A metamorfose da Música Popular Paraense
Ensaio aborda a criação, a metamorfização, popularização e nacionalização da MPP ao longo dos anos
Tambores da música paraense. Foto: Eduardo Nogueira. Arte: Fabrício Vinhas/Amazônia Latitude
RESUMO:
Neste ensaio, exponho algumas observações e problematizações acerca da metamorfose. Ou seja, das transformações profundas pelas quais estão passando a música e o mundo da Música Popular Paraense no contexto da globalização. O argumento central é que está em curso um processo de reinvenção da tradição musical local que não é mais apenas pautado na perspectiva de sua reprodução (normal), mas sim como uma transformação (anormal) profunda dotada de vários sentidos. Por meio de um apanhado da trajetória da história da Música Popular Paraense moderna em sua relação com o plano nacional, em parte do século passado, procuro mostrar que as mudanças que nela foram operadas naquele contexto, em diversos momentos diferem sobremaneira do que nela se processa nesse início de século.
Com a globalização, os elementos desencadeadores de distúrbios identitários, hibridizações e sincretismos em fluxo ininterrupto e geradores de incertezas, interferem nas significações antes criadas e usadas com a finalidade de dar certa estabilidade à sua convencionalização. Devido a essas transformações, o que passou a definir a característica desse cenário foi a sua metamorfose, sendo uma de suas marcas a variação ou, até mesmo uma negação, de sentido das definições de gênero musical, algo operado pelo grupo musical que a controla. Se antes nomear em gêneros tinha uma função delimitadora para o efetivo controle, agora as formas de controle operam justamente com o discurso da diversidade como característica da incerteza, nova forma de ver o pressuposto identitário.
Do ponto de vista do processo social, também se exprimem novas formas de relação e interação entre os atores do mundo da canção paraense contemporâneo. Antes segmentados, e agora componentes de uma totalidade cultural que ainda se valem do imaginário do regional. Mas não mais regionalismo isolado, como mote de resistência às ameaças de intrusão, mas sim como um regionalismo globalizado que, paradoxalmente, procura fundamentar esse discurso da pluralidade como o dado fundamental de sua significação, que é a sua localização amazônica, o objeto de seu discurso.
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Metamorfose como produto da globalização
A principal característica do mundo atual é sua ubiquidade, devido às possibilidades de comunicação propiciadas pelos grandes avanços tecnológicos. Todavia, as características desse processo são as mais variadas. Interessa aqui abordá-lo por meio de um ponto específico que sua influência — ou determinação — sobre as formas de ocorrência das interações e figurações sociais, objetivas e subjetivas, agora aceleradas e conectadas sem um sentido preciso, distinto. Todos estão ligados e em contágios culturais. Assim, no interior desse processo de localização da globalização, os elementos de sustentação do que se entende como tradicional, local, em uma ficção de auto-representação que sempre foi criada e recriada. Portanto, uma invenção, mas que na atualidade se encontra em outro estágio. É essa situação que mostra que os descentramentos, com a emergência das culturas das margens, são atuações sociais que resultam dessas desestabilizações (CANCLINI, 1998, 2007; APPADURAI, 2004; HANNERZ, 1997; AGIER, 2001).
O atual nível de circulação promove uma variedade de experiências globalizadoras em todas as esferas. Por mais que seja uma ação de ampla extensão, do ponto de vista do impacto, as ações da globalização são pontuais, tanto na vida coletiva, nos processos sociais, como no âmbito individual. Isso significa que o uso do que é global é sempre localizado. No caso do objeto aqui observado, os elementos culturais globais — sejam estéticos ou sonoros — são discursos que exercem influência incondicional na formatação da atual Música Popular Paraense ao adquirirem novas significações, desdobrando-se em novos componentes do cenário.
A visão regionalista que sustentava a cultura musical, criada como moderna tradição perdeu o sentido nos últimos anos. Os ideólogos do processo musical paraense e os atores que o haviam utilizado como sustentação para suas estéticas retomaram-no agora sob outra perspectiva, haja vista que a cultura musical paraense ainda se encontra em uma condição periférica. Todavia não mais carregada com um discurso do regional tradicional, mas sim reatualizado como tradição. E aí reside a questão colocada por mim nessa abordagem, pois é fundamental tratar dos aspectos locais da globalização na música local contemporânea.
A invenção da Música Popular Paraense
A perspectiva de leitura aqui exposta se encontra assentada em uma base de observação que coaduna a perspectiva histórica à socioantropológica. Dela procuro pautar as reflexões sobre as transfigurações na leitura e na produção de música em uma unidade de interação social que chamo de mundo da canção popular paraense. É nesse mundo, como uma cultura musical, que se efetivam projetos individuais ou coletivos e sociabilidades diversas que dinamizam o processo musical paraense. Como recurso de observação, divido esse mundo em cenas local — os processos em Belém — e translocal — atuação de artistas na centralidade do país, as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro.
O ponto de partida é a seguinte questão: como essa cultura musical “localizada” foi impactada pelos elementos da globalização? Quais os desdobramentos disso? A hipótese aqui lançada é que o conjunto de atores que compartilham a linguagem musical paraense, a produzem e promovem sua circulação, procedeu de forma pragmática a uma adaptação das características da musicalidade local às possibilidades sonoras transnacionais como sustentação para suas investidas no cenário brasileiro de música popular. Ocorre que disso resultou a reinvenção radical e profunda da tradição musical paraense.
