David Pennington e a invasão britânica em Manaus
No dia 3 de março de 1953, David Rodney Lionel Pennington desembarcou em Manaus. Nascido em Liverpool, o inglês rapidamente se tornaria um manauara. Três décadas depois, estaria sob a mira de flechas no rio Javari enquanto registrava, com Jorge Bodanzky, a campanha de um senador do Amazonas. Quando chegou à capital, não poderia imaginar nada disso, tendo apenas cinco anos de idade.
A mãe de David morreu dois anos depois de seu nascimento. O pai, entre muitos trabalhos, foi paramédico na Segunda Guerra. De volta a uma Liverpool destruída e sem trabalho, após o conflito, foi para o setor de marinha mercante.
Passou pelo Brasil, quando visitou Manaus, e por diversos países. Voltou ao Amazonas e conheceu a senhora Dadá de Vasconcelos, viúva e primeira vereadora no estado. Casaram-se e foram buscar David, que estava em Liverpool.
Depois da escola, o jovem criado em Manaus foi para a capital paulista cursar engenharia na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. No último ano do curso, trocou a carreira pela arquitetura, na mesma universidade, onde se especializaria em acústica.
Frequentador de cineclubes em Manaus e em São Paulo, David teria contato com outro interessado na área, em 1976: Jorge Bodanzky.
O cineasta estava à procura de alguém para projetar a acústica do Stop Som, braço de finalização de áudio da produtora Stop Film, que Jorge havia montado com o alemão Wolf Gauer na Vila Madalena, em São Paulo.
“Tenho um amigo arquiteto, Lúcio Gomes Machado, que era da FAU [Faculdade de Arquitetura e Urbanismo], e um dia disse a ele que estava precisando de uma pessoa especializada em acústica. E ele tinha um aluno para indicar. Era o David”, diz Jorge.
Pennington lembra que o momento era prolífico para o cinema no qual Bodanzky viria a se especializar. “Havia também na época uma pulsão sobre 16mm (tipo de filme), que era econômico para fazer documentário. Então aparece na vila onde eu morava o Jorge Bodanzky. Olhei o cara e ele contou do projeto. E eu disse ‘tá bom’”, diz Pennington.
O quase arquiteto passou quinze dias imerso em conteúdos de cinema para entender como projetar o estúdio.
“Eu já havia feito um cinema em casa, junto com um amigo, com uma projeção muito simplória: uma lâmpada e desenhos copiados de gibis projetados numa tela”, lembra Pennington.
Rumo ao terceiro milênio
Frequentando o estúdio e integrando alguns projetos com a Stop Film, como um documentário sobre o trabalho de menores para o Instituto Didático de Munique, David virou referência na gravação de som direto em São Paulo.
Na sequência, surgiu um projeto “realmente incrível, que tinha a ver com minha terra, a Amazônia”, conta.
Um senador faria uma viagem de trinta dias em um barco nos rios amazônicos para fazer campanha. Chamava-se Evandro Carreira. A viagem se transformou no filme “Terceiro Milênio”, lançado em 1981. Jorge Bodanzky, Wolf Gauer e David Pennington embarcaram. Mas Gauer foi picado por um mosquito, teve complicações e precisou voltar. E a equipe, já pequena, ficou composta pelos dois — um na câmera, o outro com o gravador Nagra.
“Eu considero Terceiro Milênio um trabalho da mesma importância de ‘Iracema’ na minha filmografia, nessa abordagem da Amazônia”, diz Jorge Bodanzky.
O projeto foi uma das muitas realizações da dupla. Durante as gravações, em uma comunidade Marubo, no Rio Javari, os indígenas foram instigados por agentes do governo a hostilizar a equipe.
“Quando um homem vê a câmera, ele bate com uma lança na lente zoom, que ficou travada. No dia seguinte a gente parou numa cidade. E o David conseguiu desmontar a lente, com essa precariedade toda, consertou e montou de volta, o ‘professor pardal’ entrou em ação”, conta Bodanzky.
O ‘professor’ também aparece resolvendo um problema de vidro estourado em “A propósito de Tristes Trópicos”, produção de 1990.
Discos e campos
Três anos antes de lançar “Brincando nos Campos do Senhor”, de 1991, Hector Babenco incumbiu Bodanzky da missão de descobrir cenários para a locação do filme. O cineasta lembrou na hora de seu amigo manauara.
“Falei com o David e tínhamos um avião à disposição. Olhamos tudo quanto é canto na Amazônia para achar locações adequadas ao que o Hector Babenco estava querendo”.
Mas o filme só aconteceu no Amazonas por mero acaso. Babenco foi a Nhamundá no Amazônas, e levou consigo o produtor Saul Zaentz, que preferia o Panamá, pela proximidade com os Estados Unidos.
A mala do americano não chegou e a solução foi achar shorts e uma camisa em um camelô. Além disso, em nenhum outro lugar o americano poderia viver outro momento memorável. Ao tentar ligar para sua terra, sua conversa com a secretária foi interrompida por um macaco, que tentava arrancar o telefone de suas mãos. Foi o que bastou para a Amazônia ser escolhida para o filme.
Em 1995, muito antes de infográficos digitalizados, os dois cineastas lançaram outro projeto: o CD-Rom “Amazônia: universo fantástico”. Tratava-se de uma encomenda do Ministério do Meio-Ambiente para os ministros da futura União Europeia, que participariam de uma conferência na Alemanha.
Os dois partiram de uma ideia muito original: um desenho dos quatro principais biomas amazônicas. Ao passar com o cursor sobre um deles, caía uma folha ou aparecia um animal.
