Mineração criminosa, militarização e desafios indígenas na crise do Equador

Mineração no Equador
Mina no Equador. Foto: Marcos Colón.
Mineração no Equador

Mina no Equador. Foto: Marcos Colón.

Não foi com surpresa, mas sim com pesar, que testemunhei a sucessão de notícias sobre violência nas cidades equatorianas. Eu tinha retornado do país há apenas três semanas, depois de começar a filmar meu próximo documentário. No presente momento, no âmbito global, o Equador é visto como uma nação à beira de um abismo social, com consequências que se estendem por todo o país, afetando especialmente os setores mais vulneráveis ​​do campo e da cidade. Por exemplo, as comunidades indígenas, negras e montubias, as comunidades pesqueiras e aquelas que tiram seu sustento dos ecossistemas manguezais e os camponeses das montanhas e do litoral, sendo esses historicamente empobrecidos e discriminados.

A complexa realidade que o Equador enfrenta atualmente, um suposto estado de “conflito armado interno”, declarado oficialmente pelo governo para justificar uma guerra interna contra 22 organizações criminosas, é a expressão da longa e dolorosa fratura dos tecidos sociais, do colapso do Estado atolado na corrupção e no modelo de desenvolvimento escolhido. Ou seja, sustentado em atividades extrativistas, aplicado ao longo de mais de 50 anos e nos últimos 20 com muito mais veemência por quatro governos, que conseguiram corromper a sua institucionalidade, a qual foi sequestrada por interesses de grupos específicos.

A recente implosão do país e a intervenção das forças armadas para impedir a escalada de violência procura, do ponto de vista bélico, impedir o aumento da violência criminosa que se expandiu por todas as regiões do país. Essa resposta militar, com as suas complicações sociais e relacionadas ao estado de direito, pode conter o crime organizado, removendo os criminosos e suas gangues da rua. Isso, por sua vez, pode gerar uma sensação de alívio para a população e uma boa imagem para o governo. No entanto, não resolverá o problema mais profundo da criminalidade, uma vez que as organizações criminosas e as suas raízes estão entrincheiradas no Estado, e nos seus mais altos funcionários, na Justiça e na Força Pública, na Assembleia Nacional e nos partidos políticos, verdadeiras “máfias” que apoiam o crime em termos de conduta e ética. Estão enraizadas na economia que delas se alimenta e na corrupção que elas geram.

Nessa linha, o Equador teve, nas últimas duas décadas, três ex-presidentes processados ​​por corrupção, e mais de uma dúzia de altos funcionários, vice-presidentes, ministros, controladores, promotores, generais, juízes, diretores e burocratas, alguns fugitivos, processados e condenados por corrupção.

A dolarização da economia, embora tenha trazido estabilidade econômica, também criou condições favoráveis ​​ao tráfico, à lavagem de dinheiro e ao comércio de drogas, que transformaram o Equador num território propício ao tráfico de drogas e, portanto, vulnerável. A infiltração do narcotráfico no Estado equatoriano fica evidenciada, por exemplo, no notório “caso metástase”, uma investigação realizada pela Procuradoria-Geral da República. Isso resultou na prisão de altos funcionários como o presidente do Conselho Judiciário, a mais alta autoridade administrativa do setor jurídico do país, que supostamente usou sua posição para favorecer membros de grupos de narcotraficantes.

Face ao aprofundamento da crise prisional e do conflito em si, a categorização dos grupos do crime organizado como terroristas, a militarização do país e a política de guerra tem sido a principal proposta do governo. Essa vem sendo questionada por organizações e especialistas alertando que isso não apenas fortalecerá os narcotraficantes, além de aumentar os conflitos e a violência em áreas já afetadas por esse problema, especialmente em províncias como Esmeraldas e Guayas.

No que diz respeito às drogas, o Equador passou, há 25 anos, de ser apenas um país de trânsito para um de lavagem de dinheiro e, posteriormente, de lavagem, comércio e exportação. Nos últimos anos, o país tem sido o principal exportador de drogas para a Europa, e os ganhos do setor são lavados no sistema financeiro, na construção e na principal aposta econômica dos últimos governos: a mineração.

O outro lado da moeda, a mineração ilegal realizada por grupos também dedicados ao tráfico de drogas, tem se infiltrado nas comunidades indígenas e camponesas, e se tornado um foco de conflitos que chegou até a região amazônica e o sul das montanhas, embora o litoral continue a ser o epicentro das disputas territoriais. Mais uma vez, a militarização proposta pelo governo para enfrentar esse problema, longe de resolvê-lo, aprofundará ainda mais as lacunas sociais, afetando principalmente os mais vulneráveis.

As atividades de mineração ilegal no Equador, financiadas por grupos criminosos como Los Choneros e Los Lobos, estão aumentando e representam uma séria ameaça à segurança e aos ecossistemas sensíveis do país. Essa prática tem se tornado uma das principais fontes de financiamento das organizações criminosas, facilitando a aquisição de armas de qualidade em grandes quantidades. A militarização dos territórios afetados será ainda mais intensificada em situações de conflito, como indica a atual situação de guerra interna imposta pelo governo equatoriano.