Como “fundo” para essa situação, foi acionada a marca Amazônia, tal como em outras épocas. Mas agora trata-se de uma Amazônia globalizada, inventada e reinventada, que ultrapassa os marcos de delimitação geográfica. Por isso, tomei como prumo a Amazônia como uma invenção, tal como propõe Neide Gondim (2007), e também como um discurso, aproximado à fórmula que Edward Said (1990) propôs para ler o Oriente. Isso adquire um sentido preciso quando passo à noção de cultura como uma invenção, como propõe o antropólogo Roy Wagner (2012).
Do ponto de vista histórico, o desenvolvimento de um caráter reativo no campo das artes paraenses nas últimas décadas se deveu à forma como a região foi incorporada ao Estado nacional na primeira metade do século XIX. Os artistas paraenses dos anos 1970 até o final do final do século XX teriam tomado com base para sua produção essa perspectiva de estarem sendo confrontados com o processo de fronteirização da região, dando origem a uma perspectiva de criação de uma identidade partir dessa condição de estar apartado do Estado nacional (CASTRO, 2011). No campo da música, isso teria aplacado um ethos regionalista que guiou a produção musical pelos caminhos do uso da temática amazônica como confrontação ao Estado brasileiro: para as cenas locais das décadas de 1980 e 1990, esse foi o eixo.
Entretanto, há indicações de que essa perspectiva perdeu força no início do século XXI, porque a questão de a música paraense “ser e não ser” brasileira ganhou outros contornos, devido aos processos globalizadores e à crise gerada por eles no sentido da existência de unidades culturais nacionais. Ou seja, a ligação dessa música localizada ao escopo nacional, do ponto de vista estritamente musical, que já era bastante frágil, se é que existia, foi duramente atingida. O dos argumentos que sustento aqui é que a música paraense está passando por uma metamorfose, porque, embora se pretende nacional, ela acaba sendo mais global — menos por seu raio de divulgação do que das influências que a atingem. Porém, é preciso vagar nessa assertiva, pois a atuação política do Estado no campo local das artes não pode prescindir de sua condição de integrante do Estado nacional, haja vista que existe aí uma questão de cultura como política. Ou seja, de encetar elementos de legitimação de construção de identidades como legitimação da dominação. Mas, curiosamente, veremos à frente que essas transformações que levaram a esse processo de metamorfose, algo não intencional, teve início justamente com uma ação intencional do Estado.
Embora a Amazônia brasileira seja mais da metade do território brasileiro, no imaginário amazônico ela é longe do Brasil. Isso deu o mote para a configuração e o sucesso de uma mitografia da distância como a argamassa da visão que se construiu sobre essa questão. A originalidade de uma cultura distinta e potente. Afunilando a visada, por sua vez, perfaz a noção de uma cultura musical peculiar que se desenvolveu no interior de uma cidade amazônica, Belém do Pará.
Essa condição espacial forneceu os elementos para a construção dessa mitografia da distância da Amazônia em relação ao Brasil, de um ideal de um isolamento da região em relação à centralidade do Estado nacional que teria subsidiado a invenção de uma cultura musical singular. E foi isso que o grupo sonoro — ou seja, quem diz o que é a música paraense — do mundo artístico local abraçou como o elemento de fundação e sustentação de uma cultura musical peculiar e original, que se assentou no recurso ao discurso do regional geográfico transmutado em simbólico.
Contudo, nisso reside um sentido, pois nada surge do nada. Embora uma mitografia, a ela dá sentido elementos históricos, que foram e são somados e tomados como pressupostos e justificativas para diversos, e às vezes até conflitantes entre si, interesses de grupos regionais. Certamente, é por isso que esse imaginário da distância e do isolamento está patente no imaginário dos atores locais, seja do campo das artes ou da política, quando associa o Pará à Amazônia.
A título de ilustração, quando entrevistava um músico para minhas pesquisas, salientei essa questão da “confusão” da Amazônia ao Pará e à Belém. Ele afirmou que se trata de “uma coisa só, porque somos todos explorados pelo Sul”. E em tom de repreensão, me perguntou que diferença que eu vejo. “Vamos, você que é estudioso, explique! Onde tem Floresta [Amazônica] tem exploração pelo Sul!”, asseverou. Não precisa ir muito longe para encontrar discursos emitidos pelo Estado nesse tom também. Ou seja, para o Estado e para o artista — esse e outros — é operacionalmente viável tratar a região toda como uma unidade regional e cultural, como se realmente fosse uma coisa só porque, “seja em Manaus ou Belém, ou em qualquer outro lugar da Amazônia brasileira, lá está a marca da ausência de um sentido de ser brasileiro”.
Mas, se como defendo aqui, as culturas são invenções, os processos culturais são, consequentemente, convenções, pois formatam um ideal de identidade pela diferenciação, sustentando o conjunto de repertórios e ação dos indivíduos, o que possibilita e legitima sua vinculação a um grupo social. Sendo assim, as culturas, simbolização e práticas são sustentadas por tradições que, por sua vez, são reformuladas de acordo com os contextos históricos. Nesse sentido, quando se fala de uma cultura musical como um dado localizado, deve-se ter em mente que se trata de lidar com a seguinte questão: embora a tradição assegure a transmissão de uma cultura musical, isso não ocorre como uma reprodução idêntica, haja vista que a cultura — e em certa medida, a identidade — é dinâmica e, portanto, está sujeita a distúrbios identitários devido a turbulências nos referenciais.
A Música Popular Paraense é uma moderna tradição. Ou seja, é produto de uma ancestralidade encenada, que busca no uso de elementos estéticos um pressuposto identitário de cariz simbólico. O que se faz quando se evoca o “resgate” da tradição não é, portanto, a recuperação efetiva de algo essencial, mas sim de uma invenção, um produto da ação humana carregado de interesses políticos, sociais e culturais, que se deslindam no processo histórico.
