Resenha: A propósito do filme ‘Pisar Suavemente na Terra’
Samyra Crespo avalia o filme 'Pisar Suavemente na Terra' e reflete sobre sua própria percepção da Amazônia ao longo dos anos
![Pepe Manuyama, líder do povo Kukama, do Peru em Pisar Suavemente na Terra](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2024/05/Pisar-Suavemente-na-Terra_Marcos-Colon-175-900x500.webp)
![Pepe Manuyama, líder do povo Kukama, do Peru em Pisar Suavemente na Terra](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2024/05/Pisar-Suavemente-na-Terra_Marcos-Colon-175.webp)
José “Pepe” Manuyama, líder do povo Kukama, no Peru. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
Embora Pisar Suavemente na Terra já tenha sido lançado há quase dois anos, em circuitos de cinema ambiental e sessões especiais, somente agora irá ter divulgação ampla numa famosa plataforma de streaming. As negociações estão quase finalizadas, informou o diretor, cineasta, ambientalista, e brasileiro residente nos Estados Unidos, Marcos Colón.
Outra informação importante: o filme ganhou o prêmio de Melhor Longa-Metragem no Festival de Cinema do Equador recentemente, na sessão Seamos la voz de la naturaleza.
Vi o filme num link privado. Portanto, nossos amigos e amigas, se ainda não viram, terão que esperar um pouco. Bem pouco. Trailer e “aperitivos” do filme estão disponíveis na internet.
Vamos à obra. Primeiro, com uma breve introdução para tornar claro o lugar de onde falo, deixando bem assinada minha apreciação.
Sou da geração que ouvia o bordão “Amazônia: integrar para não entregar”, que acreditava num “inferno verde” e que assistiu nas telas Aguirre, a Cólera dos Deuses, épico do cineasta alemão Werner Herzog.
Como toda cria da cidade, nunca tinha posto meus pés naquelas terras, e sim, considerava os indígenas vestígios pré-históricos que os sertanistas e a Funai tentavam cuidar, como a gente cuida de crianças.
Óbvio que como ativista ambientalista, fui mudando essa percepção, e não tão rápido quanto se pode pensar.
Fui à Amazônia pela primeira vez nos anos 90 e já com quase 40 anos. Fui com um grupo de jornalistas e ativistas conhecer a forma “sustentável” com que a Petrobrás tinha construído um gasoduto no meio da floresta. Nosso ponto de vista era o de ter uma opinião sobre o empreendimento. Hospedada num hotel chique, cercada de uma porção da floresta domesticada.
Nunca me recuperei da primeira vez que vi — do alto de um avião — a massa verde vegetal, pequena diante da magnitude da bacia: um planeta de água.
E esse fascínio pela água me levou à viagem por conta própria, com amigos, pelos rios Arapiús e Tapajós alguns anos depois, conhecendo as populações ribeirinhas e visitando os igarapés. Expedição de barco fretado, dormindo em redes, cruzando com “voadoras” e canoas num mundaréu de água. Vagamos por dez dias até terminar aquela saga em Alter do Chão.
Na terceira vez, fui à trabalho a Juruti, no oeste do Pará, no âmbito de um projeto da Alcoa chamado Juruti Sustentável. A Alcoa estava implantando ali uma planta de mineração de bauxita. Contei essa experiência em meu livro lançado em 2021 Conta quem Viveu, Escreve quem se Atreve.
![Crianças brincam em barco na Amazônia](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2024/05/Pisar-Suavemente-na-Terra_Marcos-Colon-156.webp)
Crianças brincam em barco na Amazônia. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
Em todas as vezes que fui à Amazônia, não tive contato com as aldeias indígenas. Elas sempre me pareceram míticas, ilhas de solidão voluntária, no meio da floresta imensa.
A ideia de pensarmos os indígenas brasileiros como “povos da floresta“, “povos originários” e, mais recentemente, “nossos ancestrais” ou “guardiões da floresta” é relativamente recente — e pula de um saber antropológico para o ativismo ambiental, a partir dos anos 80: com as políticas de demarcação das terras indígenas, no arco político do Brasil democrático da era Lula.
O Instituto Sócio Ambiental (ISA), com Beto Ricardo, João Paulo Capobianco e outros ativistas incansáveis, colocaram a causa indígena no mapa do mainstream ambiental.