No Brasil, facções criminosas do Rio de Janeiro e de São Paulo têm se infiltrado na Amazônia brasileira, cooptando comunidades ribeirinhas e povos indígenas. O narcotráfico busca controlar rotas e trilhas para o transporte de drogas, afetando as comunidades locais.

Na fronteira com o Peru, o povo Ashaninka enfrenta ameaças persistentes. Além dos antigos problemas com os madeireiros peruanos, o narcotráfico persiste e se intensifica, utilizando as comunidades como pontos de “reabastecimento”. A ausência do Estado torna as populações vulneráveis. Os líderes indígenas têm que resistir às ameaças que têm evoluído para táticas cada vez mais intimidadoras.

Nas cidades da região amazônica, a violência urbana se expande para as comunidades, com um aumento da criminalidade, enquanto o narcotráfico se infiltra em diversas atividades para a lavagem de dinheiro ilícito.

A expansão das chamadas atividades ilícitas vai sempre precisar de uma cobertura que as sustente e que garanta a sua continuidade como atividade econômica. Portanto, o Estado e seus órgãos, a política e os seus enquadramentos legais e instituições de controle são uma necessidade. Por esse motivo, dentro do espaço político, certos partidos têm sido cooptados pela máfia, ou têm se tornado guarda-chuvas para que o crime organizado possa operar politicamente. O assassinato há cinco meses de um candidato à presidência faz parte dessa busca pelo controle do Estado, uma forma de alertar que o governo deve trabalhar com eles e não contra eles.

Enquanto isso acontece, o governo equatoriano tem promovido uma consulta popular, aparentemente destinada, entre outras razões, a recuperar o controle dos territórios onde a mineração ilegal está presente. Porém, isso levanta uma série de questões sobre a real compreensão do conflito da mineração criminosa, e a eficácia e clareza da estratégia governamental para resolver o problema. Longe de atender as reivindicações legítimas das populações locais afetadas por essa atividade, procura favorecer os setores empresariais relacionados a mineração.

A falta de coerência na ação governamental aumenta a incerteza sobre o futuro do Equador, especialmente em relação à gestão da violência e aos seus impactos nas comunidades indígenas e camponesas.

Nesse contexto, a Confederação das Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (Confeniae) e organizações ambientais e de direitos humanos têm se manifestado em defesa dos direitos territoriais e culturais. Representando 11 nacionalidades e 23 povos, a Confeniae tem historicamente liderado a luta pela defesa dos territórios e pelos direitos dos povos indígenas. A sua recente declaração, divulgada em 5 de janeiro por meio do Facebook, rejeita veementemente o “Plano Fênix” proposto pelo presidente Daniel Noboa, sendo que esse plano é sua estratégia máxima para enfrentar a situação de insegurança que o país vivencia.

O “Plano Fênix” visa estabelecer uma mega prisão de segurança máxima na província amazônica de Pastaza, o que tem gerado preocupação e oposição por parte da Confeniae. A declaração destaca a violação dos direitos à consulta prévia, livre e informada e ao consentimento das nacionalidades que habitam os territórios de Pastaza. Além disso, critica a exploração histórica da Amazônia equatoriana por vários governos, que têm extraído recursos naturais sob a falsa promessa de progresso, causando profundos danos ambientais e à saúde.

A Confeniae enfatiza que os territórios indígenas não devem se tornar “zonas de sacrifício” em meio à crise de insegurança do país. A construção de mais prisões, como é proposto no “Plano Fénix”, não aborda as causas estruturais das injustiças e desigualdades sociais.

A falta de transparência nas declarações do Presidente Noboa sobre o projeto prisional gera dúvidas e preocupações adicionais. As comunidades indígenas não podem ser relegadas a segundo plano na forma como o governo aborda esses desafios. Considerando que são essas comunidades que estão na linha de frente, as mesmas devem ocupar um lugar na mesa na tentativa de identificar soluções.

Impactos nas comunidades indígenas e camponesas

O risco associado à mineração ilegal e à militarização como principal resposta é especialmente preocupante para as comunidades indígenas, principalmente os territórios da nação Shuar, e as comunidades camponesas do sul do Equador. A militarização não só ameaça os direitos coletivos, como a autodeterminação e o autogoverno, mas também gera preocupações ambientais.

Os planos do governo poderão transformar os territórios das comunidades indígenas onde a mineração ilegal está presente em pontos-chave de conflito, confronto e luta entre as Forças Armadas e grupos criminosos. Esse provável cenário não implicaria apenas riscos sociais para essas comunidades, bem como teria graves consequências ecológicas, considerando que esses territórios abrigam uma grande biodiversidade e ecossistemas sensíveis.