Por ser uma linguagem portadora de inexorável carga afetiva e que espraia com mais facilidade e regularidade no espaço social, a Música Popular Paraense tem um interesse instrumental às políticas de Estado. Por isso, vez ou outra, ela é utilizada como instrumento de potencial e efetiva legitimação de práticas que interseccionam política e cultura. A breve perspectiva histórica apresentada a seguir mostra um quadro da trajetória do que veio a desembocar no que hoje é MPP em metamorfose.
A música paraense contemporânea é resultado de uma reinvenção da tradição da cultura identidade que resultou da mitografia a que me referi linhas atrás. Por outro lado, a visão sudestina também se forjou a partir desse mesmo imaginário da distância. E, assim, procurou se pautar em uma leitura do longínquo como a causa do exotismo da música amazônica, por meio de um processo diferenciador como meio da simbolização dessa questão espacial para definir os meios de controle. Se volvemos à década de 1970, quando ocorreu o que pode ser tomado como o marco de ingresso efetivo de artistas da região no cenário nacional, o potencial regionalista dos amazônidas foi o que deu o tom da percepção para a orientação e recepção da produção local. Dessa forma, se articulava uma distinção possível.
Entretanto, efetivamente, essa utilização do regionalismo exótico como fator, ainda que tenha ali se afirmado como uma fase na trajetória, não teve ali seu início. A necessidade de o artista ter que sair da região para poder mostrar o trabalho e, então, tentar um lugar ao sol no cenário nacional é uma constante para os artistas da música. Nesse sentido, podemos tomar como marco para o que proponho do caso mais emblemático de um músico paraense que “teve que sair”, o maestro Waldemar Henrique. Ele deixou Belém em 1933 e foi para o Rio de Janeiro, onde se anunciou como o realizador da música amazônica, impelido a dar atender aos anseios dos ideólogos do campo cultural que estiveram à frente da ações de renovação da cultura brasileira proposta pelo Movimento Modernista de 1922: mostrar um Brasil profundo de tonalidade amazônica. Tendo reconhecida sua proposta, o maestro acabou sendo tomado como “um achado” aos olhos dos modernistas, pois sua música era a legítima expressão de um “primitivismo bárbaro” saído das “entranhas da floresta” que se mostrava como um regionalismo esteticamente tratado, muito caro aos interesses do nacionalismo modernista.
Entre os anos 1950 e 1970, temos outro expressivo exemplo de ajustamento convencional de um artista regional paraense ao mercado musical nacional, com a ida de Ary Lobo para o Rio de Janeiro, em 1950. O músico também teve em sua trajetória atuações no circuito nacional de música popular pautadas em suas várias produções com recorrência às referências da temática regionalista, embora rotulada como “música nordestina” — o que é emblemático e nos ajuda a ver o problema da distância: o Nordeste é mais perto. Um elemento importante a ser incorporado nessa história é que na época que Ary Lobo começa a atuar é justamente quando a televisão passa a ser o principal meio de difusão midiática junto à afirmação de uma indústria fonográfica, o que certamente foi determinante para seu sucesso.
No contexto local, ainda nos anos 1970, temos o lançamento do carimbó como novo segmento musical na cultura massiva local, com o surgimento dos trabalhos fonográficos de Mestre Verequete e seu carimbó “pau e corda” tradicional, cuja formação musical é composta por tambores, os chamados “curimbós”, maracas, banjo artesanal e flauta transversal — estética que foi retomada no contexto de metamorfose, como veremos à frente — e o de Pinduca, com seu carimbó “eletrificado”, uma formação com bateria, saxofones, baixo elétrico e guitarra. Aliás, essa contenda entre carimbó tradicional e o moderno vai render vários capítulos naquela década, pois se tratava de uma discussão cara à modernidade: paradoxalmente, o lugar da tradição no mercado tem como preço o apagamento da tradição.
Como coloquei anteriormente, e mesmo que se possa tomar como ponto inicial para a Música Popular Paraense moderna a década de 1960 — nos quadros da moderna tradição brasileira, na esteira da invenção da Música Popular Brasileira (MPB), um rótulo aglutinador, a partir da canção de protesto e de todo o corolário de manifestação política que grassa na cultura brasileira a partir da atuação dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudante; e no âmbito regional, a realização do I Festival de Música Popular Paraense, em 1967 — efetivamente é no decurso dos anos 1970 e 1980 que temos a invenção da MPP moderna, de caráter identitário e que aciona a temática regionalista-amazônica.
Concomitante à formação da MPB, o que ocorre no final dos anos 1960 e década seguinte, e encabeçada por intelectuais locais que procuravam na Amazônia profunda os fundamentos de uma outra nação distinta do Brasil, como o poeta Ruy Barata e seu filho Paulo André Barata, tem início o processo de invenção da Música Popular Paraense, que em alguns momentos será chamada de MPP, um rótulo separador. Sabemos com o historiador Michel de Certeau (2002) que ao nomear, damos significados precisos, tomamos posse e assim passamos a exercer controle. Dessa forma, a MPP passou a ser denominação de um gênero musical específico que tinha como fator diferenciador, em relação a outros gêneros da região, como o brega, o carimbó ou o samba, o uso de tom político da temática amazônica como estética.
É importante atinar a essa questão, porque se trata de formas de demarcação de espaço na arena das políticas para a cultura em um contexto conturbado, que é a transição para a democracia. Ou seja, do ponto de vista nacional, era importante fortalecer o ideário da nação imaginada. E do ponto regional, era o momento para se mostrar, por meio de uma atitude de reação, a forma como a região amazônica era tratada pelo Estado brasileiro. Esse isolamento vai consolidar um imaginário de que a música popular local deve se valer dessa situação e canalizar isso para as produções.
