Entre a Amazônia e o agro, escolhemos a soja

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Os incêndios na floresta são parte de uma estratégia econômica planificada; objetivo é a indústria da carne até na Itália

Chamam-no Rio-Mar, tão grande quanto um oceano. Sinuoso como uma serpente que desliza entre florestas e antigas culturas. A floresta Amazônica, que ocupa grande parte do Brasil e se estende também por Colômbia, Peru, Venezuela, Equador, Bolívia, Guiana, Guiana Francesa e Suriname é, antes de tudo, água.

Uma rede de rios, porta de entrada dos colonizadores quinhentos anos atrás. Hoje é via de saída de produtos que, lentamente, a destroem. Madeira, carne e soja. Um ciclo produtivo que devora a maior reserva de vegetação primária do mundo, uma cadeia produtiva que se inicia logo depois das chamas. Bens, agora globais, convertidos em commodities em Boston, Londres, Hong Kong e Milão.

“Ontem, viajando de avião entre Manaus e Rio de Janeiro me assustei. Durante uma hora, por cerca de 900 quilômetros, eu via somente fumaça”, relatou ao Espresso Marcus Barros, ex-reitor da Universidade do Amazonas e ex-Presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), nomeado em 2003 por Marina Silva, na época ministra do Meio Ambiente do governo Lula. “É o sinal mais evidente do que está acontecendo”, acrescenta, “com o velho ciclo da ocupação da floresta que avança: incêndio, roubo de madeira, pecuária e, no final, a monocultura, a soja”.

“É preciso seguir o dinheiro, o valor dos produtos que exploram a floresta”, explicou o sociólogo italiano Maurizio Fraboni, que por mais de duas décadas se ocupa da defesa de um dos principais cultivos indígenas, o guaraná dos Sateré-Mawé.

A Amazônia funciona em ciclos econômicos predatórios. Entre 1800 e 1900, foi o período da borracha, extraída das árvores nativas do norte do Brasil fornecendo matéria-prima à então nascente indústria automobilística.

Veio depois o ciclo da invasão, na década de 70, com o projeto “integrar para não entregar” da ditadura militar. A floresta começou a ser cortada por estradas que deveriam levar à última fronteira os agricultores de áreas empobrecidas de Nordeste, Sul e Sudeste — uma tentativa de esvaziar os conflitos no campo dessa regiões.

Ao longo de estradas como a Transamazônica abriram-se as primeiras fendas, com uma faixa de terra de até 10 quilômetros nas laterais, destinadas ao desmatamento e à colonização. Terra, a promessa dos militares para assentar aqueles que fugiam da pobreza de outras regiões do Brasil.

Foi mais um fracasso devastador, entre mortes, terras roubadas e utilizadas somente para a extração de madeira de lei e a explosão das periferias das capitais dos estados amazônicos.

As décadas de 90 e 2000 assistiram a um terceiro ciclo de predação. Funciona assim: derrubam a floresta, com o corte de árvores seculares de mogno; depois vêm as queimadas, que deixam a terra pobre e exposta às chuvas torrenciais. Chega o gado, especialmente a raça Nelore, que nas mesas italianas chega na forma de bresaola.

Enfim, o cultivo da soja — ração para os animais. Não um cultivo qualquer, mas um sistema industrial baseado no uso intensivo de uréia, fertilizantes e herbicidas. Plantações que levaram o Brasil ao segundo lugar na classificação mundial de produtores de proteínas vegetais.

Um reservatório muito pouco green destinado à indústria mundial de sistemas intensivos de confinamento animal: da China à planície Padana, no vale do Pó, Itália, para engordar animais destinados ao abate.

Tipo exportação

O Brasil é o principal fornecedor de soja da Itália, cerca de 40% do total. Entre janeiro e julho de 2019, segundo estatísticas oficiais, nós importamos mais de 130 milhões de dólares de produtos não trabalhados (entre grãos e farinhas) do país sul americano.

Pouco menos da metade partiu de portos do rio Amazonas (Manaus, Itacoatiara, Santarém, Belém). No papel, aquela soja é certificada como “não proveniente de áreas desmatadas”. De fato, em 2006, o governo brasileiro criou o Grupo de Trabalho da Soja, com a participação de associações de produtores e de algumas ONGs, entre elas o Greenpeace.

Foi decidida uma data limite, 2008: as terras desmatadas depois desse ano não poderiam ser utilizadas para o cultivo de soja. Existem, porém, alguns pontos frágeis. O sistema leva em consideração somente 85 municípios, aqueles com pelo menos 5.000 hectares destinados à produção, e é excluído o estado do Amazonas, território com maior presença de floresta.

Segundo o último boletim da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), no entanto, a área destinada à produção de soja naquela região aumentou 47% no último ano (2018-2019). Por enquanto, é pouca a terra usada naquele estado para o cultivo industrial, mas a tendência estatística confirma a pressão sobre a floresta.