A consulta popular tem recebido críticas bem fundamentadas e tem gerado sérias preocupações sobre a capacidade do governo de lidar com a complexidade da atual situação. Os objetivos do governo de recuperar o controle em termos de segurança nos diferentes territórios podem se chocar com a realidade, especialmente se a consulta não resultar em ações verdadeiramente eficazes.

A falta de clareza na estratégia governamental e a tendência em direção a uma política de confronto e militarização geram incertezas e fortes preocupações sobre o futuro do Equador.

Riscos de uma política de guerra contra o narcotráfico

A atual política governamental, direcionada para uma guerra contra o narcotráfico, implica riscos significativos. Experiências passadas em países como o México e a Colômbia demonstram que essa estratégia não erradica o narcotráfico e, em vez disso, fortalece os grupos criminosos e as suas economias criminosas. A possível falta de capacidade do governo para enfrentar de forma eficaz a situação e a insistência nessa política ameaçam mergulhar o país num cenário doloroso e fora de controle.

Por outro lado, a intenção do governo é replicar tanto quanto possível o suposto sucesso do “modelo Bukele” como panaceia para a situação do país, enquanto especialistas alertam que isso não é recomendado nem possível. Medidas como a construção de mega prisões não resolvem o problema de forma estrutural e podem até piorar a situação.

Uma das últimas decisões do governo foi enviar à Assembleia Nacional do Equador um projeto de lei de urgência econômica que visa aumentar o IVA do país de 12% para 15%. Essa medida pretende aumentar a arrecadação para poder financiar sua política de guerra. A decisão está nas mãos do Legislativo do país, que nos dias anteriores manifestou seu apoio ao presidente na sua luta contra o narcotráfico. Tal suporte é posto à prova com essa medida que tem sido altamente questionada e rejeitada por setores sociais, como a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), e que tem sido descrita como uma medida impopular.

O governo decidiu transferir o custo de suas políticas bélicas para a população, afetando mais uma vez os mais empobrecidos. Porém, algumas semanas atrás decidiu perdoar, por meio de outra lei de sua iniciativa, grandes devedores do Tesouro Nacional. Isso inclui empresas pertencentes à família do atual presidente, uma das mais ricas do país e da região.

Chamado à reflexão e à ação

Em meio a tais desafios, é crucial refletir sobre o impacto nas minorias, especialmente nas comunidades indígenas e camponesas. A elite equatoriana e outros setores privilegiados podem manter seu status e melhores condições de segurança, mas a agenda militarizante do governo afetará diretamente as comunidades mais vulneráveis.

Como evoluirá essa situação e que medidas serão tomadas para proteger as populações em condições mais precárias do Equador? A resposta a essa pergunta é vital para o futuro do Equador.

O caminho que o Equador optar por seguir terá consequências significativas para seu futuro e para a proteção dos seus cidadãos. A militarização, a mineração criminosa e a política de confronto representam riscos consideráveis, mas a resistência social, a solidariedade e a adoção de abordagens inteligentes e pluralistas podem ser aspectos chaves para a construção de um futuro mais justo e seguro para todas as comunidades do país.

Por sua vez, em resposta a essa ameaça, a Confeniae convocou uma marcha pacífica contra a construção da prisão de segurança máxima em Pastaza, convidando todos os setores sociais a unirem-se em nome do “bem viver”. Esse chamado à resistência pacífica destaca a importância da solidariedade entre os vários setores da sociedade para enfrentar os desafios atuais.

A intersecção entre a mineração criminosa, a militarização e a resistência indígena apresenta um panorama complexo e crítico para o Equador. O governo enfrenta a tarefa de abordar esses problemas de forma abrangente, levando em consideração as vozes e preocupações das comunidades indígenas e de outros setores afetados.

Mudar o rumo do país exige não só enfrentar a ameaça do narcotráfico, bem como transformar um Estado afetado pela corrupção. A falta de uma visão para o país e a priorização dos interesses de grupos específicos em detrimento do bem comum são fatores que contribuíram para a crise atual. O Equador não enfrenta apenas uma crise interna, mas também uma batalha pela integridade institucional e pela construção de uma visão do país a partir da realidade de ser um Estado plurinacional.

Como mencionou um amigo e diretor de cinema equatoriano há algumas semanas: no Equador, o cinema de ficção não foi tão incorporado quanto o cinema documentário. A realidade que o país vive no presente momento está longe de ser ficção; sendo que essa realidade é sim o cinema vérité mais autêntico da América Latina.

 

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Dr. Marcos Colón é professor do Programa de Assuntos Internacionais da Florida State University. Escreveu, produziu e dirigiu “Beyond Fordlândia: An Environmental Account of Henry Ford’s Adventure in the Amazon” (2018) e “Stepping Softly on the Earth” (2022). Seu próximo livro, “The Amazon in Times of War”, está previsto para ser lançado no verão de 2024.

 

Produção: Marcos Colón
Tradução: Eduardo Rodrigues
Revisão: Isabella Galante
Montagem do site: Fabrício Vinhas
Direção: Marcos Colón

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