Temos com Ruy Barata e Paulo André Barata, então, a invenção de um discurso cancional heterológico que procurou articular os elementos do mundo amazônico paraense à estética musical do emepebismo-bossanovista nacionalista dos anos 1970, por meio de práticas específicas e originais. E isso rendeu, pois naqueles anos a obra dos Barata tornou-se conhecida em todo o país pela voz da cantora, conterrânea a ambos, Fafá de Belém. De fato, ainda hoje a atuação desse trio é tomado como referência e modelo para a produção de uma canção paraense-amazônica original, pois, como produto no mercado fonográfico nacional, alcançou certo sucesso legitimando para a cultura musical local o que seja o regional amazônico na canção popular paraense.
Já na cena local de canção popular dos anos 1980, encontramos outras características, embora ainda há um grande peso da perspectiva da década anterior. Mas ali havia outros elementos que extrapolavam o bossanovismo-emepebista dos Barata, ditando outras estéticas, como a influência dos regionalismo nordestino e mineiro. Notamos isso em trabalhos como os de Antônio Carlos Maranhão, Sol do Meio Dia e Madeira-Mamoré. Esses vêm da década de 1970, mas é nos anos 1980 que se afirmam.
Efetivamente, é com a realização da Feira Pixinguinha em Belém, em janeiro de 1980, que tem início a constituição de uma cena de canção belenense de caráter regionalista. Essa festivalização foi, certamente, a tentativa de colocar a canção paraense no circuito nacional que chegou mais perto do intento. O objetivo do evento era dar voz e vez às produções musicais de outro Brasil, um Brasil profundo, longínquo, distante dos grandes centros, como a cena de Belém. Fracassou, mas isso acabou dando o ensejo para a constituição de uma cena local bastante consistente, e que evoluiu no decurso da década, tendo como seu elemento vital o projeto de formatação de uma música regional e regionalista.
Idealizado por artistas e promovida pela Funarte, a primeira edição do evento aconteceu em junho de 1979 em Brasília, e a segunda em janeiro de 1980, em Belém. Em seguida, no mês de fevereiro, foi a vez de Salvador (BA). Desse ponto, já se pode ressaltar a carga simbólica do evento, seu objetivo como projeto geocultural do Estado nacional: a integração nacional da cultura musical, ao sair Brasília, a cidade construída para ser o elo entre o Brasil e o Norte do país, aportar em Belém e seguir para Salvador, integrando a região da Amazônia ao Brasil. A cidade de Belém — que à época galgava o posto de “Metrópole da Amazônia”, de acordo com os interesses do campo político local — foi escolhida como o ponto de largada para a integração da música regional amazônica ao processo musical nacional.
Já é um monumento da memória afetiva do mundo artístico belenense, que na década de 1980 foi uma época de efervescência cultural. Ou seja, foi um espaço temporal marcado por intensas e recorrentes atuações dos artistas em um processo de produção. Disso, frutificou a formação de um sentido comum de “efervescência cultural”. No campo da canção popular, isso se manifestou em uma extensa produção de canções e realização de festivais e apresentações em bares e casas de show. Era difícil gravar, e esses contatos físicos em lugares de canção era a forma de expor um trabalho, uma composição, o que retroalimentava a ideia de uma cultura musical.
Nota-se, então, que na época, havia um projeto coletivo como estética musical, e que estava associado a um pressuposto de âmbito político-ideológico-discursivo: a pressão daquele contexto, quando incitava a formas de reação ao processo de fronteirização da região amazônica empreendido pelo Estado brasileiro. Embora fosse a canção o elemento central, era preciso constituir meios para sua canalização de forma mais efetiva, como uma associação que reunisse a classe. Assim, em junho de 1985, foi criada a Associação de Compositores, Letristas, Músicos e Intérpretes do Pará (Clima), em junho de 1986.
Não foi a primeira tentativa de organização da “classe musical” de Belém — foi antecedida por outras como a Aclip, ainda 1977, e a AMA, em 1980, por exemplo —, a Clima teve um papel importante no fortalecimento da cultura musical da cidade, tanto do ponto de vista político como do cultural, pois fortalecida pôde ser atuante no grupo sonoro da época para fazer frente às políticas de Estado, no que dizia respeito às negociações para a cultura musical local.
Essas notações são fulcrais, porque constituem a história e memória sobre o cenário musical paraense em sua problemática relação com o circuito nacional de música popular, até o fim da década de 1980. Sempre tendo em mira colocar a produção musical paraense no circuito da música brasileira, os artistas paraenses se valeram do que lhes era efetivamente operacional naquele momento — a retomada da ideia da cultura musical peculiar, inventada como tradição de novo —, pois era pautada em uma suposta essência regional que a sustentava.
Nos anos 1970 e 1980, ocorreram casos isolados de artistas que ingressaram no circuito nacional. Mas isso só foi possível porque ao grupo sonoro nacional interessava a produção de caráter regionalista, amazônica. Portanto, a temática regionalista até ali era elemento chave no processo de incorporação — ou não — de artistas paraenses no cenário nacional, entendendo isso como o circuito sudestino. Abordarei mais à frente a situação atual, porém cabe a antecipação de um dado, a título de comparação, para ilustrar. Em uma entrevista concedida no Rio de Janeiro, em 2020, a cantora Natália Matos, nome de destaque da geração da suposta Nova Música Paraense, citou ter sido “cobrada” sobre o que de paraense, amazônico, tinha seu trabalho. Como se pode ver, ainda hoje essa condição existencial de ter que ser regional para pleitear uma entrada no cenário nacional povoa o imaginário do grupo sonoro sudestino da música brasileira.