A expansão aumenta também nos outros estados amazônicos: do Acre, mais de 200%, até o Pará, mais de 2,4%, onde a produção de soja já alcançou níveis preocupantes, com 562 mil hectares.

Por trás dos números existe uma estratégia bem definida. Há anos o Brasil aposta na criação de uma logística da soja — e de outros produtos agrícolas, como o milho e o algodão — no coração da floresta. Dois rios, afluentes do rio Amazonas, o Madeira e o Tapajós, já foram transformados em hidrovias.

Centenas de balsas em fila transportam milhões de toneladas de soja provenientes do sul da floresta — Mato Grosso e Rondônia — até os portos do rio que deságua no Oceano Atlântico. Há mais de um ano está sendo discutido um projeto que ampliará ainda mais a via amazônica da soja. Os produtores estão prestes a construir uma ferrovia de mil quilômetros de comprimento que unirá a cidade de Sinop, em Mato Grosso, com o porto de Miritituba, em plena floresta, no rio Tapajós.

Os trens de carga atravessarão áreas indígenas, floresta primária e parte de parques naturais. Corredores logísticos que empurrarão para o Norte também a produção agrícola, pronta para entrar nas áreas desmatadas, que hoje são utilizadas para a pecuária.

Os gigantescos compradores — traders — construíram terminais igualmente colossais no Rio Amazonas, portos que já enviam produtos ao exterior. Em Itacoatiara, perto de Manaus, onde o rio Madeira desemboca no rio Amazonas, está a Hermasa, de propriedade da família Maggi, um dos principais produtores e distribuidores de soja.

Daquele polo partem as cargas em direção à Itália, sobretudo ao porto de Ravenna, onde as fábricas de ração da Emilia Romagna compram a soja — quase sempre OGM — destinada à alimentação de animais.

O grupo Maggi não quis responder ao Espresso sobre o nome dos compradores: “O destino final da carga só é conhecido pelo vendedor após o embarque”, garantiram, confirmando que aqueles cargas provêm da cadeia de produção deles. Mas os registros portuários são claros.

Sob suspeita

O grupo Maggi — como outros traders — faz parte, desde 2006, do Grupo de Trabalho da Soja. Um pacto que deveria garantir a sustentabilidade do produto. As notícias, porém, colocam em dúvida este sistema.

No dia 1º de abril de 2014, os agentes da Polícia Federal e do Ibama entraram em um acampamento na área indígena Menkragnoti, não muito distante da área que será atravessada pela futura ferrovia da soja. Encontraram 26 motoserras e 11 acampamentos com trabalhadores em estado de escravidão.

Prenderam 40 pessoas que desmatavam uma área de 13 mil hectares de floresta no coração da reserva indígena. Os trabalhadores escravos dormiam em cabanas improvisadas, sem nenhuma higiene, somente uma lona de plástico servia de cobertura. O chefe daquela organização é um nome bastante conhecido, Antonio José Vilela Filho.

O Ibama já o havia denunciado pelo desmatamento de 30 mil hectares e multado em 200 milhões de reais (43 milhões de euros). Os documentos do processo — que o Espresso pôde consultar — reconstroem a cadeia produtiva (ciclo, cadeia de montagem) que começa com o desmatamento e termina na pecuária e no cultivo de soja.

Da análise das contas-correntes atribuídas a Vilela e ao seu grupo, surgiram pagamentos de grupos de traders da soja, valores acima de 10 milhões de reais (2,2 milhões de euros). Em 2016, o Ministério Público Federal do Pará (MPF/PA) pediu explicações às Companhias.

Atualmente, “a investigação do Ministério Público Federal não está mais em andamento no Pará, agora está em andamento em outro estado, sob sigilo”, explicou o órgão brasileiro ao Espresso. Entre os traders que teriam efetuado pagamentos bancários a Vilela, aparece também o grupo Maggi, que faz parte das empresas envolvidas na “moratória da soja”: “A Companhia recebeu um pedido de esclarecimento por parte do Ministério Público Federal e respondeu prontamente; a Companhia e o Grupo não são objetos de investigação e não aparecem como réus nos documentos”, é o único comentário do Grupo Maggi.

O caso, porém, põe algumas questões: existe um fluxo de soja ao longo daquele eixo da logística que atravessa a floresta e não consegue ser detectado pelos sistemas de certificação. Um buraco negro descoberto somente quando a Polícia Federal e o Ibama conseguiram entrar nas fazendas. Ações que, além disso, serão cada vez mais difíceis, visto que o presidente Jair Bolsonaro já declarou querer reduzir drasticamente as inspeções, fechando sedes e cortando recursos destinados às investigações.

Andrea Palladino é jornalista.
Texto publicado originalmente em italiano, no jornal L’Espresso.

Imagem em destaque: Plantação de soja em Santarém, no Pará. Arquivo/Amazônia Latitude

 

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