano é a força do testemunho e mais uma vez o filme de Colón acerta na escolha dos caciques José Pepe (líder do povo Kukama, Peru), da cacique Katia e do cacique Emanuel, líder do povo Munduruku (PA).

As histórias contadas nos são familiares: já foram notícias em jornais televisivos, denúncias no Congresso, placas em manifestações.

Entretanto, a escuta do longa capta a força de quem viveu cada palavra dita e a imagem (a magia do cinema!) nos transporta para aquela dor vivida.

O terceiro plano é a narração de Krenak. Suas ideias cristalizadas nos livros que publicou e que se tornaram best-seller.

Ailton Krenak, filósofo e imortal da ABL é pop. Sua filosofia tem três âncoras que o documentário aproveita para enfatizar. A cultura indígena contém um saber ancestral de como manejar a floresta sem destruir. Esse saber pode contribuir para sairmos da situação crítica em que nos encontramos.

Ailton Krenak em frente ao Rio Doce - Pisar Suavemente na Terra

Ailton Krenak em frente ao Rio Doce. Foto: Marcos Colón/ Amazônia Latitude

A segunda âncora é o papel dos povos originários no contexto cultural brasileiro: tirá-los do lugar menor de um povo “atrasado” ou na “infância da civilização” e praticar a observação e escuta necessárias sobre os valores éticos e espirituais que os animam, e que deixamos de lado para adotar uma visão utilitária e consumista dos bens naturais e culturais do planeta.

A terceira e ultima é a crítica radical ao modelo de desenvolvimento que está nos levando a “comer” a Terra, na lógica de O Queijo e os Vermes.

Articulando esses três planos com habilidade e, apesar do drama, com grande força poética, vejo este filme como um marco. Penso que se o Brasil fosse um país com coragem de enfrentar seus dilemas mais agudos de frente, o exibiria nas escolas e universidades públicas.

Fico animada com a possibilidade, agora real, de Pisar Suavemente na Terra ganhar mais corações e mentes, podendo contribuir para que a Amazônia seja vista, e pensada, com mais clareza. Ao mesmo tempo, com mais complexidade.

Samyra Crespo é uma intelectual brasileira, escritora, ambientalista, professora, pesquisadora e especialista em políticas públicas. Graduada e doutorada pela Universidade de São Paulo em História Social, já foi coordenadora do Instituto Ecoar, secretária de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental do Ministério do Meio Ambiente do Brasil, ex-presidente do conselho do Greenpeace e presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Foi responsável por elaborar a primeira pesquisa de opinião pública sobre meio ambiente no Brasil e a coordenou por 20 anos.

Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón

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