A reinvenção da MPP
No decurso dos anos 1990, no contexto de afirmação dos processos de globalização, e certamente como uma resposta a isso, ocorre uma primeira mudança na proposta do projeto de música paraense. Ali, o objetivo dos artistas da música popular já não é unicamente ingressar no cenário nacional, pois apresenta-se um novo campo de possibilidades. Vejamos duas situações: a primeira está relacionada ao cantor e compositor Ronaldo Silva. Durante uma entrevista concedida a mim, ele, falando sobre a passagem da década de 1980 para 1990, apontou uma detecção crucial. Ao comentar sobre o processo de produção de seu primeiro disco, o Via Norte, afirmou que a Música Popular Paraense dos anos 80 não teve espaço no circuito nacional e não saiu de Belém, porque havia interessados em manter essa condição de isolamento, como a indústria fonográfica nacional. Ao lhe indagar sobre a posição da indústria fonográfica local nessa situação, ele disse que a essa não interessava a canção popular. Daí o porquê de os artistas, à época, terem começado a investir em outras possibilidades de gravação e meios de circulação de seus projetos, não apenas em âmbito nacional, mas global.
Outra situação é apresentada pela cantora paraense Leila Pinheiro. Ainda que tenha iniciado sua carreira em Belém no início dos anos 1980, logo em seguida, foi para o Rio de Janeiro, onde estabeleceu carreira como cantora na linhagem emepebística-bossanovista, passando a integrar o círculo de artistas da MPB. Em 1991, durante a produção de seu quinto disco, ela resolveu cantar pela primeira vez “coisas do Pará”, e gravou a música Bom dia Belém, uma peça emblemática na cena musical local. Segunda ela, o fato de resolver gravar essa canção se deveu a uma obrigação de ter que falar de seu lugar de origem, e assim, mostrar que o regional e o local têm que se tornar universal.
Citei suas passagens porque ambas contém a ideia de que a música paraense nos anos 1990 tem que se tornar “universal”. Obviamente, não havia ali ainda os meios tecnológicos que anos depois facilitariam o fluxo da produção, mas a ideia já se manifestava. E assim tem início a perspectiva globalizada da canção popular paraense. Em tempo, adianto um ponto curioso: é do disco citado anteriormente de Ronaldo Silva a música Rodopiado, originalmente um baião-coco que em outubro de 2023 viralizou — de pronto chegou a cerca de 11 milhões de visualizações — a partir da gravação de uma versão eletrônica pelo duo nova-iorquino Sofi Tukker. Confirmando um vaticínio de 37 anos atrás, do agora Mestre Ronaldo Silva, a canção popular da Amazônia paraense hoje é efetivamente globalizada, “para a alegria de sua geração”, como ele próprio ressaltou.
Retomemos aos anos 1990. No que expus, nota-se o vislumbre por parte dos artistas de outra possibilidade para a canção paraense, que é galgar lugar no espaço global. Aquela década foi um período no qual a cultura musical local conheceu uma mudança profunda. Ainda que o grupo sonoro mantivesse as tradições musicais, objetivando-as como matéria-prima para um regional modernizado, as mudanças em decorrência do processo da globalização foram sensíveis. O interesse em galgar espaço no cenário nacional arrefeceu. O interesse por possibilidades mais globalizadas requereu a retomada da tradição, mas já tendo em mira seu uso como uma possibilidade estética marcada por perspectivas de hibridização. Aliás, esse é um conceito que ajuda e muito a entender a característica da relação entre os elementos locais e globais, a ratificar que elementos nativos misturados a estrangeiros geram algo totalmente novo, ainda com latência dos elementos formadores.
Na esteira dessas mudanças, ocorreu o ingresso da música da cultura de massa. Para fazer frente a isso, atores da cena local passaram a utilizar o nome MPP como formas de traçar a separação. Sustentando isso estavam a Clima e o sucesso de um artista paraense que havia experimentado um tempo fora, pois desde anos 1970 havia se radicado no Rio de Janeiro, o cantor Nilson Chaves. Na época, suas canções eram tomadas como a mais perfeita tradução do que era a Música Popular Paraense. Também, naquela transição de década, alguns artistas da cena de canção popular se valeram da rotulação MPP para fazer frente a outras cenas locais de música massiva, como o brega. Era a época de invasão da Axé Music — que incitou a formação das bandas locais na cidade que faziam essa música e cujos músicos, sintomaticamente, haviam sido atuantes na cena de canção popular oitentista —, do pagode e do sertanejo. Então, era preciso um duplo processo de diferenciação como demarcação das fronteiras de gênero.
A música paraense não era brasileira, pois abordava temas da região, haja vista que o circuito nacional não lhe deu espaço, embora, como construção cancional, seguia a linhagem da MPB — além de uma certa sofisticação harmônica, melodia trabalhada e letra poetizada. Por outro lado, era preciso traçar uma distinção interna: a dita MPP necessariamente tematizava as questões regionais em exaltação, o que lhe diferenciava objetivamente em termos de gosto e espaços de consumo — daí ser possível, por exemplo, falar em uma territorialização sonora da cidade na época se atentarmos à MPP ocupando espaço da centralidade e festivais universitários, e o brega as festas da periferia — das cenas de “música comercial e fácil” da cidade, como acusavam alguns artistas da cena de canção.