Essa introdução um pouco longa é absolutamente necessária para explicar o impacto que o filme me causou, especialmente o depoimento da cacique Katia Aãntikatêgê, contando o episódio de expulsão de seu povo das terras que lhes pertenciam, na construção da barragem de Tucuruí. É de cortar o coração.
![Katia Aãntikatêgê, contando o episódio de expulsão de seu povo em Pisar Suavemente na Terra](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2024/05/Pisar-Suavemente-na-Terra_Marcos-Colon29.webp)
Katia Aãntikatêgê contando o episódio da expulsão de seu povo. Foto: Marcos Colón/Amazônia Latitude
Resumindo, Pisar Suavemente na Terra oferece ao espectador três planos para entender a problemática da Amazônia.
Deixarei o plano do título — Krenak na veia — para o final.
O primeiro plano é a proposta, bem sucedida, de mostrar não só a Amazônia brasileira, mas compará-la, em termos dos problemas e impactos negativos, com a porção peruana: o drama real da Pan-Amazônia.
As palafitas, o trânsito caótico, a pobreza explícita, o ambiente insalubre de Iquitos é dramaticamente semelhante ao que se vê em Marabá, Santarém e outras cidades com periferia ribeirinha no Norte do país.
O progresso prometido pelos empreendimentos de mineração e petróleo, pelas barragens e linhas de transmissão, rasgou a floresta, expulsou os donos da terra e os transformou em mendigos, povos deslocados. Homens e mulheres degradados por promessas que não se cumpriram, por injustiças que marcam profundamente as novas gerações. E empurram novas lideranças.
O segundo plano é a força do testemunho e mais uma vez o filme de Colón acerta na escolha dos caciques José Pepe (líder do povo Kukama, Peru), da cacique Katia e do cacique Emanuel, líder do povo Munduruku (PA).
As histórias contadas nos são familiares: já foram notícias em jornais televisivos, denúncias no Congresso, placas em manifestações.
Entretanto, a escuta do longa capta a força de quem viveu cada palavra dita e a imagem (a magia do cinema!) nos transporta para aquela dor vivida.
O terceiro plano é a narração de Krenak. Suas ideias cristalizadas nos livros que publicou e que se tornaram best-seller.
Ailton Krenak, filósofo e imortal da ABL é pop. Sua filosofia tem três âncoras que o documentário aproveita para enfatizar. A cultura indígena contém um saber ancestral de como manejar a floresta sem destruir. Esse saber pode contribuir para sairmos da situação crítica em que nos encontramos.
![Ailton Krenak em frente ao Rio Doce - Pisar Suavemente na Terra](https://www.amazonialatitude.com/wp-content/uploads/2022/10/Imagem-de-destaque-900x600-6.jpg)
Ailton Krenak em frente ao Rio Doce. Foto: Marcos Colón/ Amazônia Latitude
A segunda âncora é o papel dos povos originários no contexto cultural brasileiro: tirá-los do lugar menor de um povo “atrasado” ou na “infância da civilização” e praticar a observação e escuta necessárias sobre os valores éticos e espirituais que os animam, e que deixamos de lado para adotar uma visão utilitária e consumista dos bens naturais e culturais do planeta.
A terceira e ultima é a crítica radical ao modelo de desenvolvimento que está nos levando a “comer” a Terra, na lógica de O Queijo e os Vermes.
Articulando esses três planos com habilidade e, apesar do drama, com grande força poética, vejo este filme como um marco. Penso que se o Brasil fosse um país com coragem de enfrentar seus dilemas mais agudos de frente, o exibiria nas escolas e universidades públicas.
Fico animada com a possibilidade, agora real, de Pisar Suavemente na Terra ganhar mais corações e mentes, podendo contribuir para que a Amazônia seja vista, e pensada, com mais clareza. Ao mesmo tempo, com mais complexidade.
Samyra Crespo é uma intelectual brasileira, escritora, ambientalista, professora, pesquisadora e especialista em políticas públicas. Graduada e doutorada pela Universidade de São Paulo em História Social, já foi coordenadora do Instituto Ecoar, secretária de Articulação Institucional e Cidadania Ambiental do Ministério do Meio Ambiente do Brasil, ex-presidente do conselho do Greenpeace e presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Foi responsável por elaborar a primeira pesquisa de opinião pública sobre meio ambiente no Brasil e a coordenou por 20 anos.
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Direção: Marcos Colón