“Você clicava em cima e então tinha um vídeo, um texto, ou os dois, explicando o que era aquilo: animal, planta, bioma, e era contínuo. Os biomas iam mudando e as telas iam fazendo uma espécie de fusão. Um ambiente com uma centena de possibilidades de hipertexto”, explica Bodanzky.
A embalagem dos discos era feita de muriti, uma palmeira da Amazônia que as pessoas usam para construir brinquedos, principalmente na festa do Círio de Nazaré no Pará. Cada embalagem era artesanal e única — o que levou alemães a acharem que a embalagem era o presente.
Sem perceber que o CD tinha som, os alemães não montaram o equipamento. Para resolver, o impasse, a equipe colocou o som para tocar no ambiente, antes da apresentação. A gafe do som da Amazônia encheu o auditório, atraindo muitos curiosos. Anos depois, a Unesco compraria lotes dos discos para distribuir por vários países.
Uma Liverpool, muitas Manaus
A parceria se fortaleceu ao longo dos anos. Muito engenhoso, Pennington projetou junto com Bodanzky, no fim dos anos 1970, uma tenda de cinema fácil de armar, que serviria para cineclubes diversos. A ideia não recebeu financiamento e ficou nos planos.
“Engraçado que, muito tempo depois, a minha filha Laís [Bodanzky] concretizou esse projeto, equipando um caminhão que se transformava numa sala de cinema, mais sofisticada, 35mm, com tapete vermelho e pipoca, o Cine Tela Brasil.
Os projetos foram e são inúmeros, incluindo um filme que está em produção de Liliane Maia, de Manaus, baseado no livro “Jorge Bodanzky: o homem com a câmera”. O livro foi escolhido porque literalmente caiu da estante quando a produtora buscava um tema para concorrer a um edital.
David também foi responsável, além de captar o som e ajudar com os únicos registros disponíveis, por produzir a expedição ao Pico da Neblina, no território Yanomami. Também fez o som do mais recente filme de Jorge Bodanzky, “Universidade de Brasília: utopia distopia”.
Apesar de não terem sido contemporâneos na Universidade de Brasília, ambos dividem uma história com a instituição. Bodanzky foi da segunda turma de arquitetura, em 1963. Pennington começou a lecionar cinema na UnB no final dos anos 1980, onde também faria doutorado sobre suas duas pátrias: Liverpool e Manaus.
“Eu queria fazer um doutorado que me emocionasse”, diz ele. Caminhando por Manaus em uma visita, viu paralelepípedos ainda sem asfalto por cima. “Meu pai caminhou por essas pedras, deve ter caminhado por pedras como essas em Liverpool, olha aí. Esbocei um projeto, levei para minha orientadora. E, a partir daí, fui buscar as ressonâncias entre as duas cidades. Consegui”, diz David.
Era preciso conseguir aprovar o projeto na Inglaterra. À época, Bodanzky precisava de uma câmera da Alemanha para filmar “Cidades utópicas”, e contatou o amigo. A viagem serviu também para garantir a co-orientação com a Universidade de Liverpool.
Inicialmente, David achou que havia ligações entre as cidades, mas descobriu que há uma Liverpool com diversas Manaus espalhadas pelo mundo, fruto da colonização. A navegação unia as duas cidades por causa da borracha, o planejamento de Manaus era de urbanistas ingleses: o tipo de calçamento, os bondes e até os hábitos, como usar tecidos de tweed sob o sol na Amazônia.
Um destaque: de tanto circular por Manaus e pela floresta, David também conheceu o controverso Tatunca Nara durante um natal alemão em plena Amazônia.
Depois do doutorado, David se fixou em Brasília e deu aulas na UnB até se aposentar. Logo após o fim da ditadura, produziu com Jorge Bodanzky o filme “Universidade de Brasília, a construção da liberdade”, sobre a proposta para o ensino do primeiro reitor da redemocratização: Cristovam Buarque.
Sobre fazer cinema
“Essa questão de fazer cinema, som, câmera e produção tem o aspecto técnico dessas áreas. Mas tem um outro aspecto que é: tem que gostar de cinema. Quer fazer documentário, tem que assistir a documentários”, avisa o inglês. A técnica de Jorge Bodanzky, diz, é uma descrição, por meio da câmera, de tudo o que está acontecendo. A mecânica de cena é a dos fatos. É preciso estar atento e antecipar algumas situações. Para isso, é necessária uma precisão técnica para começar. E daí uma forma de colocar bagagem e atitude diante da profissão. É o que garante, por exemplo, que mensagens como a de Evandro, em ‘Terceiro Milênio’, tenham impacto até hoje.
Bodanzky concorda. “Para mim, sempre foi importante a qualidade do som. E eu sempre disse: ‘David, você se coloca e eu coloco a câmera em função de você’. A tal ponto que, há momentos em que ele aparece com o microfone e o gravador na cena, e eu acabei incorporando isso”, conta.
Para Pennington, com as ferramentas digitais, o documentário ficou cada vez mais viável. Na produção de Terceiro Milênio, em 1981, era necessário, a cada cinco minutos de filmagem, trocar as baterias.
“As tecnologias vão mudando, mas o que segura, o que faz um filme, é a percepção do cineasta. Não é a máquina. O Jorge mantém esse olhar, esse trabalho de trazer o olhar para o espectador. Fazer o espectador ir para onde o cineasta quer. É o aspecto mais significativo.”
“Nada mal para dois septuagenários!”, ri o inglês manauara de dois metros de altura.
Roteiros da Amazônia é uma parceria entre o cineasta Jorge Bodanzky e a Amazônia Latitude. Confira todas as edições aqui.
Imagem em destaque: Jorge Bodanzky e David Pennington filmando na Amazônia em 1984 para a TV Alemã. Jorge Bodanzky/Amazônia Latitude