Sendo assim, os atores da cena local passaram a utilizar o regionalismo de outra maneira, haja visto que o processo de globalização requeria que isso fosse lido deste jeito: não se tratava de abandonar o nacional, mas de colocá-lo à margem para ter em mira o universal. O meio para a consecução foi o uso emblemático da “marca” Amazônia como mote — embora seja patente que um regionalismo estético seja recurso que funciona apenas nos quadros do Estado nacional, e por isso, o problema com o nacional se manteve. E ficou claro que a indústria e o circuito nacional ainda tinham interesse, e controle, nas formas de produção e possibilidades de uso no mercado brasileiro da música paraense. Ou seja, o grupo sonoro nacional não pôde prescindir da cultura musical da Amazônia.
Mesmo tomando como ponto inicial para a metamorfose da música paraense um evento realizado nos anos 2000, o embrião do processo encontra-se na década de 1990. Na época, certamente influenciado por um dos mais importantes meios de globalização da música popular, o canal de televisão MTV, que veiculava a música mundial — obviamente, com maior espaço para a estadunidense — de vários lugares como se estivessem se manifestando como cultura musical de lugares precisos, ocorreu em Belém a retomada de um estilo musical até então marginal, que rememora aos anos 1970 e à periferia da cidade, na esteira da cena de rock da cidade. Foi a emergência da guitarrada, um estilo musical instrumental dançante que se deu a partir das ações de um músico da banda de rock Cravo Carbono, o guitarrista Pio Lobato. Porém, as influências da guitarrada e de outros estilos tradicionais já apareciam nas músicas da banda e se somavam às influências do rock antes dessa investida mais pontual.
Assim, por iniciativa de Pio Lobato surgiu o projeto Mestres da Guitarrada, reunião do Mestre Vieira, Aldo Sena e Mestre Curica. Não é o objetivo tratar dessa questão, mas sim de um desdobramento crucial para o mundo da canção e para a metamorfose da atual Música Popular Paraense, que foi a extensão da busca pela retomada do sotaque local no fluxo de informações musicais em curso no mundo.
Assim, no mundo da Música Popular Paraense, via aparato de Estado e atuações de mediadores culturais “visionários”, como os próprios se definiram, nos anos 2000, teve início um processo de constituição de uma nova “nova” música paraense para o circuito nacional, o que resultou no mais ambicioso e robusto projeto para tornar a música de regional a nacional e global, o chamado Terruá Pará — e aí já se manifesta um sinal da influência da globalização em sua constituição — a partir do “aparaenseamento” de um vocábulo originário da língua francesa, terroir, que se refere a tudo que é característico e típico de uma determinada região. O discurso de sua sustentação se baseava na ideia de “defender nossa cultura da invasão estrangeira”, mas acabou instigando justamente o contrário.
Para dar vazão à demanda reprimida da produção local e de artistas da região, e ao mesmo tempo atenuar no campo musical o histórico tensionamento identitário entre o Estado nacional e a Amazônia, o Terruá foi idealizado, projetado e realizado com o objetivo de reunir “todas as manifestações musicais do estado” para propagação e divulgação nacional. Visava-se, assim, legitimar a reinvenção da cultura musical paraense nos quadros da globalização, ativando seu potencial de hibridização por meio da retomada da tradição em reinvenção.
Foram realizadas três edições do evento, em 2006, 2011 e 2012, sendo que esta última foi uma espécie de culminância das duas anteriores. E sobre ela que me refiro a partir de agora especificamente. Com o Terruá, teve início o processo de metamorfose da música paraense. Foi ali que o regionalismo na Música Popular Paraense passou a ser usado de outra maneira: de regionalista passou, paradoxalmente, a ser um regional-global para tentar espaço no nacional. Isso significa que foi nesse momento que a canção paraense começou a despir-se de seu “engajamento” regionalista de crítica e negação do nacional, adotam uma estética formada por distintas e variadas possibilidades que tinham o potencial de serem usadas de forma instrumental para — mais uma tentativa — se tornar nacional.
Capitaneado pelo estado, por meio de sua Secretaria de Cultura e Comunicação, o evento foi um meio de convencionalização da cultura musical loca. Ou seja, de propor meios para a sustentação de uma diferenciação, visando controle e orientação supostamente compartilhados. Para dar mais sentido global à proposta de ir às raízes da cultura musical paraense, foi contratado o produtor musical de fora da região, o gaúcho Carlos Eduardo Miranda. Coube a ele tornar realidade a “nova” música paraense, aquela que deveria ser lançada no mercado nacional. Foi a partir de então que se instaurou a transformação que levará a um dos elementos da metamorfose da música paraense: a diluição das barreiras entre gêneros musicais locais, demarcações que foram durante muito tempo bastante caras à cultura musical local, desde os anos 70 até o início de 2000. Com o Terruá Pará e sua proposta universalizante de acionar tudo e todos para a consolidação da “nova” música paraense, ela se tornou um produto cultural poliestilístico, pois passou a utilizar em combinação e justaposição os vários estilos musicais regionais.
O Terruá Pará foi o promotor de articulações e combinações musicais que ditaram uma nova leitura sobre o que havia se tornado o patrimônio cultural musical para os atores sociais e para o grupo sonoro do mundo da canção paraense. Nesse sentido, foi um ponto de virada na trajetória da Música Popular Paraense, porque promoveu um amplo debate no meio musical local acerca 1) do ethos da MPP no atual estágio da globalização da cultura; 2) da legitimação da dominação do Estado em sua ingerência indireta nas esfera da criação e divulgação da produção musical; 3) da manutenção e questionamento das hierarquias consagradas no mundo da canção; 4) da força da tradição em mais uma reinvenção na cultura local.
É argumento comum àqueles contemporâneos ao evento que sua finalidade era “peneirar” e pegar os mais destacados artistas locais e lhes fornecer meios para alavancar suas carreiras no circuito nacional. Nesse processo, acabou por instaurar outra característica da metamorfose, pois ao misturar os artistas mais novos — e dar lhes premência, haja vista o interesse na inovação que estes potencialmente carregavam — aos mais antigos acabou por diluir aquela demarcação geracional, ou talvez tenha provocado uma inversão mesmo, haja vista que os mais novos passaram a ser a referência para os mais antigos.
Assim, as várias gerações, vertentes e classes sociais da música paraense se misturaram e puderam mostrar sua principal característica: a pretensa tradição na diversidade. Aliás, é a época em que o “nova” começa a aparecer de forma mais midiática, compondo um nome, Nova Música Paraense. À época, o secretário de comunicação do Estado, para o jornalista Ney Messias, o evento teria como finalidade “arrumar a casa”, no sentido de fazer a convergência das mais díspares manifestações musicais que se encontravam na base do processo musical paraense, reinventando a moderna tradição da MPP como um artefato para o mercado brasileiro. Foi portanto, uma investida institucional, o que remete a que se pense que, o Estado “conduz” a globalização cultural na medida em que seleciona, projeta e modifica as práticas culturais a fim de torná-las globais (CANCLINI, 2007).
Mas esse processo de reinvenção de uma cultura musical local para o mercado fonográfico brasileiro na contemporaneidade global acabou por desencadear os elementos de sua metamorfose quando, a partir das variações e inovações que os artistas fizeram nas formas musicais originais, com o intuito de fabricar um produto que pudesse aparecer no mercado da MPB sem ser alocado na “caixinha do regional”, para usar uma expressão da cantora Lia Sophia; ou ser efetivamente uma MPB, mas não como “Música Parcialmente Brasileira”, na formulação do cantor e guitarrista Felipe Cordeiro. Em tempo, esses artistas saíram do Terruá e certamente por terem passado a compor, mesmo como semi-assimilados, o mainstream da música nacional lhes permitiu questionar a permanência do colonialismo cultural interno que o Sudeste impôs ao resto do país.
Entretanto, de certa forma, isso era uma consequência do que eles, como componentes da cena paraense translocal — a formação de artistas paraenses atuando na centralidade cultural do país — incitaram ao se estabelecerem no cenário nacional, haja vista que em seus primeiros momentos na centralidade tiveram que atrelar suas carreiras à estilos musicais regionais paraenses — para citarmos os mais destacados: Lia Sophia e Dona Onete com o carimbó, Luê Soares com um carimbó mais estilizado, Gaby Amarantos com o tecnobrega, Felipe Cordeiro e Manoel Cordeiro com a guitarrada.
Apontadas essas dissensões de âmbito mercadológico, cabe atinar ao nível simbólico dessa contenda, haja vista que o mundo da canção popular paraense contemporâneo é também uma significação, e não apenas “espaço” delimitado, circunscrito, ou um contexto definitivo. Por isso, o entendimento das visões de artistas que vivenciam suas experiências na cena translocal possibilita que possamos ver as suas próprias impressões sobre as condições de existência em outra situação social, na qual o espaço para a música “saída da Amazônia” é fruto de negociações complexas.
Portanto, é permitido afirmar que pós-Terruá Pará, a MPP contemporânea se tornou outra coisa, algo diferente de sua tradição que, como pontuei, foi inventada e reinventada constantemente, simbolizada e ressimbolizada como bem cultural, de acordo com os diferentes contextos. Ela agora se encontra em um processo de transformação profundo, em sua transfiguração, devido aos fluxos e hibridizações que incitam à metamorfose, o que certamente já tem consigo potencialmente elementos de outras reinvenções.
Daí porque não é possível mais falar em música regional de forma estrita, ou mesmo em música brasileira feita no Pará ou na Amazônia. Ela agora é do mundo — porque pega os elementos externos e digere — e para o mundo —, pois há um importante fluxo de artistas, de produções e de trocas musicais. Também há a facilidade de produção — nos últimos anos pulularam gravações particulares no estilo “faça você mesmo” em home studios e estúdios profissionais que reinventam a música paraense a todo instante —, cuja característica é a da mistura, devido à facilidade de acesso à tecnologia de aparelhos de gravação e a ampla utilização de programas de mixagem. E, por fim, a divulgação na internet, o que prescinde de lugares físicos e do próprio suporte, como um CD, por exemplo, para a música existir.
A metamorfose da Música Popular Paraense
Durante uma entrevista com um músico para minha pesquisa de doutorado, ele pronunciou a frase que me deu o mote para desenvolver a ideia de que está em curso a metamorfose da música paraense. “O que se entendia como Música Popular Paraense não existe mais. Por que? Agora, tudo é MPP, ela é de fora e dentro, para fora e para dentro, e não aquele tipo que alguns chamavam — o que eu não concordava — de MPP, estilo uma canção, com a poesia, letra trabalhada, harmonia pensada que alguns poucos de fazíamos lá nos anos 80. É uma confusão. Dizem aí a mídia, o [programa televisivo] Sons do Pará, a [Rádio] Cultura, tudo é música paraense: a canção, o brega, o carimbó; e acaba sendo nada”. O questionamento que ele levanta é interessante. Mas de que maneira isso dá pano para tecer essa ideia de que a música paraense está em um processo de metamorfose? Primeiro, vejamos do que se trata a noção de metamorfose aqui utilizada.
O momento histórico atual é caracterizado pelo que é convencionalmente chamado de globalização, uma época em que as fronteiras entre Estados nacionais teriam perdido o significado, e o mundo se encontra em processo que o está tornando um só. Isso se materializa no encurtamento das distâncias, o que é proporcionado pelo atual estágio do desenvolvimento das tecnologias de meios de comunicação. Dessa forma, devido ao estreitamento do contato entre os lugares, diferentes culturas se aproximam, interagem, combinam-se e circulam em áreas mais dilatadas, tornando-se conhecidas e reconhecidas. Portanto, a globalização é um aspecto do mundo contemporâneo como processo cultural no qual integração e diversificação se dão no mesmo tempo, o que gera controvérsias, promove bloqueios, trocas e descortinamentos.
Segundo o sociólogo Ulrich Beck, a metamorfose é uma possibilidade de leitura desse mundo de incertezas. Trata-se de entender que o mundo atual não é mais medido pela régua dos Estados nacionais, mas sim que as nações giram em torno do mundo. Portanto, estamos sujeitos às mudanças independentemente de nossa vontade, porque há um fluxo constante e difuso de dados e elementos de vários formatos. O lado bom disso é que surgem os espaços de ação cosmopolizados, que são os espaços de ação concernentes aos próprios atores, de maneira que não estão enquadrados naquela tradicional perspectiva de escopo nacional. Dessa forma, as oportunidades de emissão e recepção, sincretismos e hibridizações, encontram-se abertas o que, contudo, tem como consequência o surgimento de um novo tipo de formação identitária, que é em seu cerne por regra desestabilizada, devido a um elemento fundamental dos processos globalizadores: a comunicação digital em tempo real e onipresente que impõe ao indivíduo novas formas se ver e de se situar no mundo.
O mundo da canção popular paraense contemporâneo não ficou incólume a isso. A hipótese de que foi a partir do Terruá Pará que teve início o processo de metamorfose da MPP tem sentido quando pensamos que ali foi legitimada sua liberalização de um sentido de tradição e seu enquadramento em outra tradição, a diversidade na unidade. A consequência foi que o mundo artístico abraçou essa situação e deu seguimento às mudanças que transfiguraram. Interessante é que nesse caso, temos um exemplo de como a cultura seguiu o poder político.
Por outro lado, ao nos atentarmos para o fato de que a cultura é dinâmica, as reinvenções e ressimbolizações que levaram a essa metamorfose da música paraense atendem a uma demanda do contexto de mudanças radicais, no qual que o pressuposto básico de uma unidade cultural que a sustentava, uma “intenção” de identidade, agora se encontra deslocado. Ou seja, por mais que tenha sido o objetivo das ações pós-Terruá “organizar a casa”, o modo de operação por convencionalização que reinventou a MPP não foi acatado sem conflitos ou variações. Na verdade, se busca reconhecer o que é essa música local contemporânea em um cenário onde o novo e o antigo perderam suas credenciais como referência, ou pelo menos são tomados de outra forma.
Aquele dado estável funcional que ditava com relativa consistência àquela intenção de identidade musical local agora é reconhecidamente uma identificação, dotado de volatilidade. De certo modo, atualmente só é possível falar em Música Popular Paraense como um discurso em um contexto relacional global. Já não há mais formas, que supostamente se diziam mais seguras em contextos anteriores, de definir “o que é?” da MPP: brega era brega, carimbó era carimbó, e assim por diante. Devido à profusão de gêneros e subgêneros locais — brega, tecnobrega, brega marcante, brega-carimbó, carimbó chamegado, um carimbó abolerado, um carimbó nativo, para citar alguns exemplos — e às hibridizações, formais ou não, que resultaram de misturas entre estilos regionais e estrangeiros — samba amazônico, choro amazônico, jazz amazônico — ficou quase impossível dizer onde está a fronteira definidora entre gêneros no mundo da canção popular paraense.
Ademais, outras classificações foram relativizadas — e isso é muito bom do ponto de vista social, pois nota-se que um gênero antes marginalizado agora é Música Popular Paraense —, como é o caso de algumas canções da cena de brega que viraram cult e hoje são executadas em shows de teatro ou guitarradas sendo executadas pela Amazônia Jazz Band. Ou ainda alguns casos como o da canção-bolero Foi Assim, ponto de rotação na MPP, certamente o sucesso mais marcante da cantora Fafá de Belém, que atualmente é executado em sua versão instrumental de choro e jazz, cantado por jovens cantoras da cena em pegada mais pop, e como tecnobrega. Eis demonstrações de sua metamorfose: todas são aceitas, permitidas, incentivadas.
Esse reduzido panorama é uma pequena demonstração do estágio onde se encontra o processo de metamorfose da Música Popular Paraense. E por que isso não é uma simples mudança no processo musical local? Como procurei mostrar, o contexto atual, global, dita alguns elementos que compõem o cenário local. E este, por sua vez, se vê diante de possibilidades de ir para o mundo. O regional, algo definidor até há algum tempo que era a MPP, se tornou outra coisa, de maneira que o “regionalismo musical” passou a um “regionalismo global musical”. A música paraense está em transfiguração, procurando se situar em uma “onda” de busca pela singularidade que a defina — e aí temos resquícios de um preciosismo caro à moderna tradição, que é a legitimação de uma definição — em um contexto de distúrbios identitários provocados pela globalização.
Referências
Nélio Ribeiro Moreira é bacharel e licenciado em História pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestre e doutor em Sociologia e Antropologia, também é professor da Rede Pública Estadual de Ensino.
Edição: Alice Palmeira
Revisão: Isabella Galante
Arte: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón